“vale tudo no amor e na guerra”… de classes!
Um texto imprescindível da greve dos estivadores e dos papel dos sindicatos, escrito pelo sociólogo Alan Stoleroff, do IUL-ISCTE, que aqui publico com a sua autorização.
All’s fair in love and (class) war
Em consonância com a conhecida expressão inglesa, no amor e na guerra vale tudo e, sobretudo, quando se trata de guerra de classes. E é disso que se trata na crise em curso, uma guerra de classes de grande envergadura. Em Portugal, neste momento, esta guerra tem várias frentes. Todas possuem importância na ofensiva do capital e dos seus gestores políticos neoliberais e todas têm importância para a defesa dos direitos da população trabalhadora pelos sindicatos. Contudo, está em curso uma batalha específica que pode determinar o curso da guerra – o conflito em torno da flexibilização do trabalho portuário e a greve dos estivadores.
O governo e o patronato estão a jogar com a ignorância e a indiferença da população para efectuar grandes transformações na operação dos portos mas, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, uma associação que beneficia de uma sindicalização de quase 100% nos portos incluídos no seu âmbito, encontraram um obstáculo aos seus planos.
Este sindicato está convicto de que o Acordo para o Mercado de Trabalho Portuário celebrado pelas Associações dos Operadores, a UGT e a Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários, bem como a legislação subsequente produzida pelo governo, visam a desregulação de normas estabelecidas para o seu trabalho e o funcionamento dos portos, um esvaziamento dos legítimos direitos conquistados pelos trabalhadores portuários, despedimentos em larga escala, um incremento da precariedade e redução do emprego dos trabalhadores cobertos pela contratação colectiva.
O governo e o patronato argumentam que a flexibilização do trabalho portuário é necessária para aumentar a competitividade dos portos portugueses, e vários grupos económicos fortes (nomeadamente o Mota Engil) estão posicionados para retirar os benefícios das transformações conseguidas, de forma a ampliar os seus lucros e o seu espaço de intervenção nos portos e zonas logísticas adjacentes.
É verdade que a competitividade dos portos portugueses poderia ser melhorada. Mas o governo e os empregadores põem o ónus da falta de competitividade sobre as normas de trabalho portuário. Todavia, será que o problema essencial da competitividade dos portos portugueses incide no custo do trabalho resultante da sua regulação?
Analisando dados comparados relativos à competitividade, destacam-se como mais relevantes os dados referentes aos custos comparados da exportação e importação de um contentor. De facto, em termos dos custos totais, Portugal está relativamente bem posicionado nos rankings calculados pelo Banco Mundial, encontrando-se em terceiro lugar em relação à exportação (atrás de Singapura e da Finlândia) e em sexto lugar em relação à importação (atrás de Singapura, da Finlândia, da Noruega, da Suécia e da Dinamarca). Em primeiro lugar, deveremos registar destes rankings a observação de que a competitividade não é, necessariamente, um resultado simples do grau de regulação do trabalho portuário e do custo do trabalho, sendo que os portos dos países escandinavos, com os seus fortes sistemas de relações laborais, se apresentam entre os mais competitivos. Em segundo lugar, a contribuição do custo da movimentação da carga nos portos tem de ser relativizada. Efectivamente, Portugal não está muito competitivo neste indicador mas, mais uma vez, a superior competitividade dos países escandinavos em termos destes custos demonstra que o custo do trabalho não é, necessariamente, um factor que impede a competitividade. Factores como a gestão, a tecnologia e a logística entrarão, realmente, com mais peso neste cálculo. Sim, é possível aumentar a competitividade neste campo à custa da retribuição pelo trabalho portuário à moda chinesa – como fizeram os gregos no porto de Pireus, entregando uma parte da zona portuária à administração de uma empresa chinesa. Mas será uma solução inteligente? As condições de trabalho dos trabalhadores gregos sob gestão chinesa são muitíssimo precárias e há uma discrepância significativa no seu nível salarial em relação aos outros portos gregos, sendo essa a razão pela qual a gestão chinesa atingiu a sua melhoria de competitividade. Em terceiro lugar, é outra vez evidente, pelo posicionamento medíocre de Portugal em relação ao custo dos aspectos administrativos e burocráticos envolvidos na movimentação da carga, que o governo poderia fazer muito, neste domínio, para melhorar a competitividade dos portos portugueses. Então, por que é que governo e o patronato canalizam os seus esforços para a flexibilização do trabalho portuário?
A resposta tem a ver com a ofensiva geral do capital, do governo e da troika, aproveitando a crise, contra o que resta de um modelo de relações laborais baseado na regulação do mercado de trabalho através da contratação colectiva. Também tem a ver com os interesses dos grupos económicos que estão prontos para se aproveitarem de novas áreas de negócio portuário, abertas pela transformação das relações laborais estabelecidas.
Quanto ao custo do trabalho portuário, os estivadores grevistas estão a ser vítimas de uma campanha de desinformação (quiçá intoxicação!), na comunicação social, que procura isolar os estivadores e culpabilizá-los pelos direitos que têm conquistado desde a década de 1980, na sequência das mudanças tecnológicas nos portos. Nesta campanha várias celebridades mediáticas têm vindo a prestar um serviço ao governo e ao patronato. A mentira mais comum é de um sadismo terrível: a afirmação de que os estivadores ganham 5000€ mensais! Quem poderia sentir simpatia ou solidariedade por trabalhadores “braçais” que ganham mais do que um professor catedrático? A ideia transmitida é a de que estes trabalhadores são uns privilegiados que fazem greves fortuitas e que estarão a explorar os… empregadores!!
Num programa recente no canal televisivo SIC Notícias, Sónia Almeida, mulher de um estivador, fez a pergunta relevante: “Em que é que estas figuras baseiam as suas afirmações difamatórias dos estivadores?”. Em primeiro lugar, relativamente à afirmação dos 5000€, trata-se (infelizmente) de uma ficção inventada. Não é verosímil que entre os estivadores em greve hajam muitos trabalhadores que cheguem a salários mensais regulares de 5000€ com base no regime de trabalho normal, desde logo porque uma percentagem importante dos estivadores corresponde a trabalhadores eventuais que trabalham em função dos pedidos das empresas, podendo ser trabalhadores em situação precária ou temporária.
Mas, sim, de facto, é possível chegar a ganhar 5000€ por mês no trabalho portuário. Vamos ver como. A partir da tabela salarial actualmente em vigor e pelo contrato colectivo, consegue-se fazer alguns cálculos simples aplicados a uma das muito variadas combinações possíveis de prestações retribuídas. Trata-se de um horário de serviço extremo – mas o exemplo é útil porque na realidade as condições de laboração, os horários e a duração de trabalho nos portos são tipicamente extremos!
Por exemplo, um trabalhador da mais alta categoria da carreira – superintendente – poderia trabalhar 16 horas por dia, durante 22 dias seguidos, e mais 8 horas por dia todos os Sábados e Domingos do mês. Com esse horário, ele pode chegar a ganhar até aproximadamente 5.685.02€ (incluindo o subsídio de alimentação). Mas vamos analisar estas quantidades: 1) O vencimento de base do superintendente é 1.996,65€, mas 2.326,06€ no total se receber o subsídio de turno e por trabalho nocturno.[1] 2) O trabalho suplementar em dias úteis além do primeiro turno de 8 horas (ou seja, uma semana de 40 horas) – que pelo contrato colectivo é obrigatório quando a empresa mandar e isso acontece regularmente – teria de ser pago, até à aplicação do novo Código do Trabalho, com base numa retribuição estabelecida convencionalmente por turnos; portanto, estamos a calcular 6 horas por dia adicionais a 97,68€ por dia.[2] 3) No fim da semana, o trabalho suplementar tem mais um acréscimo de valor. Pelo primeiro turno o superintendente ganharia 113,57€.
Portanto, este exercício baseou-se evidentemente numa combinação simplificada mas intensiva de prestações e todos os valores referidos referem-se a salários brutos. Podiam-se fazer inúmeras simulações de horários para chegar aos 5.000€ por mês mas isso não adiantaria muito. (Por exemplo, podia tomar em conta ainda os horários de 24 horas seguidas que são uma realidade demasiadamente frequente para alguns trabalhadores.) O facto é que para lá chegar é preciso um regime de trabalho brutal que implicasse viver apenas para o trabalho. Por trabalhar tanto, o trabalhador mereceria não só os 5000€ mas, ainda, o bónus de um Porsche, tal e qual o terceiro carro do seu patrão, e, por último, um caixão de ouro no fim do ano! Por outro lado, o exemplo baseia-se na categoria mais alta da carreira, um trabalhador com responsabilidades exigentes em relação ao trabalho portuário. Para um horário de trabalho igual, o trabalhador médio do Porto de Lisboa (de base tipo B-V) chegaria a ganhar aproximadamente 4.412,58€. Esta retribuição processa-se em função do contrato colectivo e a lei com respeito ao trabalho suplementar. (Com a aplicação do novo Código de Trabalho os valores para o trabalho suplementar podem vir a descer significativamente!) Ora, não faz o mínimo sentido apontar o dedo aos vencimentos daqueles casos de trabalhadores que conseguem de vez em quando realizar um regime de trabalho brutal – o que implica o sacrifício do direito de descanso em troca da retribuição obtida – a não ser que se queira realmente atacar os níveis salariais estabelecidos convencionalmente. E na realidade toda esta história tem por objectivo a reivindicação do governo, patronato e troika de baixar a base salarial obtida pelos sindicatos na contratação colectiva. É isso que conseguiram fazer em Leixões e é isso que querem fazer no Sul!
Portanto, aqueles, como Ângelo Correia, que vieram à televisão fazer afirmações bombásticas deste tipo, têm a responsabilidade de demonstrar como tal é possível e, em vez de fazer acusações moralistas aos estivadores, explicar o que está em causa.
Ao contrário do que foi afirmado, televisivamente, por Ângelo Correia, a nova legislação não visa uma redistribuição “mais justa” das horas extraordinárias de um conjunto de trabalhadores, supostamente privilegiados mas, antes, a redistribuição dessas horas a novas categorias de trabalhadores precários nas áreas do trabalho em terra e de “logística” portuária. É assim que a legislação governamental visa precarizar o trabalho portuário em geral, tendo, por efeito de contágio, um impacto sobre as relações laborais dos trabalhadores sindicalizados. É, por isso, que os estivadores em greve prevêem o desemprego de uma grande parte dos trabalhadores efectivos (ou seja, os trabalhadores cedidos, diariamente, pelas ETPs empresas de trabalho portuário às empresas de estiva) e o afastamento de muitos trabalhadores eventuais, os quais terão contratos precários com essas empresas de cedência de trabalho portuário. Se permitirmos que isso aconteça nos portos, outros ramos de actividade sofrerão, por contágio, os efeitos deste modelo de flexibilização das relações de trabalho. Aliás é o contágio de uma desregulação já realizada das relações de trabalho no Porto de Leixões que está a minar o emprego em todo o sector portuário português!
Por outro lado, qual é o problema se um trabalhador ganhar bem pelo serviço prestado, de trabalho duro, para uma empresa que tem grandes lucros? É um pecado? A pobreza do proletariado do século XIX (ou em Portugal antes do 25 de Abril) será uma virtude melhor, uma meta para as relações laborais de hoje? Será que estas celebridades pensam que é preciso ser pobre para ser um operário honesto? Que argumentação perversa e mentalidade reaccionária! E qual é o problema se um trabalhador ganhar devidamente, devido à boa capacidade negocial do seu sindicato na contratação colectiva, por a sua alta produtividade permitir altos rendimentos ao seu empregador? Não é isso, supostamente, a virtude da função da contratação colectiva em democracia? Ou terá perdido a burguesia o apreço e a tolerância pela democracia e pela negociação laboral?
Vários sinais deveriam ter acordado o movimento sindical quanto à seriedade da situação mas, lamentavelmente, ainda há pouco eco do conflito no debate sindical:
1) Na última semana, várias vozes do patronato pressionaram o Governo, frontalmente, reivindicando o recurso à requisição civil. Aparentemente, o governo vai tentar evitar o risco de um confronto aberto, optando, para obter o mesmo efeito, pela alteração dos critérios dos serviços mínimos, redefinindo-os. Em vez de incidirem apenas no tratamento de produtos perecíveis e de primeira necessidade pretendem, Governo e empresas, que os grevistas tenham ainda o dever de tratar de tudo o que é indispensável à economia nacional. Como tudo o que tem a ver com a exportação – e até com a importação – pode ser invocado como indispensável à economia nacional, nesta crise, o governo vai, efectivamente, retirar força ao direito à greve. Se isso acontecer todo o movimento sindical sofrerá as repercussões desta precedência.
2) Um representante do patronato veio várias vezes a público acusar, de forma policial, o PCP e a CGTP (como se fossem uma entidade única anti-nacional) de estar por detrás da greve. Trata-se de uma táctica McCarthyista das mais elementares. Toda a gente sabe que o sindicato em questão é “independente, livre e democrático”, como rezam os seus estatutos, e que o PCP não tem influência na sua direcção. Algo diferente é que o PCP apoie, de alguma forma, a luta destes trabalhadores, o que os estivadores só poderão agradecer, como reconhecerão o apoio de todas as forças políticas que sustentem a justiça desta luta. E se há alguma convergência entre a greve e os objectivos políticos do PCP e da CGTP, isto é indicativo da situação política no país e não dos objectivos dos estivadores. Mas esse apoio valioso do PCP, e de outras forças da esquerda, de maneira nenhuma significa que se trata de uma greve fomentada por eles. Esta greve é uma resposta legítima de uma classe de trabalhadores que está a sofrer um ataque violento às suas condições de trabalho e de emprego.
Trata-se de um conflito laboral importante e legítimo – que entretanto envolve alguma divisão sindical. O acordo sobre o trabalho portuário que abriu a porta à nova legislação foi assinado pela UGT e pela Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários, federação filiada na UGT e onde se encontra filiado o Sindicato dos Estivadores de Leixões. Embora este sindicato represente, em maioria, os trabalhadores do porto de Leixões, no conjunto de portos portugueses é bastante minoritário. Quanto à UGT, a assinatura deste acordo é, infelizmente, consistente com a sua política de concertação a todo o custo, sendo muito compatível com a sua posição em relação à assinatura do “Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego”. Evidentemente, há diversas estratégias sindicais para lidar com os problemas actuais da economia e do emprego. Ora, sem querer entrar no conflito ideológico que divide, disfuncionalmente, o sindicalismo português, é preciso, contudo, constatar que a greve dos estivadores é um conflito exemplar em resposta às reivindicações patronais para a flexibilização e desregulação das relações laborais em torno da competitividade. As repercussões desta situação podem – e vão ser de certeza – sentidas muito além dos portos.
A campanha dos empregadores procura isolar os estivadores em greve da mesma maneira (embora ainda mais radicalmente) que, no geral, se procura dividir os trabalhadores do sectores público e privado no contexto das políticas de austeridade. Também cada vez mais, nos ruídos produzidos na internet e na “opinião pública”, outros trabalhadores do sector dos transportes em conflito, tais como maquinistas da CP, trabalhadores da Soflusa e da Transtejo, etc., estão a ser tratados em conjunto, como se fossem uma aristocracia de trabalho que tem uma vida privilegiada, e associam-se os conflitos, deslegitimando as reivindicações destes trabalhadores.
Os estivadores têm tido evidentes dificuldades em transmitir a sua mensagem. Embora se possa entender que entre sindicalistas da UGT haja um incómodo em relação ao conflito, devido à assinatura, pela UGT, do Acordo sobre o Mercado de Trabalho Portuário, surpreende a falta de empenho do resto do movimento sindical em torno da situação e, sobretudo, a falta de discussão do conflito. Como é que vão reagir se houver uma repressão dos estivadores em greve?
Em conclusão, sugiro uma reflexão sobre a história recente do movimento sindical internacional. Pensemos no sindicalismo americano, por exemplo, e no efeito que em 1981 a repressão, por Reagan, da greve dos controladores aéreos de PATCO, uma profissão reduzida de trabalhadores altamente qualificados e “privilegiados”, teve no declínio do poder negocial dos sindicatos norte-americanos, em geral, e na sindicalização. Consideremos o sindicalismo britânico e o efeito que a derrota em 1984 dos mineiros, outros “privilegiados”, teve nos recuos dos direitos dos trabalhadores desse país. Lembremos, então, o significado do lema sindical “solidarity forever”. Não se trata, apenas, de um slogan do passado histórico ou de uma ideia ideológica abstracta, mas de uma necessidade sindical!
Não esqueçamos o que o governo e o patronato tão bem entendem (e aplicam, se deixarmos): “vale tudo no amor e na guerra”… de classes!
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