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NUNO MIGUEL ROPIO
Há um ano, Gianluigi Nuzzi revelou, no seu programa de televisão, uma carta secreta do núncio apostólico Carlo Viganò ao Papa. Nos meses seguintes, bombardeou o mundo com cartas e documentos confidenciais de Bento XVI, expondo um Vaticano de traições, guerras de poder e influência de máfias. Nunca revelou as suas fontes, mas presos na Santa Sé estão já Paolo Gabriele, mordomo do Papa, que alegadamente fotocopiou tudo, e o informático Claudio Sciarpelletti. Na apresentação do seu livro "Sua Santidade", em Portugal, Nuzzi acusou o Vaticano de só ter agido contra os denunciadores.
foto REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS |
Gianluigi Nuzzi |
Refere no prefácio: "Não esperava que o Vaticano chegasse a prender alguém por suspeita de passar informações aos jornalistas". Mas prendeu. Vamos ficar por aqui?
A detenção de Paolo Gabriele é um gesto muito exagerado. Se um facto análogo ocorresse num outros país europeu democrático haveria pessoas na rua a protestarem. É indecente que alguém que passe fotocópias seja preso. A detenção das fontes de um jornalista é um sinal muito mau.
Choca-o Gabriele estar preso?
(Silêncio) Gabriele é católico. Uma pessoa que Wojtyla [João Paulo II] chamava carinhosamente de Paulus. Alguém que serviu Ratzinger [Bento XVI] durante muitos anos, fazendo chegar-lhe notícias de violações e outras situações que, de uma outra forma, não chegariam ao Papa. Creio que o perdão do Papa já foi assinado, mas haverá alguém que não quer que seja libertado, com medo que ele fale, porque não é um sujeito controlável. Fazer o Paolo Gabriele passar o Natal na prisão, privando a sua filha do pai, num momento tão importante para a vida de qualquer católico, faz a Igreja recuar séculos, a um período obscurantista.
Esta investigação irá atingir mais alguém?
Acho que este processo está encerrado. Quer o Gabriele, quer o Claudio (Sciarpelletti), têm recursos em curso. Não creio que haja uma continuação desta perseguição. Considero mais grave o crime de pedofilia do que o crime de fotocopiar.
O porta-voz do Vaticano afirmou que a investigação sobre o caso de fuga de documentos confidenciais do Papa vai continuar.
Vamos ver. Aceito apostas. O que é mais grave aqui: que o Paolo Gabriele tenha dado informação dos crimes ou quem cometeu esses crimes? Quem faz mal à Igreja? O Paolo?
Porque só são acusados os informadores?
Há uma vontade de deslocar o foco da informação para o informador. Quando leio notícias, não quero saber quem foi a fonte, mas se a informação é verdadeira. O que salta à vista é que todos os cardeais envolvidos são italianos. O livro testemunha a crise muito forte da Cúria Romana. O dogmatismo de Bento XVI tem de ser premiado pela purificação da Igreja, mas não soube escolher as pessoas que o rodeiam.
Algumas ligadas a máfias?
Até há poucos anos atrás o Vaticano era um paraíso fiscal. O crime de lavagem de dinheiro só foi introduzido em 2010. O IOR [Instituto das Obras Religiosas - Banco do Vaticano], nas décadas de 80 e 90, "lavou" dinheiro da máfia. É algo que vem escrito nas sentenças que os juízes emitiram após a morte do presidente do IOR [Roberto Calvi], encontrado morto, em Londres, em 1982. Na década de 90, o IOR "lavou" dinheiro da corrupção política. Era um banco offshore da Europa. Só depois do 11 de setembro [de 2001], com as políticas de transparência exigidas pelos americanos e o Banco Mundial, que motivaram os governos europeus e o Banco Central Europeu, o IOR começou a atuar de acordo com as regras financeiras, para evitar que o pusessem numa lista negra, que o excluiria de qualquer atividade financeira com os países mais importantes.
A máfia que refere é a italiana ou de outros países?
Quando os juízes no caso Calvi aludem à máfia, referem-se à "Cosa Nostra". Mas nos anos 80 e 90 [do século XX] havia notas do FBI que apontavam o Banco Ambrosiano [cujo o Banco do Vaticano era o principal acionista], de Roberto Calvi, como a ligação entre a finança e o Cartel de Medellín [rede de traficantes de droga colombianos]. Quando estive em Buenos Aires [Argentina], entrevistei a Ayda Levy, mulher do Roberto Suárez [boliviano considerado o rei da cocaína na América], que referiu que o marido tinha um amigo na Europa chamado Calvi. E que, seis meses antes de morrer, Calvi tinha pedido ajuda ao marido, porque Pablo Escobar [o traficante mais rico do mundo] queria recuperar o dinheiro que tinha depositado no Banco Ambrosiano. Estes são factos que voltam a surgir após alguns anos. Mas o julgamento em Roma, contra Calvi, acabou com imensas absolvições. Decorre agora um julgamento contra quatro indivíduos, cuja a identidade é desconhecida.
Ninguém na Justiça italiana pegou nesta obra? Porque só o Vaticano a usou para prender as fontes.
Este livro tem como ponto fulcral o Vaticano, um Estado que não colabora habitualmente com as autoridades italianas. Todos os pedidos de assistência judicial não recebem respostas ou recebem respostas genéricas. Não existe em Itália um único juiz satisfeito com as respostas obtidas do Vaticano. Por isso, imagino este livro como um aprofundamento para a grande família da Igreja, mais do que um instrumento para a Justiça italiana.
Ainda que o Vaticano não atue, a Itália tem neste livro alguns cidadãos como atores principais. A Justiça não agiu nestes seis meses porquê?
Com que hipótese e a quais crimes se esta a referir?
Não conheço o sistema judicial italiano. Mas, vejamos: tráfico de influências, fuga de capitais, formação de cartéis...
Talvez no Vaticano não. Com o meu outro livro, "Vaticano SA", os magistrados italianos apreenderam todo o meu arquivo para as suas investigações sobre casos de corrupção decorridos em Itália. Mas isto aconteceu muitos meses depois do livro sair.
Não acha invulgar que perante tais denúncias de corrupção, apenas o mordomo esteja na cadeia?
Este livro denuncia indivíduos com responsabilidades morais. Também mostra como as lógicas, dentro do Vaticano e do Vaticano com outros estados, são mais fortes que pensamos. Mostra a lógica, sistemas e mecanismos da corrupção. Veja, nenhuma das pessoas que, ao longo de anos, reparou que Gabriele fotocopiava papeis foi atingida, perseguida, despedida ou transferida. Porém, aqui temos um mordomo do Papa que, desde 2006, andou a fotocopiar papeis e ninguém reparou nisso? O responsável da segurança, Domenico Giani, ex-agente secreto, foi confirmado nessa função. O secretário pessoal do Papa, monsenhor Georg Gänswein, que atribuía funções de secretaria ao Paolo Gabriele, foi promovido a arcebispo. O único que continua na prisão é Gabriele.
Qual foi a sensação quando chegou às suas mãos tal documentação?
Para o primeiro livro, "Vaticano SA", juntei 4000 documentos. Quando os vi pela primeira vez fiquei atónito, porque nunca tinha visto documentos do IOR. Quando li os extratos do Giulio Andreotti [sete vezes primeiro-ministro de Itália, entre 1972 e 1992], com valores de 30 milhões de euros, fiquei estupefacto. Então liguei-lhe e perguntei-lhe porque tinha tal conta num banco offshore. Não sei qual é o respeito que os políticos portugueses têm para com os jornalistas, mas Andreotti respondeu-me, através da secretária, que não se lembrava de ter essa conta. 30 milhões de euros! Isto, em Itália, diz-se que é "gozar na cara de alguém".
Mas, em relação a esta obra?
Quando vi a primeira assinatura de Bento XVI, com uma letra muito pequena, tive uma emoção muito forte. Porque essa caligrafia, tão pequenina, demonstra o poder desse homem, mas também a sua solidão. Paolo Gabriele disse em julgamento que Ratzinger não era informado do que se passava como deveria. Nos últimos meses tentaram silenciar Gabriele.
Qual foi a imagem do Vaticano que começou a construir na sua mente, com o desenvolvimento desta investigação?
Imagine que o Vaticano é como o mar, profundo, profundo. Onde não se consegue conhecer a maioria das espécies marinhas, porque estão a uma profundidade tal, que não somos capazes de chegar lá.
O Vaticano mudou com este livro?
Ainda é cedo. Este livro abre um precedente, permitindo às pessoas que estão fora do sistema saber o que está debaixo do tapete, os fatos desconhecidos e os fatos graves. Pela primeira vez na história tivemos informação do Vaticano, o único país da Europa com um só jornal diário.
O Vaticano não gosta de jornalistas?
(Risos) Veja o que eles fizeram recentemente: um julgamento com jornalistas selecionados. Não sei se sabe que grande parte dos orçamentos de entidades e organismos que compõem o Vaticano são completamente privados. O temor dos seus colegas correspondentes estrangeiros é que lhes retirem a acreditação e não possam entrar nas salas do Vaticano.
A contratação do jornalista americano Greg Burke para assessor do Vaticano alterou alguma coisa?
Um jornalista da Opus Dei?
O correspondente da Fox News em Roma.
(Agita a cabeça)
Que sinal é esse?
Que quer que comente? Essa nomeação...
Nada mudou, é isso?
Eles mostraram as celas onde Paolo esteve detido?
Como são essas celas?
O Paolo disse que a primeira cela em que esteve era tão pequena, que não conseguia abrir os braços. Será que foi torturado ? Porque não chamam jornalistas de Londres para ver estas salas. Qual é o medo da transparência?
Pensou colocar os documentos num site, como o WikiLeaks?
Não. Aliás, quem falou em "VatiLeaks" foi Lombardi [Federico, porta-voz do Vaticano]. Entre o "WikiLeaks" e esta história há um abismo. Assange [Julian, jornalista australiano] recebeu documentos sobre a segurança militar dos Estados Unidos e encontrou apoio no movimento contra o imperialismo americano. Sou jornalista, tive acesso a documentos, fiz entrevistas, fiz viagens, investigações e criei um livro. Se fosse algo sobre a segurança do Vaticano não publicaria.
Uma das principais personagens do livro é o cardeal Tarcisio Bertone [secretário de Estado do Vaticano]. Que me pode dizer sobre ele?
Qual é a outra pergunta?
E sobre Joseph Ratzinger?
Esse já é melhor. (Pausa) É um pastor revolucionário. Um pastor que defendeu que as questões de pedofilia deveriam ser resolvidas pelos tribunais civis. Deixa uma obra de purificação impensável no mundo latino, que encontrou muitas resistências. Penso que é um ancião e está cansado. Não pode mudar o seu secretário de Estado [Bertone], mesmo que queira, porque teria um eco muito forte. Significaria colocar uma hipoteca sobre o pontificado. O próximo Papa não pode ser italiano.
Porquê?
Porque há cardeais melhores em todo o mundo.
Falamos de vícios?
A riqueza da Igreja reside no fato de ser de todos. Há uma região na Itália, que se chama Ligúria, muito pequena, que tem cinco cardeais. Entende? O Vaticano não pode ser "italiano cêntrico". O eixo deve deslocar-se. Imagine um papa chinês, filipino ou brasileiro.
Tem um discurso generoso para com Bento XVI, o homem dogmático atrás de João Paulo II.
Mas era outra época. Uma outra Europa. Havia outros limites. No Vaticano ainda hoje sobrevive uma parte dessa mentalidade, onde uma critica é vivida como um ataque.
É a mesma personagem que se manteve nos bastidores e agora está na liderança, a quem não é desconhecida a realidade retratada pelo seu livro.
Não perdoo ninguém porque não é esse o meu papel.
É jornalista. Esta é a sua obra. E, no final da leitura estamos perante alguém que não tem um comportamento tão criticável? Apenas alguém que não consegue controlar uma máquina.
É o juízo que faz depois de ler o livro. Que eu ate posso partilhar. Seguramente acho mais criticável as atitudes de outras pessoas que rodeiam o Papa.
Esta obra está a cumprir o seu desígnio?
Sim, porque ela dá-nos a oportunidade de, através documentos privados, dar a volta ao mundo católico, observando as contradições, os jogos de poder e, sobretudo, a hipocrisia de quem apresenta uma cruz sem ver quem está crucificado nela.
Crê que haverá consequências?
Acredito que a informação acelera os processos de mudança. A informação não é a mudança. Posso garantir que o meu primeiro livro, "Vaticano SA", conseguiu acelerar os processos de transformação do sistema financeiro do Vaticano. Isso é uma satisfação. Compreendo que este livro testemunhe a violação da confiança do papa. Mas a informação é nosso dever. Não podemos guardar a notícia na gaveta, senão faríamos outro trabalho.
Sente-se perseguido?
Nunca me armei em vítima e não o farei agora.
É católico?
Sou cristão e batizado.
Depois desta obra, com as consequências que teve, é menos religioso?
A fé é um património pessoal. Entre a Igreja de todos e a Igreja do Vaticano vai uma grande distancia.
Até porque este livro não é sobre fé!
É um livro sobre pessoas que têm uma fé mal depositada.
E os efeitos deste livro são os que esperava?
Em que aspeto?
De certeza que não o queria para enfeitar uma prateleira, certo? Sucesso não lhe falta...
Até trabalho mais.
Os negativos também posso referir: uma alegada fonte sua está hoje presa...
Sofro pelo Gabriele estar preso. Estava consciente dos riscos. Mas acho uma profunda injustiça. (Silêncio) Estou convicto que quando Gabriele sair da prisão virá mais forte, porque é uma pessoa sã e honesta. Vou-lhe dizer algo que nunca contei a ninguém. Quando visitei o Gabriele, transmiti algo à minha mulher - algo que nunca fazia: "Valentina, hoje conheci uma pessoa que tem luz nos olhos". Depois, é claro, sei que nunca irei trabalhar para a televisão pública italiana [RAI], que não dedicou um minuto a este livro. Nunca me entrevistaram. Dão-me pena aqueles jornalistas que baixam a cabeça. Eu posso olhar no espelho todas as manhas, já eles não sei.
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