A quem serve o triunfalismo?16 de novembro de 2012
Importa quebrar com uma espécie de boa moral, que se preocupa mais em defender a lei do que os interesses de quem trabalha. Por Passa Palavra
Por Passa Palavra
No dia 14 de Novembro decorreu em Portugal uma greve geral convocada pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP). Segundo os organizadores (veja aqui), esta teria sido uma das maiores greves gerais de sempre. O tom triunfalista é absorvido por uma boa parte da esquerda. Mas o triunfalismo, se inconsequente, é um dos maiores perigos para o futuro das lutas sociais. Esse triunfalismo esquece outras variáveis políticas e sociais em jogo e que, estas sim, representam aspectos que qualquer avaliação crítica e honesta das lutas sociais tem de tomar em conta.
O triunfo e as derrotas das lutas sociais estão nos detalhes
Em primeiro lugar, o que significa no Portugal de hoje dizer-se que esta teria sido «uma das maiores greves gerais dos últimos anos em Portugal» (idem)? Para os esquecidos, recordamos apenas que as greves gerais convocadas em Portugal por centrais sindicais foram sete: em 1982, 1988, 2002, 2007, 2011 e 2012 (Março e Novembro). Portanto, colocar esta última no topo das greves gerais é o equivalente a um aluno de uma escola primária chegar a casa e dizer à mãe que é um dos melhores alunos da sua turma de sete elementos… A caracterização seria cómica, não fosse o caso de se estar a viver um período muito conturbado e crítico.
Por outro lado, num comunicado emitido pelo Partido Comunista Português (PCP) no final do dia da greve geral lê-se o seguinte:
«A Greve Geral teve um profundo impacto em todo o País, nas diferentes regiões e sectores de actividade, na indústria e nos serviços, no sector privado e no sector público.
Na indústria com paralisações totais de muitas empresas como o Arsenal do Alfeite, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Lisnave Mitrena, a Browning e elevadíssimas adesões com paragem quase total do parque industrial da Autoeuropa, e em muitos outros empresas em que se salientam a Fisipe, a Visteon, a Bosch, a Exide/Ex-Tudor, a Roberto Bosch, a Centralcer, a Kraft, a Acral, a Têxtilminho, a Tessimax, a Paulo Oliveira, a Trekar, a S. Gobain, a Sotancro, a Cerâmica da Abrigada, a Valorsul, a Portucel/Setúbal, a Europack, a Fraas» (veja aqui).
Na indústria com paralisações totais de muitas empresas como o Arsenal do Alfeite, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Lisnave Mitrena, a Browning e elevadíssimas adesões com paragem quase total do parque industrial da Autoeuropa, e em muitos outros empresas em que se salientam a Fisipe, a Visteon, a Bosch, a Exide/Ex-Tudor, a Roberto Bosch, a Centralcer, a Kraft, a Acral, a Têxtilminho, a Tessimax, a Paulo Oliveira, a Trekar, a S. Gobain, a Sotancro, a Cerâmica da Abrigada, a Valorsul, a Portucel/Setúbal, a Europack, a Fraas» (veja aqui).
Destas empresas do sector industrial mencionadas pelo PCP e pela CGTP, nove delas (Visteon, Acral, Têxtilminho, Tessimax, Paulo Oliveira, Trekar, Cerâmica da Abrigada, Europack e Fraas) nem sequer aparecem entre as mil maiores empresas estabelecidas em Portugal (veja aqui). Por outro lado, basta uma breve consulta aos dados disponibilizados pela CGTP ao final da tarde da jornada de greve geral (vejaaqui) para se perceber a enorme predominância de câmaras municipais [prefeituras], serviços de recolha do lixo e várias entidades públicas. Nos transportes o resultado alcançado também é significativo. Contudo, para organizações que se pelam pela industrialização do país e que se anunciam como as mais genuínas representantes do operariado industrial, não deixa de ser confrangedor verificar-se a existência de apenas 62 empresas do sector industrial. Num total de 351 entradas divulgadas pela CGTP, só 20% ocorreram no sector industrial. Por outro lado, destas 62 só cerca de metade (30) aparecem na lista das mil maiores empresas não-financeiras a operar em Portugal. Mesmo entre as empresas industriais ou de comércio com participação na greve houve casos onde o impacto não foi propriamente de monta ou sequer próximo da totalidade dos trabalhadores. Por exemplo, no caso da 14ª maior empresa a operar em Portugal – o grupo de supermercados e hipermercados Auchan – registou-se uma adesão à greve na loja Box de Faro. Outro exemplo é o caso da EDP, onde só foram afectadas unidades em Vila Real, Chaves, Valença e, o caso mais importante, Sines. Refira-se que pela primeira vez desde 2002 não se registou uma contabilização da adesão à greve na mais importante unidade industrial em Portugal – a Autoeuropa. Apesar de algumas empresas subcontratadas dedicadas à produção de componentes terem praticamente parado a produção, a verdade é que o coração do Parque Industrial da Autoeuropa não regista dados de adesão à greve.
Em suma, se a greve geral ainda teve alguma adesão, tal deveu-se a uma presença relativamente forte dos sindicatos nas empresas públicas e nos serviços do Estado (saúde, educação, entre outros). Estes setores, até há pouco tempo, eram imunes ao processo de divisão quantitativa e qualitativa operada no privado, por um lado, pela divisão das grandes empresas fordistas em cada vez mais pequenas unidades parcelares e, por outro, pelo fracionamento da força de trabalho por vários tipos de categorias contratuais.
O grande malogro sindical nas empresas de capital privado reside, porém, na precarização dos vínculos laborais e no aumento do desemprego. Tais fenómenos, em primeiro lugar, quebram a relação identitária entre indivíduo e trabalho, a qual, paradoxalmente, ainda constitui a espinha organizacional do sindicato. Quando o precário é aquele que, por definição, não tem emprego, mas vai tendo empregos (de vária natureza), importa perguntar qual a vantagem em manter sindicatos estruturados em torno de uma relação que deixou de existir. Em segundo, e associado, o aumento da precariedade e do desemprego deixam o trabalhador à mercê de uma autêntica política de chantagem. Neste sentido, qualquer mínimo sinal de resistência poderá ser punido com a não renovação do contrato.
Esta debilidade permite às empresas não só acabar com todas as ameaças à paz social no seu seio, como auferir de maiores níveis de produtividade com menos custos. Uma das formas mais usadas na persecução desse objetivo é o recurso a prémios, isto é, a manutenção de salários baixos complementados por um «prémio adicional», caso se consigam cumprir determinadas metas. Referimo-nos não apenas, e a título de exemplo, à concretização de uma série número de vendas e/ou assinaturas de contratos por telefone (bastante usual nos call-centers), como também a «subsídios de presença» concedidos a quem não faltar durante um ou vários meses.
Um dos problemas que afetou a greve nas transportadoras privadas foi, justamente, a questão dos prémios. Nalguns casos, estamos a falar de prémios de cerca de 500 euros (correspondentes a uma assiduidade de 4 meses seguidos), que seriam perdidos com uma falta ao trabalho.
Embora difícil, o atual estado da correlação de forças não deve ser encarado como uma fatalidade. Na verdade, os prémios de produtividade estão longe de corresponder a um dado novo. Em Portugal, os primeiros ensaios deram-se ainda no período do Estado Novo, por iniciativa de grupos como a CUF. Perante o desafio, os trabalhadores organizaram-se e decidiram em colectivo boicotar a tentativa de os virar uns contra outros, ou seja, decretaram que todos receberiam por igual. Uma postura que, à altura, era fomentada pela proximidade e por um conhecimento mútuo: afinal, o «gajo» [o cara] que estava ao lado não era só um colega, mas uma pessoa com a qual se confraternizava todos os dias, dentro e fora do local do trabalho. Se isto não fosse importante, as empresas não estariam preocupadas em organizar jantares de Natal ou fins-de-semana de team-building onde gestores e trabalhadores trocam sorrisos e pancadinhas nas costas.
Simultaneamente, importa quebrar com uma espécie de boa moral, que se preocupa mais em defender a lei do que os interesses de quem trabalha. Algumas transportadoras privadas, a título de exemplo, recorrem em dias de greve a autocarros [ônibus] que transportam os motoristas, um a um, a partir das suas casas. Um dos primeiros objetivos do piquete de greve é, portanto, tentar impedir a saída desse autocarro e, deste modo, impedir o comparecimento dos transportados. Como resposta, esse mesmo autocarro começou a ser estacionado de véspera em local público, sendo os motoristas transportados até um ponto próximo do local de trabalho (para que o piquete se confronte com colegas e não com autocarros). Toda a mudança de estratégia do adversário deve, porém, ser interpretada como uma oportunidade ou, pelo menos, como um sinal da necessidade de mudança da nossa própria estratégia. Neste específico caso, o «abandono» do autocarro num local acessível ao público representa, no mínimo, um convite à imaginação. E não há nada que quebre mais a imaginação do que a evocação de uma barreira moral inamovível, independente de toda a reflexão em torno dos seus efeitos.
Ora, a precariedade é a principal razão para as dificuldades de adesão à greve geral. Os dados apresentados previamente acerca da baixa adesão de trabalhadores do sector privado e as dinâmicas acabadas de descrever desmontam o discurso triunfalista. Nesse sentido, o triunfalismo é um veneno para a análise das lutas sociais. Primeiro, porque prefere a celebração encomiástica traduzida nas ruas, mas quase sem qualquer impacto nos locais de trabalho. Em segundo lugar, na medida em que a discrepância entre os discursos públicos oficiais e os próprios dados coligidos pela central sindical reproduz um modelo organizativo em que o debate (se o houver) e a consciência real da amplitude da greve fica para os dirigentes, enquanto para as bases os chavões parecem servir. Em termos muito simples e à boa maneira da estrutura organizacional fordista, persiste uma separação entre os que executam e os que elaboram o plano de acção e de trabalho (sindical). A incapacidade para discutir com as bases é um dos sinais mais fortes do burocratismo do modelo sindical herdado do fordismo. Em terceiro lugar, importa referir que este obscurecimento das enormes dificuldades de actuação da CGTP nos locais de trabalho não é completamente inocente, pois é da condução ordeira e disciplinada dos trabalhadores em luta para o exterior das empresas que a CGTP e o PCP retiram o seu capital político a aplicar no parlamento. Finalmente, e em quarto lugar, se os sindicatos evidenciam uma clara incapacidade para actuar nos locais de trabalho e se os próprios trabalhadores não se revêem nos sindicatos, então há que concluir que só novas modalidades de organização autónoma da parte dos trabalhadores podem relançar as lutas sociais num plano realmente anticapitalista e que se baseie na própria iniciativa das bases.
Notas finais sobre a polícia
Nos últimos tempos, a multiplicação das manifestações e o nível de actuação policial sobre as mesmas tem originado um debate de surdos: de um lado, o «mata, pisa e esfola» o polícia, do outro o «abraça o polícia, que ele é trabalhador». Relativamente a este último argumento, a carga policial sobre centenas de pessoas que se manifestavam em solidariedade com a greve veio a demonstrar a sua fiabilidade. Tal não significa, contudo, que estejamos perante uma horda de bárbaros que se deixam dominar por uma pretensa irracionalidade. O sangue que no fim dessa tarde manchou o pavimento das ruas foi o resultado, antes, de uma operação cirúrgica, ou seja, de um cenário que foi previsto, ordenado e no final aplicado. É esta capacidade de consequência que deve suscitar a maior das preocupações.
Não obstante a resistência oferecida nas imediações da assembleia, assistimos a uma operação policial que se estendeu no espaço e no tempo, chegando a efetuar diversas detenções no Cais do Sodré. De acordo com alguns relatos divulgados nas redes sociais e nos meios de comunicação social, não só estas foram produzidas de forma arbitrária, como os direitos dos detidos a uma representação legal foram violados. Ficámos igualmente a saber que a recolha de imagens realizada pela polícia durante as várias manifestações, à margem do parecer negativo da Comissão Nacional de Proteção de Dados, poderá vir a ser utilizada na identificação e responsabilização judicial dos «profissionais violentos». Tudo isto, importa mais uma vez realçar, não deriva de uma disfunção do aparelho policial e judicial, mas sim da concretização de uma estratégia.
Se compararmos a prática das autoridades nas manifestações de 15 de Setembro e de 14 de Novembro, constatamos diferenças de actuação e não de essência. Na primeira, a reacção perante o abraço de uma jovem de 18 anos não foi diferente do comportamento face ao arremesso de garrafas. A segunda, concomitantemente, pautou-se pela mesma receita: tudo a eito, sem grandes diferenças, pois ordens… são ordens.
Não existe qualquer dúvida da violência que foi praticada pela polícia sobre os manifestantes. Todavia, o facto de estarmos a falar de uma instituição que detém o seu poder de monopólio a nível interno torna difícil distinguir o que é uso e o que é abuso. A lei e os «direitos humanos» continuam, certamente, a contar com a Ordem dos Advogados e com a Amnistia Internacional. Mas a sua vinculação passa apenas a fazer parte das contas e não a definir a conta.
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