por Serge Halimi
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«Imaginemos», escreve Vaclav Havel, «uma eleição cujos resultados são em grande parte previamente conhecidos e à qual se apresenta uma sucessão de candidatos de notória incompetência. Qualquer escrutínio pretensamente democrático organizado dessa maneira não poderá deixar de ser classificado como uma farsa» [1]. O antigo presidente checo não tinha aqui em mente o Parlamento Europeu, mas sim o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas. No entanto…
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Desde a primeira eleição dos deputados europeus por sufrágio universal, em 1979, a taxa de abstenção saltou de 37 para 54 por cento. Todavia, os poderes deste Parlamento foram incrementados e o seu campo de acção abrange 495 milhões de habitantes (contra 184 milhões há trinta anos). A Europa ocupa o palco; mas não tem impacto sobre o público. Porquê?
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Sem dúvida porque não existe realmente uma comunidade política continental. A esperança de que a simultaneidade de vinte e sete escrutínios nacionais, quase sempre disputados à volta de questões internas, venha um dia a resultar no advento de uma identidade europeia continua a ser da alçada do pensamento mágico.
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Terão os eslovenos qualquer conhecimento, mesmo aproximativo, dos debates eleitorais suecos? Informar-se-ão os alemães a respeito da vida política búlgara? Mas após o escrutínio europeu, tanto uns como os outros ficam a saber que em Estocolmo ou em Sófia o veredicto das urnas pode ter infirmado o resultado da única eleição a que prestaram alguma atenção, e que os seus votos, na realidade, designaram apenas 1 por cento (Eslovénia) ou 13,5 por cento (Alemanha) do total dos deputados da União [2]. Será possível imaginar que uma revelação deste género não leva o eleitor a sentir-se relativamente inútil? Impressão essa que os governantes europeus não contradisseram, ao ignorarem a escolha feita sucessivamente por três povos no tocante ao Tratado Constitucional, ao cabo de uma campanha que, nesse caso, mobilizou o interesse dos eleitores e os empolgou.
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Em França, sete das oito circunscrições eleitorais foram retalhadas unicamente com o objectivo de favorecer os grandes partidos; não correspondem a nenhuma realidade histórica, política ou territorial. A circunscrição do Sudeste tem aliás como líder um socialista outrora eleito no Noroeste e que classificou a sua própria transferência como um «suplício». Esse, no entanto, está previamente eleito, tal como a ministra francesa da Justiça, tão pouco interessada pelo escrutínio que julga que é em Haia, e não na cidade de Luxemburgo, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem a sua sede. Em Itália, Silvio Berlusconi encarou sem hesitação a possibilidade de apresentar como candidatas oito manequins e actrizes de telenovelas.
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Mas há mais. As forças políticas que desde há trinta anos transformaram, em conjunto, o Velho Continente num grande mercado indefinidamente alargado a novos países, propõem de repente «uma Europa que proteja», «humanista», «social». Ora, se é verdade que os socialistas, liberais e conservadores se afrontam nas campanhas eleitorais, eles votam juntos na maior parte dos escrutínios do Parlamento Europeu. E dividem entre si os lugares de comissários – seis dos quais atribuídos aos sociais-democratas, encarregados, designadamente, da fiscalidade, da indústria, dos assuntos económicos e monetários, do emprego, do comércio. O medo do confronto e a despolitização das grandes questões favorecem a renovação indefinida deste bloco governante, que vai «de um centro-direita esponjoso a um centro-esquerda amolecido, passando por uma coligação liberal insossa» [3].
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Poderá uma tal ausência de alternância garantir o lugar de José Manuel Durão Barroso na chefia desta atrelagem cujo balanço é mais do que medíocre? «Ele fez um excelente trabalho, faço questão de dizer claramente que nós o apoiaremos», declarou o primeiro-ministro trabalhista britânico, Gordon Brown. O socialista espanhol José Luis Zapatero disse a mesma coisa: «Eu apoio o presidente Barroso». É verdade que Brown e Zapatero têm o mesmo programa, o do Partido Socialista Europeu (PSE). Ao qual também pertence Martine Aubry. «A Europa que eu quero», preveniu a dirigente francesa, «não é uma Europa dirigida por Barroso com os seus amigos Sarkozy e Berlusconi». Os eleitores que percebam tudo isto…
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sexta-feira 5 de Junho de 2009
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Notas
[1] Vaclav Havel, «A Table for Tyrants», The New York Times, 11 de Maio de 2009.
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[2] Dos 736 deputados do Parlamento Europeu, os eslovenos elegem 7, os alemães, 99.
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[3] «An Unloved Parliament», The Economist, Londres, 9 de Maio de 2009.
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n Le Monde Diplomatique -
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Desde a primeira eleição dos deputados europeus por sufrágio universal, em 1979, a taxa de abstenção saltou de 37 para 54 por cento. Todavia, os poderes deste Parlamento foram incrementados e o seu campo de acção abrange 495 milhões de habitantes (contra 184 milhões há trinta anos). A Europa ocupa o palco; mas não tem impacto sobre o público. Porquê?
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Sem dúvida porque não existe realmente uma comunidade política continental. A esperança de que a simultaneidade de vinte e sete escrutínios nacionais, quase sempre disputados à volta de questões internas, venha um dia a resultar no advento de uma identidade europeia continua a ser da alçada do pensamento mágico.
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Terão os eslovenos qualquer conhecimento, mesmo aproximativo, dos debates eleitorais suecos? Informar-se-ão os alemães a respeito da vida política búlgara? Mas após o escrutínio europeu, tanto uns como os outros ficam a saber que em Estocolmo ou em Sófia o veredicto das urnas pode ter infirmado o resultado da única eleição a que prestaram alguma atenção, e que os seus votos, na realidade, designaram apenas 1 por cento (Eslovénia) ou 13,5 por cento (Alemanha) do total dos deputados da União [2]. Será possível imaginar que uma revelação deste género não leva o eleitor a sentir-se relativamente inútil? Impressão essa que os governantes europeus não contradisseram, ao ignorarem a escolha feita sucessivamente por três povos no tocante ao Tratado Constitucional, ao cabo de uma campanha que, nesse caso, mobilizou o interesse dos eleitores e os empolgou.
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Em França, sete das oito circunscrições eleitorais foram retalhadas unicamente com o objectivo de favorecer os grandes partidos; não correspondem a nenhuma realidade histórica, política ou territorial. A circunscrição do Sudeste tem aliás como líder um socialista outrora eleito no Noroeste e que classificou a sua própria transferência como um «suplício». Esse, no entanto, está previamente eleito, tal como a ministra francesa da Justiça, tão pouco interessada pelo escrutínio que julga que é em Haia, e não na cidade de Luxemburgo, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem a sua sede. Em Itália, Silvio Berlusconi encarou sem hesitação a possibilidade de apresentar como candidatas oito manequins e actrizes de telenovelas.
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Mas há mais. As forças políticas que desde há trinta anos transformaram, em conjunto, o Velho Continente num grande mercado indefinidamente alargado a novos países, propõem de repente «uma Europa que proteja», «humanista», «social». Ora, se é verdade que os socialistas, liberais e conservadores se afrontam nas campanhas eleitorais, eles votam juntos na maior parte dos escrutínios do Parlamento Europeu. E dividem entre si os lugares de comissários – seis dos quais atribuídos aos sociais-democratas, encarregados, designadamente, da fiscalidade, da indústria, dos assuntos económicos e monetários, do emprego, do comércio. O medo do confronto e a despolitização das grandes questões favorecem a renovação indefinida deste bloco governante, que vai «de um centro-direita esponjoso a um centro-esquerda amolecido, passando por uma coligação liberal insossa» [3].
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Poderá uma tal ausência de alternância garantir o lugar de José Manuel Durão Barroso na chefia desta atrelagem cujo balanço é mais do que medíocre? «Ele fez um excelente trabalho, faço questão de dizer claramente que nós o apoiaremos», declarou o primeiro-ministro trabalhista britânico, Gordon Brown. O socialista espanhol José Luis Zapatero disse a mesma coisa: «Eu apoio o presidente Barroso». É verdade que Brown e Zapatero têm o mesmo programa, o do Partido Socialista Europeu (PSE). Ao qual também pertence Martine Aubry. «A Europa que eu quero», preveniu a dirigente francesa, «não é uma Europa dirigida por Barroso com os seus amigos Sarkozy e Berlusconi». Os eleitores que percebam tudo isto…
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sexta-feira 5 de Junho de 2009
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Notas
[1] Vaclav Havel, «A Table for Tyrants», The New York Times, 11 de Maio de 2009.
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[2] Dos 736 deputados do Parlamento Europeu, os eslovenos elegem 7, os alemães, 99.
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[3] «An Unloved Parliament», The Economist, Londres, 9 de Maio de 2009.
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n Le Monde Diplomatique -
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