Reconfigurações na saúde
por Sandra MonteiroA lógica é simples. Na doença, as pessoas vêem-se numa situação de  extrema fragilidade, uma situação corrosiva para si próprias e para o corpo  social. As melhores hipóteses de recuperação do bem-estar dependem da montagem  prévia de mecanismos de protecção eficazes, a que todos, sem excepção, tenham  acesso. O Estado, através de um contrato social com os cidadãos assente na  cobrança de impostos progressivos em troca do fornecimento de serviços públicos  adequados às necessidades das populações, organiza a gestão dos recursos, bens e  equipamentos que melhor podem garantir a universalidade do acesso e a qualidade  destes serviços. Deste modo, o financiamento do serviço prestado é feito em  função dos rendimentos de cada um, e não do seu estado de saúde, para que, em  contrapartida e sempre que necessário, os cuidados de saúde recebidos dependam  apenas do estado de saúde de cada um, e nunca do seu nível de rendimentos. É  esta a lógica do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
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Pouco mais de trinta anos passados sobre a criação do SNS em  Portugal, e apesar de todos os ataques de que é alvo, são muito significativos  os ganhos em saúde que trouxe à população. Eles estão bem expressos na  diminuição da mortalidade infantil ou no aumento da esperança de vida (ver, do dossiê desta edição, o artigo de Cipriano Justo). Não  será também difícil compreender que os impactos sociais da actual crise  económica em Portugal atingiriam níveis incomparavelmente mais devastadores se,  a par de outras protecções sociais (segurança social, subsídios de desemprego,  etc.), não fosse possível contar com o SNS. Sobretudo quando este é um dos  países com maiores desigualdades socioeconómicas do mundo desenvolvido, uma  característica que muito contribui, por si só, para acentuar os problemas de  saúde pública.
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É certo que o SNS está confrontado com inúmeros problemas e com  desafios a que precisa de responder, da garantia da cobertura de médicos de  família à melhor gestão e aproveitamento dos seus recursos (humanos e em  equipamentos), passando pela redução das despesas com medicamentos (através dos  genéricos, das unidoses, etc.) ou ainda pela resposta mais integrada a situações  não-agudas, pela coordenação dos diversos subsectores (organização, informação)  e pela co-produção do próprio serviço público, potenciando o encontro de lógicas  institucionais (contributo dos agentes que prestam e conhecem o serviço) e de  lógicas participativas (associando, com responsabilização e autonomia, doentes e  comunidades). Estão a ser dados passos importantes em alguns destes domínios,  como pode verificar-se através do caso dos grupos de doentes organizados no  interior do SNS (ver, no mesmo dossiê, o artigo de Maria João  Fagundes). Registam-se também algumas melhorias, por exemplo em âmbito  hospitalar, que vão da maior internalização de meios auxiliares de diagnóstico  até à ligação em rede das informações das várias consultas (com ganhos para a  saúde, mas também económicos, evitando a repetição de análises, etc.). Há também  ganhos em conforto para os utentes, como nos casos em que houve requalificação  de espaços, simplificação de procedimentos (marcações de consultas, colocações  de vinhetas nas receitas), com claros ganhos de tempo e de tranquilidade nas  unidades de saúde. Há até casos em que se optou pelo envio regular de mensagens  de texto para o telemóvel dos utentes, recordando as consultas agendadas.
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Estas facetas do SNS também precisam de ser conhecidas,  apropriadas, multiplicadas. Mas características como moderno, ágil, adaptado às  novas tecnologias, eficiente, atento a outras necessidades dos utentes que não  as mais vitais, valorizando e enquadrando institucionalmente a ética de serviço  públicos dos profissionais, são, todas elas, vistas como ameaçadoras, e com  razão, pelos interesses privados que vêem no negócio da saúde um dos mais  lucrativos em que podem investir. Não soubemos ainda recentemente que os quatro  principais «grupos privados na área da saúde facturaram 694  milhões de euros em 2009, um ano de crise, mais 42,5% do negócio relativamente  ao ano anterior», e que esses grupos esperam um aumento da procura de  serviços privados, se aumentar a população que possui um seguro de saúde (Diário de Notícias, 1 de Fevereiro de 2010)?
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Apesar de os serviços privados de saúde falharem na demonstração  da uma maior eficácia para garantir o bem-estar das populações, e não obstante  esse rumo estar a ser descredibilizado e corrigido até por instâncias como a  Organização de Cooperação Económica (OCDE) e por países que o levaram ao limite,  como os Estados Unidos (ver, também nesta edição, o artigo de  Martine Bulard), é neste sentido que os interesses privados, em Portugal  como noutros países, continuam a tentar reconfigurar os sistemas de saúde. Esse  propósito, central ao projecto neoliberal mas demasiado caro para a saúde das  populações, tem conseguido apoiar-se em políticas públicas que dependem de  arranjos permitidos dentro do próprio Estado.
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A operação é conhecida. Encoraja-se a degradação dos serviços  nacionais de saúde, martela-se constantemente na comunicação social que o  sistema público é insustentável e ineficaz, propõem-se alternativas privadas e,  depois de muitos terem aderido aos novos sistemas, conta-se com a sua  cumplicidade para deslegitimar o serviço público, abrindo a porta a que se ponha  em causa a provisão pública. Enquanto isso, o prestador privado utiliza a  imagem, habilmente construída, de eficácia para penetrar no SNS através da  gestão empresarial de equipamentos públicos e de parcerias entre o público e o  privado. Aparentemente, e apesar das apreensivas declarações governamentais,  pouco importa que sucessivos relatórios do Tribunal de Contas demonstrem que  tais parcerias tendem a lesar o Estado e o interesse público. Os projectos  mantêm-se, como se vê com o novo hospital de Loures. Mesmo havendo evidência de  que os riscos não são partilhados nem assumidos pelos privados, de que as  parcerias são pouco transparentes e inflexíveis na renegociação, de que não são  enquadradas por uma definição de boas práticas, de que aparentemente aliviam o  orçamento de Estado no curto prazo mas não impedem que os custos sejam  transferidos para gerações futuras e, por fim, de que nada prova que permitam  aceder a melhores condições de crédito… A entrevista dada pelo juiz jubilado do  Tribunal de Contas, Carlos Moreno, mostra bem o quanto o Estado negoceia em  situação de fraqueza, o que nunca augura nada de bom (Jornal de  Negócios, 22 de Janeiro de 2010).
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A manter-se este quadro de transferências ruinosas de recursos,  bens e equipamentos para o privado, é legítimo perguntar, como faz São José  Almeida no Público (30 de Janeiro de 2010), «de  que estamos a falar quando falamos de mais 10 por cento para o SNS» no  quadro das dotações do Orçamento de Estado de 2010. É que, quando os poderes  públicos aceitam ser usados pelo mercado e pelas narrativas que este constrói  para reconfigurar direitos sociais fundamentais como o direito à saúde, corremos  o risco de não ver as reconfigurações do SNS que se escondem por trás de  investimentos públicos mal orientados.
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sexta-feira 5 de Fevereiro de 2010
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