Quantas vezes já ouvimos estas palavras, ou até demos por nós a dizê-las: «toda a gente sabe…». Se fizermos um esforço de distanciamento e rigor, podemos concluir, ou pelo menos admitir, que o enunciado que elas antecedem talvez não seja assim tão universalmente sabido, nem sequer reconhecido como verdadeiro ou indiscutível. Mas, entretanto, o efeito foi conseguido: as palavras ficam lá, como que a marcar a importância e a autoridade – difusa, mas pesada – do que vai ser exposto, como que a acelerar o pensamento de quem ouve, ou lê, e desprevenidamente pudesse ter sido tentado a parar, a reflectir criticamente sobre o que lhe é apresentado. Ao afastar dúvidas e suspensões de juízos, fecha-se a reflexão e o debate antes mesmo de eles terem começado. Nas mãos de um indivíduo, trata-se de recorrer a um dispositivo retórico para legitimar um argumento ou opinião, com vista a persuadir. Nas nossas sociedades, traduz uma ampla generalização de concepções e preconcepções que constituem a própria tessitura da complexa construção política, socioeconómica e cultural que é a globalização neoliberal. E chamamos-lhe pensamento único.
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O problema do pensamento único é que, apesar da perspectiva simplista e ficcional com que aborda o real, impregnou de tal forma as nossas mentes que só uma crise com dimensões dramáticas veio criar disponibilidade para questionar o que «toda a gente sabe», para escutar os silêncios que o pensamento único também edificou, tanto nos discursos como nas práticas. É altura de olharmos para o mito liberal da sociedade como soma de indivíduos atomizados e movidos unicamente por uma racionalidade egoísta; para pensarmos na complexidade de razões que levam os indivíduos a agir e a cooperarem entre si para o bem comum. É altura de encararmos as raízes profundamente ideológicas, e sem sustentação na análise da realidade, da oposição do mercado ao Estado, e do carácter natural e eficiente do primeiro por oposição aos constrangimentos e ineficiência do segundo.
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Não para cair em novos simplismos, mas para compreender as dimensões políticas e o papel que os Estados e os governos tiveram (e têm) na construção do mercado e desta economia mercantil e financeira a que chegámos. Porque após os «salvamentos dos bancos» já não é evidente dizer-se que de um lado estão os investidores, dinâmicos, que correm riscos e que têm que ser por isso devidamente recompensados, já que ninguém os protege quando tudo corre mal, enquanto do outro está a massa dos trabalhadores, e em especial os funcionários públicos, por natureza preguiçosos e incompetentes, sempre a sonhar com a troca do trabalho árduo pela protecção e pela assistência do Estado. Não é que tudo esteja bem no sector público, mas convém não nos enganarmos quanto ao que queremos reparar.
Só havendo uma reflexão aprofundada sobre estas e outras questões dentro de cada sector profissional e na sociedade será possível fazermos escolhas informadas e conscientes sobre as políticas em que nos revemos. Aliás, não será essa apropriação do espaço público que pode reaproximar os cidadãos da política? Um dos sectores que deve fazer um esforço urgente para se pensar a si mesmo à luz do que a crise nos revela sobre o fracasso do modelo neoliberal é o da comunicação social (e desde logo, os jornalistas). No entanto, também aí continuam a multiplicar-se os silêncios – como se a reflexão sobre o campo mediático e a profissão dos jornalistas pudesse ser um exclusivo sindical ou dos académicos da área – ou, no sentido inverso, a reproduzir-se formulações do tipo «toda a gente sabe». O problema é o mesmo.
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Isso foi visível uma vez mais no processo de discussão da chamada Lei do Pluralismo e da Não Concentração nos Meios de Comunicação Social (proposta de lei n.º 215/X) [1], diploma que após os vetos presidenciais será adiado para a próxima legislatura. O tema é complexo e envolve aspectos relativamente técnicos que, em grande medida, decorrem da própria sofisticação do funcionamento do capitalismo nesta fase muito financeirizada da economia. É o que acontece, por exemplo, com os aspectos relativos aos vários tipos de concentração (horizontal, vertical, diagonal) possibilitada pelas novas estruturas de propriedade dos meios de comunicação social num mundo em que os grupos económicos são nacionais e transnacionais, em que os accionistas detêm participações cruzadas, em que os proprietários dos media são também detentores de empresas nas mais diferentes áreas de actividade (sem excluir o comércio de armas…), etc. Mas tudo isto deveria realçar, e não ofuscar, a necessidade de se discutir a concentração dos media no quadro actual e as relações entre essa concentração e o desejável pluralismo na informação. Porque é um direito democrático fundamental, a informar e a ser informado, que está em causa.
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Remeter a discussão para o debate em curso na União Europeia tem, teoricamente, o mérito de ter em conta a dimensão supranacional da questão, coincidente com o carácter transnacional dos grupos económicos detentores dos meios de comunicação. Mas torna-nos espectadores de uma decisão que outros tomarão por nós, o que, em particular ao nível das instituições comunitárias, tem dado os resultados de deslegitimação formal e concreta do projecto europeu que hoje são bem visíveis. Pelo contrário, seria importante usarmos este período para promover estudos empíricos sobre a relação entre a concentração e o pluralismo. Como realça o jornalista e investigador Fernando Correia, não se podendo aqui falar de causalidades simples, também não se pode fazer uma análise simplista que esqueça o peso relativo tanto da estrutura e a natureza da propriedade dos media como das «estruturas de intermediação» (concorrência, publicidade, nichos de mercado a que um órgão se dirige, jornalistas e outros profissionais que nele trabalham…) [2].
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A crise económico-financeira tem revelado uma dupla crise nos media: na vertente de projectos empresariais que atravessam dificuldades para sobreviver (quebra de receitas publicitárias, investimentos que se deslocam para outros sectores mais lucrativos, despedimentos e reestruturações editoriais, etc.) e na vertente de projectos jornalísticos que podem suscitar a adesão do público, pela relevância da informação veiculada (por exemplo, que capacidade demonstraram para informar sobre os mecanismos de funcionamento do poder económico e financeiro?).
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Nestas circunstâncias, será possível olhar para a concentração da propriedade dos media sem alertar para o facto de ser um «decisivo factor condicionante no tocante à informação», esquecendo as consequências que estão já a ter sobre todo o universo informativo e comunicacional as lógicas empresariais, a transformação da informação em mercadoria, a procura do lucro e a corrida às audiências acima de qualquer outra consideração, a dependência da publicidade e a mistura de lógicas comerciais e redactoriais, ou ainda a precarização do trabalho dos jornalistas, e em particular dos estagiários, num quadro da redução da possibilidade de emprego a dois ou três grupos empregadores [3]?
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É certo que, como salientam alguns [4], a concentração permite economias de escala e até que se seja suficientemente robusto, em termos financeiros, para se apostar em áreas mais dispendiosas do jornalismo (como a formação ou a investigação) ou para se recusar a publicidade de algum anunciante sem se ir à falência. Mas será isso que mostra a realidade? Não temos que distinguir entre essa teoria e a prática, e verificar, como lembra Fernando Correia, que essas sinergias existem mais «nos sectores da gestão e em tudo o que tenha a ver com a poupança de gastos e o aumento dos lucros, em desfavor da atenção pela informação e pelos seus agentes»? [5]
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Podemos continuar a sustentar a nossa análise numa artificial separação entre o mercado e o Estado e desse modo repetir que tudo vai bem com a concentração, porque historicamente as pressões até vêm do poder político e não do poder económico? O que explica então a falta de investigação sobre os próprios grupos económicos e o mundo dos negócios? Não há pressões nem constrangimentos dos proprietários nem dos anunciantes (efectivos ou potenciais)? Não há outras razões para algo «não se vender» ou «não estar na agenda» que não sejam a falta de recursos ou de «procura » por parte das audiências? E quem define a afectação de recursos e o que interessa às audiências? Se é nesse mundo perfeito que vivemos, diria que nem toda a gente sabe…
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sexta-feira 5 de Junho de 2009
Notas
[1] A proposta de lei foi apresentada em Junho de 2008, votada a 23 de Janeiro de 2009 e por duas vezes vetada pelo presidente da República, a 2 de Março e 20 de Maio. Pode ser consultada no sítio da Assembleia da República. No sítio do Sindicato dos Jornalistas encontra-se, entre outros, um parecer detalhado à mesma.
[2] Fernando Correia, «Concentração à portuguesa», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 1999.
[3] Ibidem.
[4] Ver a entrevista a Ricardo Costa e Francisco Sarsfield Cabral num noticiário da SIC Notícias de 20 de Maio de 2009.
[5] Fernando Correia, ibidem.
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in Le Monde Diplomatique
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