A saída do euro e o fascismo
Não devemos fechar os olhos perante o perigo de uma radicalização política operada à direita e num contexto de desprestígio do parlamento e dos partidos parlamentares. Por Passa Palavra
Portugal pode sair do euro por dois motivos. Ou porque as pressões populares sejam tão fortes que o governo, seja ele qual for, não consiga cumprir as prescrições da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) e os que mandam na Europa considerem preferível sacudir Portugal, cuja economia em 2011 representava apenas 1,35% do Produto Interno Bruto, PIB, da zona euro. Ou porque as pressões populares levem ao poder um governo com o mandato explícito de abandonar o euro.
1.
Mas não seria por abandonar o euro que Portugal abandonaria o mundo, embora possivelmente o mundo não se importasse nada de abandonar Portugal.
Hoje, que o capitalismo deixou para trás a fase da internacionalização e entrou na fase da transnacionalização, não há economia que não ultrapasse as fronteiras dos países e, seja numa moeda ou noutra, são necessários créditos e financiamentos externos. A saída do euro, com o default — ou seja, inadimplência — que ela implica, tornaria esses financiamentos e créditos ainda mais caros do que já são agora.
E assim vivemos numa situação em que o nacionalismo, desprovido de razão de ser no plano económico, se afirma unicamente nos planos ideológico e político. Trata-se de um caso extremo de falsa consciência e, obedecendo à dinâmica inelutável deste processo, quanto menos a ideologia corresponder aos factos económicos tanto mais ela procurará afirmar-se por meios exclusivamente ideológicos — incluindo, se houver oportunidade para isso, a repressão política.
2.
Seria bom que aquelas forças políticas ou simples personalidades que defendem a saída do euro indicassem claramente os custos desta opção. Em vez disso, indicam só as vantagens e dizem que a adopção de uma moeda independente permitiria desvalorizá-la e, portanto, tornar as exportações competitivas. De qualquer modo, a adopção do velho escudo em condições de default implicaria por si só uma considerável desvalorização monetária. Mas seriam as exportações beneficiadas?
Se observarmos o grau de intensidade tecnológica dos produtos industriais portugueses exportados no período de 2006 a 2010, verificamos que entre 35,7% (em 2006 e 2008) e 39,1% (em 2009) foram de baixa intensidade tecnológica, enquanto só entre 11,5% (em 2006) e 7,8% (em 2009) foram de alta intensidade tecnológica. Esta situação decorre da catastrófica baixa de produtividade da economia portuguesa.
Sem serem capazes de aumentar a produtividade — em termos marxistas, de desenvolver a exploração da mais-valia relativa — os empresários portugueses obcecam-se com o outro termo da equação, os salários. Se a produtividade não aumenta, os salários têm de baixar. É esta a principal função das medidas impostas pela Troika.
3.
O problema é que é esta igualmente a função da saída do euro defendida por tantos grupos e pessoas na esquerda e na extrema-esquerda. De uma penada, ficariam desvalorizados os depósitos bancários e as poupanças em geral, sem que esta medida atingisse os grandes capitalistas, com acesso a redes económicas e detentores de conhecimentos que lhes permitiram, desde há muito, pôr os capitais a salvo. As vítimas seriam apenas, por um lado, os pequenos e médios capitalistas, os donos de lojas e oficinas que, se não caíssem na falência, teriam de parar os investimentos e, portanto, reduzir ainda mais a produtividade. Por outro lado, a vítima seria o conjunto da classe trabalhadora, incluindo aquelas camadas de rendimentos médios que gostam de se intitular classe média. Ora, como é nestas camadas que se concentra a maioria dos trabalhadores mais qualificados, a crise económica neste sector mais ainda contribuiria para comprometer a produtividade.
Se o regresso ao escudo aumentasse o volume das exportações portuguesas, numa situação de declínio da produtividade aumentaria nessas exportações a concentração nos ramos de baixa intensidade tecnológica. Ora, para colocar no mercado mundial produtos de baixa tecnologia fabricados por uma mão-de-obra mal paga Portugal sofreria a concorrência de outros países, que fabricam esse tipo de bens melhor e com maior volume e graças a uma mão-de-obra mais miserável ainda. Nestas condições, a pressão seria para baixar ainda mais os salários dos trabalhadores portugueses.
Restaria o turismo, a solução sempre invocada entre nós por quem não enxerga outras soluções. Mas será que se pensa que a estagnação da produtividade não afecta igualmente os serviços de turismo? Segundo as previsões do World Travel & Tourism Council para o próximo decénio, Portugal será um dos países em que menos crescerá a contribuição directa do turismo para o PIB. Além disso, num país em crise e com as infra-estruturas a arruinar-se, em que tipo de turismo nos especializaremos? Talvez nos safaris humanos, embora, para os apreciadores do género, também aí haja uma forte concorrência da Somália e mesmo do Mali.
4.
Há ainda a outra face da questão, que se esquecem de considerar os apologistas da saída da zona euro.
Se a actual situação económica portuguesa é crítica, a saída do euro só a agravará.
5.
O empobrecimento total da população implica uma situação social grave, mas pior ainda é a dinâmica interna deste processo, porque se os que já eram pobres ficam mais pobres ainda, aqueles que tinham conseguido sair da pobreza e haviam enfim conquistado o acesso mais frequente a bens e serviços de melhor qualidade deparam repentinamente com o esboroar das suas esperanças. Ora, as consequências políticas desta dinâmica são divergentes.
É possível que o agravamento da situação das camadas de trabalhadores que já eram pobres contribua para um fortalecimento da sua consciência de classe e, portanto, suscite uma radicalização política à esquerda. Um processo deste tipo não é de modo nenhum obrigatório, mas existem muitos exemplos históricos. Em sentido contrário, porém, quando as camadas de rendimentos médios são lançadas na penúria a reacção habitual é a de recusarem ideologicamente a sua proletarização económica. Neste caso a ideologia funciona como uma falsa consciência, como um écran [tela] em que se projectam desejos e, simultaneamente, um biombo que tapa a realidade. Também não é obrigatório que isto suceda, mas a grande maioria dos exemplos históricos indica que uma crise económica provoca uma radicalização à direita nas camadas de rendimentos médios.
6.
Ora, isto sucederia num contexto político em que apareceria como grande culpada a democracia parlamentar saída da derrota do movimento revolucionário de 1974-1975.
Dessa culpabilização ninguém escapa, porque o Partido Comunista faz parte integrante do sistema parlamentar e o Bloco de Esquerda — se ainda restar nessa ocasião — depressa abandonou algumas veleidades iniciais de actuação extraparlamentar e converteu-se num partido como os demais.
Não devemos fechar os olhos perante o perigo de uma radicalização política operada à direita e num contexto de desprestígio do parlamento e da totalidade dos partidos parlamentares.
7.
Nem parece que haja bases para desenvolver uma luta económica que compense uma radicalização à direita na vida política.
Pela sua ligação a partidos políticos, as duas centrais sindicais sofrem o mesmo desprestígio que afecta esses partidos e, de qualquer modo, uma delas pouco conta. Mas a questão aqui fundamental não é política e diz respeito à organização do processo de trabalho. O desenvolvimento da terceirização serviu, entre outras coisas, para romper as solidariedades no local de trabalho e, em muitos casos, para isolar o trabalhador num local de trabalho que não se distingue do domicílio. Assim, por todo o mundo o número de filiados nos sindicatos tem diminuído nas últimas décadas e Portugal não é excepção. 4/5 da força de trabalho portuguesa não é sindicalizada, mas em muitos outros países a situação é bastante pior.
Nesta perspectiva, o problema principal em Portugal é que a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, CGTP, perdeu uma grande parte das suas bases. As manifestações podem ser imponentes e as concentrações solicitarem centenas de milhares de pessoas, mas trata-se de rituais que duram escassas horas e não deixam grandes marcas políticas. Por outro lado, nas empresas onde lhe resta alguma influência, como os transportes públicos, as iniciativas da CGTP redundam em acções limitadas e enquadradas legalmente. Veja-se o desconforto que a Confederação sentiu perante a tentativa de bloqueio do acesso aos escritórios da TAP por parte de três centenas de trabalhadores da manutenção aeronáutica, em protesto contra cortes salariais e de subsídios [1]. A CGTP promove nas ruas a contestação que deveria ser gerada no interior das empresas, nem outra coisa pode suceder, porque não tem praticamente ninguém nos locais de trabalho.
Lançar os trabalhadores na rua é prescindir da sua maior arma de classe, as relações de solidariedade tecidas no local de trabalho. Qualquer desenvolvimento futuro da luta nas empresas só poderá ocorrer se mobilizar tanto sindicalizados como não sindicalizados e terá de ser feito contra as cúpulas dos sindicatos, o que torna tudo ainda mais difícil.
8.
A situação é agravada pelo facto de a esquerda e a extrema-esquerda, juntas, atribuírem ao capital financeiro a culpa da crise e absolverem no mesmo gesto os restantes capitalistas. Mas quando vemos a produtividade estagnante, o tecido empresarial arcaico, o facto anómalo de a percentagem de licenciados entre os patrões ser muito menor do que entre os empregados, entendemos que os bancos servem aqui como bode expiatório por detrás do qual se escondem os demais capitalistas.
No capitalismo contemporâneo o dinheiro serve fundamentalmente como veículo de informações económicas e o crédito serve para relacionar a produção actual com a produção futura, o que nada tem a ver com especulaçãoou com economia de casino. Quem raciocinar nesses parâmetros fá-lo à sua custa, e o erro de análise é pago com a incompreensão dos mecanismos económicos.
9.
Assim como a concentração dos ataques no sector bancário serve para desculpar todo o resto do capitalismo, também a concentração dos ataques nos corruptos serve para justificar os mecanismos capitalistas admitidos como normais.
10.
Tudo somado, um nacionalismo sem base económica e remetido para os planos ideológico e político, uma aniquilação brusca de poupanças que afectaria tanto trabalhadores como pequenos e médios capitalistas e diluiria as barreiras de classe, uma miserabilização da população e sobretudo das camadas de rendimentos médios, um desprestígio da democracia parlamentar e dos partidos políticos tanto de direita como de esquerda, uma actuação de sindicatos mais reivindicativos fora dos locais de trabalho do que dentro deles, uma legitimação da esmagadora maioria dos capitalistas detrás dos bancos e dos corruptos convertidos em bodes expiatórios — qual será o resultado desta mistura?
Ao contrário do que pretendem mitos correntes, os processos de radicalização desencadeados pelas crises económicas não ocorrem obrigatoriamente à esquerda. Basta lembrar que durante a crise da década de 1930 se verificou em muitos países, embora não em todos, um recuo do movimento operário e uma viragem da vida política para a direita e para a extrema-direita. E na década de 1960 e na primeira metade da década seguinte, que conheceram uma economia em expansão, a classe trabalhadora conseguiu ditar as cartas do confronto político e avançou com formas de luta inovadoras.
O abandono do euro agravaria uma crise que, na nossa opinião, teria no fascismo a saída mais verosímil, mesmo que esse fascismo se baptizasse com outro nome e surgisse num terreno confusamente denominado de esquerda.
Nota
[1] Um relato jornalístico da indignação espontânea dos trabalhadores da TAP pode ser lido aqui. Na sequência desta acção, um comunicado conjunto dos sindicatos da TAP anunciou que «encontrar soluções nada tem de similar com acções industriais de luta, pelo que, apelamos a TODOS os nossos representados que, com serenidade e bom senso, aguardem desenvolvimentos» (veja aqui). Não se podia ser mais claro.
As gravuras que ilustram o artigo são de Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008).
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