por Sandra Monteiro
Há períodos em que a realidade se impõe, em toda a sua complexidade. São tempos em que se sente, mesmo que habitualmente se ande mais distraído, a necessidade de compreender as ligações visíveis, e as menos visíveis, entre os processos e os actores. De fazer escolhas que sejam capazes, idealmente, de respeitar uma relação sustentável com os diferentes tempos da história: escolhas com memória, escolhas que construam um futuro entusiasmante porque instauram um presente em que cada um se sente mais livre para ser o que deseja ser e mais igual para satisfazer as suas necessidades.
Não precisávamos de assistir ao fracasso do neoliberalismo para sabermos duas coisas: a primeira, que esse modelo não nos aproxima, nem em termos socioeconómicos, nem ambientais, desse ideal que atravessa os tempos; a segunda, que a construção de alternativas a esse modelo não pode cair no simplismo ilusório de qualquer outro «pensamento único». A realidade, no dinamismo das suas contradições, no complexo jogo em que as ideias ganham força material, não se compadece com receitas esquemáticas, emparedadas em muros feitos de certezas.
A crise que hoje vivemos, com tudo o que de dramático encerra, não deixa de favorecer uma leitura do real como campo de possíveis em que podemos actuar. Por vezes de forma imperceptível, faz‑nos descobrir que não sabemos tudo e que, ao mesmo tempo, estamos longe de não saber nada. É também por isso que os momentos concretos que vivemos importam. Situa‑nos, perante nós e perante o mundo. Os versos de uma canção de José Mário Branco resumem bem essa relação com a realidade: «Ensinas-me a fazer tantas perguntas / Na volta das respostas que eu trazia / Quantas promessas eu faria / Se as cumprisse todas juntas» («Inquietação», Ser Solidário, 1982).
Talvez o primeiro desafio que a realidade hoje nos coloca seja o de sermos capazes de identificar os campos em que temos perguntas e aqueles em que temos respostas. Uma resposta não é, em si mesma, sempre melhor do que uma pergunta (e inversamente). No debate de ideias, como na apresentação de propostas, todo o rigor tem que ser colocado nessa distinção. Como poderíamos ter a ilusão de estabelecer relações de confiança com os outros (e connosco mesmos) se aparentássemos estarem já traçados os caminhos que ainda estamos a descobrir ou, por outro lado, se não estivéssemos presente com soluções concretas para problemas responsáveis por tanto sofrimento? Ainda que tenhamos que colocar imensas perguntas sobre como convulsionar a ordem social estabelecida, para que a exploração de seres humanos e do planeta deixe de ser legítima, não podemos deixar de contribuir com todas as respostas que pudermos dar para combater essa exploração.
O segundo desafio que a realidade nos coloca consiste em sermos capazes de distinguir os campos em que temos consensos daqueles em que temos conflitos. Num país marcado, e menorizado, por 48 anos de ditadura, continua a ser demasiado generalizada a tendência para encarar todo o conflito como negativo, para o evitar a qualquer custo. Em si mesmo, o conflito, tal como o consenso, não é bom nem mau. Todas as sociedades são conflituais e em todas as sociedades se geram consensos. Negativo é, sobretudo, enganarmo‑nos nas conclusões a que chegamos quanto ao que nos divide ou nos une, provavelmente porque isso não resulta de um processo de livre formação, expressão e aferição de pontos de vista.
Que sentido faz associarmos automaticamente «liberdade», «estabilidade» ou «unidade nacional» a algo positivo, se não soubermos como nos posicionamos em relação aos conteúdos concretos a que esses termos se referem? E se estiver em causa a «liberdade» de explorar ou de cometer actos criminosos impunemente? Ou a «estabilidade » que permite manter o desastroso rumo do capitalismo de casino (em vez de impor instrumentos públicos capazes de melhorar a vida das populações)? Ou a «unidade nacional» em torno de arranjos e acordos, não publicamente explicitados, que erguem falsas fronteiras entre o que tantos portugueses têm em comum com tantos outros cidadãos europeus? Termos como estes fazem parte de um léxico que pulula pelo espaço mediático, como se a sua simples evocação dispensasse a argumentação sobre a bondade do seu conteúdo. Apoia‑se a recondução de José Manuel Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia porque é português e isso favorece o país. Aceitaríamos que um presidente de qualquer outra nacionalidade favorecesse o seu país? É esse o projecto europeu que defendemos? Não importam as políticas concretas, neoliberais e belicistas, que o presidente da Comissão pôs em prática?
Defende‑se como direito inalienável a privacidade de quem pode ter enriquecido ilicitamente, mesmo que isso comprometa uma investigação de potenciais crimes de corrupção que, por sua vez, corroem toda a sociedade. Reagimos da mesma forma quando essa «intimidade» é devassada ao contrairmos um crédito bancário ou quando os mais pobres são obrigados, para terem acesso a apoios sociais, a essa exposição? Como afirmava Pedro Adão e Silva num artigo recente, temos uma «indignação selectiva», grande «perante a compressão de direitos dos que, ganhando muito, fogem ao fisco», mas «quando se trata de pobres, a única indignação é com a fraude no benefício de prestações» [1]. Fala‑se muito de crise de valores, mas interroga‑se pouco a facilidade, ou o desdém, com que um certo moralismo critica as escolhas trágicas de quem é pobre, quando trata com complacência as escolhas de quem é rico, mesmo que sejam trágicas para o resto da sociedade.
Insiste‑se durante anos na certeza de que as reformas projectadas desde o fim dos anos oitenta para o ensino superior vão melhorar a qualidade do ensino, garantir apoios sociais do Estado e assegurar uma maior «empregabilidade». Será possível continuar a insistir nesta ficção, quando se comprova agora que o resultado foi um aumento de 425 por cento, entre 1995 e 2005, nas propinas do ensino público, o que faz com que as famílias portuguesas sejam «das que mais pagam» na Europa pela educação superior («o dobro do valor de vários países europeus»), e que estejamos a caminhar a passos largos para um ensino «elitista» e com sérias «deficiências de equidade» no acesso [2]?
Sabemos que a resistência das pessoas à violência quotidiana introduzida nas suas vidas tem limites. Não sabemos quais são esses limites. Sabemos que por vezes são «pequenas coisas» que se tornam insuportáveis. Ser um trabalhador precário, excluído do subsídio de desemprego, e ouvir repetidamente afirmar, a propósito dos clientes do Banco Privado Português (BPP), que quem tem 300 mil euros de poupanças nem sequer é rico. Descobrir que os serviços públicos obrigam a renovar um documento que jamais se imaginou que caducasse: uma certidão de óbito. Olhar para a geração dos pais e constatar que todos os dias se tem medo de não conseguir dar aos filhos as condições de vida que se gostaria, quanto mais ter a expectativa de os ajudar quando se tornarem adultos.
Sabemos também que as perdas não são irrecuperáveis. Pode tentar‑se «fazer de cada perda uma raiz / e improvavelmente ser feliz» [3].
quinta-feira 7 de Maio de 2009
Notas
[1] «A indignação selectiva», Diário Económico, 21 de Abril de 2009.
[2] Cf. Diário de Notícias de 3 de Maio de 2009 (http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1219940).
[3] José Mário Branco, «Ser solidário», álbum Ser Solidário, 1982.
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in Le Monde Diplomatique - 2009-Maio
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