A resposta conservadora às fendas que estalam no capitalismo neoliberal e revelam graves problemas estruturais não é surpreendente. Ela assenta na ideia de que a organização social é simples e natural, devendo os momentos de instabilidade ser vistos como o preço a pagar pelo desenvolvimento geral que a globalização trouxe ao mundo, após séculos em que segurança e estabilidade eram sinónimo de subdesenvolvimento.
.
Trata-se de uma subtracção da sociedade à sua história, quando ela só pode ser compreendida no tempo e no espaço, nas dinâmicas de conflitos e consensos entre ideias, actores e circunstâncias concretas. Para completar essa subtracção, nada como encontrar uma forma de a legitimar que possa ter um eco favorável junto do maior número de pessoas possível. A dupla legitimidade da religião própria como intolerância do outro e da economia como ciência infalível e sem espaço para a pluralidade é um dos mais poderosos mecanismos de persuasão a que o conservadorismo neoliberal recorre para intervir no debate em que se confrontam diferentes visões do mundo.
.
João César das Neves vem fazendo isso mesmo há já muito tempo, mas há que reconhecer que, talvez com o incentivo da crise, tem vindo a apurar a técnica. O professor de economia na Universidade Católica Portuguesa, presença assídua nos palcos mediáticos e que foi conselheiro para os assuntos económicos quando Aníbal Cavaco Silva era primeiro-ministro, é autor de bibliografia que vai do ensaio à ficção. No fim de 2009, continuando a centrar-se em temas religiosos e económicos, publicou um artigo de opinião na forma de «Conto de Natal» [1] e um livro infanto-juvenil, O meu livro de economia [2], que ilustram na perfeição o recurso à tal dupla legitimidade religiosa e económica. Mensagem de Natal e de Ano Novo, dir-se-ia.
.
No seu «Conto de Natal», César das Neves relata um sonho em que visita uma «Parada das religiões» (cristianismo, islamismo, budismo, maçonaria e marxismo) na qual estaria presente «a humanidade inteira». Não fique o leitor indeciso entre apontar a ausência de parte significativa da humanidade (hindus, ateus…) e o excesso ideológico que leva à inclusão do marxismo, porque o sonho tem outros elementos com potencialidade de pesadelo. Agora que o espectro do islão paira sobre a Europa e faz renascer o mito da sua vocação por essência conquistadora, o conflito central é o que opõe os dois primeiros lugares da parada: à frente o cristianismo, a seguir o islamismo.
.
Ficamos a saber que o islão, religião do minarete, do livro e da oração, pode ter fiéis ruidosos e numerosos, mas só a «humilde presença do cristianismo» mostra como «ser cristão não é, antes de mais, aprender dogmas, rezas, ofertas ou mandamentos, mas viver uma relação pessoal de amizade, contínua e permanente com Alguém», porque «a verdade da fé não é fidelidade. É intimidade».
.
Não é novo este espírito, tão pouco natalício, em que a vivência da religiosidade própria é incapaz de conviver com o respeito pelas formas de religiosidade dos outros. Para muitos crentes e não crentes (que diriam o mesmo sobre qualquer fé), não é fácil compreender como tanta intimidade com Cristo pode resultar em tão pouco amor ao próximo, em tão pouca consideração pelas razões dos outros. Mas esta forma de olhar o mundo está presente em todas as manifestações humanas que convivem mal com a diversidade de caminhos e a pluralidade de interesses e escolhas que existem a montante das respostas sociais.
.
Neste sentido, O meu livro de economia, «ciência que estuda algumas das coisas mais simples e naturais do mundo» e que no Natal voou das prateleiras das livrarias e estará agora em tantos lares para «explicar aquilo que a economia realmente é», é muito esclarecedor. A linguagem é pensada para crianças dos 6 aos 10 anos, tornando o conteúdo de uma limpidez cristalina. O narrador é um pai, professor de economia, que responde às perguntas da filha. As «lições» surgem com exemplos do quotidiano, em família, deixando entrever o retrato de uma mãe, psicóloga, que se ocupa de tarefas domésticas e do cuidados dos filhos, só marginalmente intervindo na conversa.
.
A própria família do livro parece ser desenhada com traços e papéis do que César das Neves entende ser o primeiro pilar do bom funcionamento da sociedade e do sistema económico: a «tradição», os «hábitos» e «costumes», a «maneira normal de fazer». A esta forma de entender a tradição, pela qual não passou nenhuma consideração crítica do quanto ela tem de construção social (e de invenção), o autor junta dois outros pilares: a «autoridade» e o «mercado», formando os três um «equilíbrio» compensador das «falhas» um dos outros.
.
A autoridade de que fala o autor é o Estado, com as leis, obrigações e impostos que impõe aos cidadãos, porque ele «dá-nos muitas coisas» («polícia, tribunais, muitos hospitais e escolas», etc.), mas «não produz nada» e «tudo o que gasta é nosso». A este reino da imposição é contraposto o da liberdade e da democracia, uma vez que o «mercado» (terceiro pilar) é constantemente «referendado» em cada compra pelo consumidor, através dos «votos diários no mercado». E nem vale a pena pensar em todos os arranjos institucionais que o fazem configurar-se e funcionar de uma determinada maneira, porque lá vêm o mito dos «mercados eficientes», sempre a tender para o equilíbrio, a comparação da sua «instabilidade» com a «força da gravidade» (não é invalidada por os pássaros voarem) ou mesmo a negação da exploração (até no «mercado de trabalho», ninguém fica a perder), da troca desigual e da necessidade do recurso ao crédito (é sempre um investimento), já para não falar da pura equiparação do proteccionismo ao racismo [3].
.
Neste livro, César das Neves parece pensar que ainda não percebemos que mais vale a actual riqueza instável (de quem?) do que a pobreza imutável dos séculos passados, como se vivêssemos muito melhor mas não soubéssemos ser felizes (por ignorarmos que «a felicidade, afinal, vem do coração», «não depende da economia»). Mas estamos a percebê-lo. Não aceitamos é que nos encerre nessas duas «alternativas», porque não temos seis anos nem ignoramos onde nos têm levado esses simplismos da narrativa neoliberal. Há que agradecer-lhe, ainda assim, por desafiar os economistas que não embarcam nestas narrativas a escrever para públicos infanto-juvenis. Espero que eles o oiçam, já em 2010.
.
terça-feira 5 de Janeiro de 2010
Notas
[1] Diário de Notícias, 21 de Dezembro de 2009.
[2] Lançado a 18 de Dezembro pela Texto, Alfragide, 2009.
[3] «Infelizmente, tal como há racismo entre pessoas de cor diferente, também há muitas pessoas que não querem ver produtos estrangeiros à venda cá no nosso país e fazem “proteccionismo”, procurando dificultar esse comércio que, no entanto, torna toda a gente mais rica» (p.57).
.
.
Ver no D'Ali e D'Aqui
.
Sem comentários:
Enviar um comentário