Recolha de informação para memória futura.
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QUINTA-FEIRA, 15 DE NOVEMBRO DE 2012
JOSÉ PACHECO PEREIRA Professor
Revista SÁBADO 15 NOVEMBRO 2012
Quem esteja atento à conflitualidade social e política, expressa publicamente através de manifestações, protestos e greves, percebe que ela está a chegar a um impasse claro na sua mobilização e nos seus efeitos
1-Escrevo a um dia da greve geral e depois das manifestações contra Merkel, mas penso que o dia da greve não alterará muito do que aqui fica registado. Quem esteja atento à conflitualidade social e política, expressa publicamente através de manifestações, protestos e greves, percebe que ela está a chegar a um impasse claro na sua mobilização e nos seus efeitos. Cresceu, cresceu muito, mas parece ter atingido um limite difícil de ultrapassar. Apenas os movimentos de conteúdo mais corporativo, abrangendo sectores profissionais, têm vindo a aumentar e a consolidar a sua reivindicação pública, como é o caso dos polícias, dos estivadores e dos militares.
2-O Governo escusa de ficar contente com este facto, porque a imensa raiva que a sua política está a gerar, a profunda desconfiança com governantes e políticos, o sentimento de incompetência, desprezo, insensibilidade e mesmo traição estão a crescer exponencialmente. Quando, em Janeiro de 2013, tudo piorar ainda mais, e quando, em meados de 2013, novas medidas de austeridade mais gravosas tiverem de ser aplicadas face a mais um incumprimento dos números da troika, o Governo fará outra edição do "custe o que custar", e essa raiva será a pior das conselheiras. Mas isso é o quadro mais amplo, o fundo.
3-As manifestações como a de 15 de Setembro e a contra Sócrates no ano passado são de natureza diferente. Elas mostram uma recusa generalizada da elite partidária do poder, mas em muitos aspectos não diferem da actual narrativa governamental sobre as causas da crise, em particular o "viver acima das nossas posses". É por isso que podem facilmente ser "engolidas" pelo poder político, sem consequências. Nelas se encontram as pessoas que protestam contra os cortes nas pensões, mas são contra as greves; as que acham um abuso os impostos, mas pensam que os trabalhadores da função pública têm regalias a mais, e por aí adiante. Não são por isso de esquerda.
A MOLE
4-Comecemos pela esquerda mole, ou seja o PS. Sem o PS nada se faz, com o PS nada se faz, este é o dilema dos que querem pensar ou "trazer" o PS à esquerda, o que é a mesma coisa. O PS tornou-se, antes de tudo, como o PSD, uma partidocracia de governo, que não conhece outras regras que não seja manter lugares, carreiras, território e influência partidária. Não há nem identidade política, nem ideológica, nem sequer a expressão de interesses sociais e isso verifica-se numa altura em que a crise atinge profundamente as bases sociais dos dois partidos e acaba por não ter expressão no topo. A lógica do topo é apenas a da partidocracia e por isso misturam-se com o establishment que servem e absorvem todo o pensamento balofo que para aí circula. A geração de Seguro e de Passos Coelho nos partidos transporta consigo uma enorme necessidade de respeitabilidade, eles sabem que os de cima, com quem lidam, não os respeitam, e os de baixo os não consideram, e por isso são pouco mais do que intérpretes do mainstream dos interesses já estabelecidos.
5-Por isso, o PS é a grande dificuldade de toda a esquerda, porque no fundo quem chega à sua direcção não é de esquerda, como quem chega à direcção do PSD não é social-democrata. Entalado entre o silêncio incomodado de Seguro sobre Sócrates, o PS é sempre presa fácil para a propaganda governamental e para a sua narrativa da crise. Por outro lado, se assumisse o socratismo, institucionalizaria um keynesianismo corrupto, pragmático e oportunista, tão de-sertificador como a actual indecisão estratégica e fala-baratismo táctico. Vai ser difícil sair disto.
A MOLE-DURA
6-Classificar o Bloco de Esquerda não é difícil: é hoje um partido socialista radical, próximo de partidos como era o PSU e o PSIUP no passado em França e Itália. No fundo, foi sempre este o projecto de muitos trotskistas, e ele foi comseguido. O problema do BE é que é pouco para a crise que se vive, o que torna a sua posição demasiado indistinta. Reduzido à sua dimensão parlamentar, tem vindo a perder a rua mais radical, deixando a mobilização preguiçosa, fácil e enganosa nas redes sociais sobre-por-se à organização pura e dura. Com isto, e aqui os comunistas têm razão, os governos podem bem. Está por isso inócuo e acaba por ficar dependente apenas da evolução do PS, que é um pouco esperar sentado por um milagre.
A DURA
7-A esquerda dura é o PCP e a CGTP e é composta por um contínuo social e político muito consistente e entretecido. Tem uma história, tradições, famílias e identidade. Tem uma base social com muito maior homogeneidade do que o PS e o BE e essa base social está em grande parte organizada no partido e nos sindicatos por mecanismos de enquadramento e mobilização. Não há nada de semelhante em qualquer outro partido, e a comparação que fazia sentido com o PSD do passado já não tem sentido no PSD do presente.
8-A direcção de Jerónimo de Sousa trouxe um ainda maior reforço de identidade, levando o PCP pela primeira vez na sua história a fazer manifestações como partido e não disfarçado de CDU, ou de qualquer outro rótulo unitário. Jerónimo não suscita o respeito reverenciai de Cunhal, mas também não reproduz o seu afastamento aristocrático, não desejado mas real. Jerónimo é um deles, próximo e igual, que transporta consigo o mundo da base comunista como ninguém o fez nunca na história do PCP, a que acrescenta a força e a empatia gerada por ser o único líder político que no parlamento fica genuinamente indignado com a sorte dos seus e dos portugueses. É por isso que ele pode sair à rua e ser recebido com estima por muitos que não são comunistas mas que reconhecem a sua genuinidade. E também por isso travou a crise do PCP, embora não a tenha resolvido. Mas é um facto que o PCP sobreviveu melhor à crise do que muitos outros partidos europeus, e é impossível falar da esquerda activa e que existe sem falar do PCP. Em França, o PCF, por exemplo, é muito irrelevante.
9-Mas o PCP, ao reforçar a identidade, está a acentuar o seu acantonamento, as suas fronteiras e os seus limites. Usa e abusa da linguagem de pau, como é o caso da designação canónica do acordo com a troika de "pacto de agressão", e tendo a parte de leão na resistência organizada ao Governo, das vaias às greves, parece ter atingido uma barreira de crescimento que a prazo se revelará como impotência.
10-A CGTP tem resistido à crise melhor do que a UGT, perdida nas suas contradições. Mas a CGTP com a sua nova liderança - que é um erro considerar incapaz - tem tido, também como reflexo do PCP, um processo de auto-afirmação sectária, que lhe pode dar capacidade de organização, mas que dificulta a mobilização. Não se compreende do ponto de vista da eficácia, por exemplo, da greve geral, que a CGTP não apareça genuinamente interessada em obter a adesão dos sindicatos da UGT. Pode-se dizer que muitos vão aderir, mas o impacto de uma greve conjunta das duas centrais seria maior. No actual contexto de contínuas humilhações à UGT, seria difícil, face a um esforço de entendimento e consulta efectivo, a sua direcção recusar uma greve em que os interesses de alguns dos seus principais sectores sindicais (função pública, banca, seguros) são dos mais afectados pelas medidas do Governo.
E A VIOLENTA
11-Existe hoje uma esquerda violenta e essa esquerda está a recrutar nos filhos da classe média radicalizada. Seria de estranhar que assim não fosse. As divisões no BE, com a criação do Movimento Alternativa Socialista, mais radicalizado, e alguns movimentos de aliança entre franjas do BE, jovens comunistas-leninistas, trotskistas desirmanados, no Movimento Sem Emprego, jornais e revistas como Rubra, várias páginas do Facebook, alguns neo-anarquistas, estão a dar origem aos grupos que ficam no fim das manifestações diante dos polícias a ver se há pancada.
12-Os comunistas desconfiam deles, que acham demasiado folclóricos para seu gosto, e compreendem o efeito perverso da simulação simbólica da violência para as câmaras verem, sem consequências. Com máscaras de Guy Fawkes, lenços palestinianos a cobrir a cara, parcas a esconder a cabeça e muitos arremedos diante dos polícias, derrubando as barreiras, o que, já se percebeu pelo comportamento da polícia, não é considerado motivo para carga, e ficando ali a provocar com petardos e garrafas de cerveja, diante dos robocops, acabam por prestar um péssimo serviço à violência revolucionária que pretendem encenar. Um bom português, amigo dos forcados amadores, dirá "se eles vão lá para a porrada, porque é que não andam à porrada?" Parecem aqueles que dizem "segurem-me senão vou-me a eles", e não vão.
13-O que se passa no conjunto de todas as esquerdas, moles, duras e violentas é a sua enorme divisão não só estratégica como táctica. As suas ideias são diferentes, as suas práticas são diferentes, os seus motivos são diferentes. Enormes diferenças geracionais, de estilo, cultura política e, acima de tudo, de condição social pesam sobre esta desunião de forma até agora decisiva. Não podem mobilizar a gigantesca força latente que a crise gerou - a recusa populista dos partidos e a raiva contra os políticos - e por isso acantonam-se nos seus territórios entre a nostalgia e a encenação. Vão acabar por votar Seguro contra Passos Coelho e é difícil encontrar destino mais irónico para a esquerda portuguesa.
Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré provérbio popular
ABRUPTO
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