.
por Sandra Monteiro
Em Portugal, a economia social está muito ausente do espaço público e mediático. A situação, que não é nova, manteve-se com a actual crise do capitalismo financeiro, apesar de tudo indicar que este é um momento propício para outros modos de conceber a economia, como acontece com a economia social, surgirem com as suas concepções, experiências e propostas. Poder-se-ia pensar que esse silêncio traduz simplesmente a falta de peso do sector no conjunto da economia, mas basta olhar para os dados relativos ao número de organizações (cooperativas, mutualidades, associações, fundações…), bem como de trabalhadores, membros e volume de vendas envolvidos neste sector para verificarmos que a invisibilidade é desproporcional ao seu peso (ver, no dossiê sobre Economia Social da edição de Julho, o artigo de Manuel Canaveira de Campos, «A economia social – outra forma de economia»).
.
As causas do silêncio são mais complexas e têm que ser procuradas a montante, tanto no interior do próprio sector, como nos dois pólos com que historicamente tem sido relacionada, o mercado e o Estado. Para isso é necessário compreender as dinâmicas políticas de estruturação de cada um desses pólos, pois elas dão origem a diferentes arranjos políticos e institucionais, em função de diferentes tensões e escolhas que ao longo do tempo são feitas nas sociedades.
.
E porque é realmente de escolhas de sociedade que se trata, escolhas essas que operam sobre toda a organização social, mesmo quando não resultam de processos muito transparentes, é ainda necessário fazer intervir na arqueologia da estruturação (actual e futura) desses pólos pessoas com conhecimentos específicos sobre a economia social: membros das suas diferentes organizações, poderes públicos e estruturas com que desenvolvem formas de cooperação (das estatais às sindicais) e investigadores dos meios académicos. Mas também devem ser chamados à participação elementos exteriores, isto é, os membros das diferentes comunidades em que os cidadãos se inserem, e que de um modo geral podemos designar por comunidade.
.
Propor que se invista nesta partilha de experiências e conhecimentos, e que se debata a economia social, como sector, com interlocutores específicos, é certamente simples, mas não é neutro. E isso deve ser assumido com clareza, porque nada prejudica mais o debate do que presumir-se que ele não será plural. Quebrar a invisibilidade da economia social passará por reconhecer a extrema diversidade de soluções organizativas e de actividades (produção de bens e serviços, distribuição, crédito, etc.) que caracteriza o sector. Essa heterogeneidade é, em parte, responsável pela dificuldade que o sector tem de se pensar a si mesmo enquanto tal – e os seus membros enquanto actores de um projecto alternativo mais amplo. No entanto, é ela que dá origem a experiências muito variadas, que devem ser mapeadas sem deixar de eliminar quaisquer tentações de esconder dificuldades, pontos de vista conflituais ou até caminhos divergentes.
.
Só assim se poderá ter uma perspectiva do sector que se aproxime da realidade, que tenha em conta as experiências concretas no interior das organizações e, além disso, que considere a dimensão performativa dessa participação. Só se não cairmos em simplismos que venham substituir a ilusão do homo economicus por uma espécie, igualmente «natural», de homo cooperativus é que poderemos colocar-nos no terreno da construção, árdua e contraditória, dos arranjos que pensamos terem mais capacidade para instituir práticas que favoreçam sociedades mais assentes na cooperação, na reciprocidade, etc. Práticas que aproveitem as potencialidades de cada homem e mulher, que garantam uma melhor utilização dos recursos socioeconómicos ao serviço do bem comum e que o façam tendo em conta a sustentabilidade a longo prazo, ou seja, assegurando que o respeito pelo tempo dos homens incorpora o respeito pelo tempo da Terra.
.
A partir do momento em que nos colocarmos no campo da economia social como construção histórica e política será mais fácil recentrar a reflexão nos valores e princípios que orientam a actividade do sector, abordagem que também não é neutra. Em primeiro lugar, porque permite recuperar objectivos comuns e abrir caminho para formas concretas de solidariedade, economias de escala e estratégias de rede entre os diversos actores da economia social, permitindo evitar o efeito de escoamento de recursos, tão dificilmente gerados no seu quadro, para estruturas da economia mercantil, onde os fins são implacavelmente lucrativos.
.
Em segundo lugar, porque se recordarmos que a economia social actua em simultâneo no mundo mercantil e não-mercantil, monetário e não-monetário, mas não abdica da concepção democrática da gestão interna e da propriedade comum por parte dos seus membros, nem do princípio da ausência de fins lucrativos (os excedentes são objecto de justa repartição ou são reinvestidos no projecto), então não é difícil sustentar que a forma como a economia social entende a prossecução do interesse geral tem ressonâncias com as lógicas que devem animar o Estado e o sector público.
.
Neste sentido, atribuir prioridade à questão das finalidades, e dos valores que lhes estão associados, é também uma forma de propor uma linha de fronteira que não se limita a separar os três pilares da economia que a designação «terceiro sector» tão bem traduz. Com efeito, uma economia social meramente definida de forma relacional, como o sector situado entre o Estado e o mercado, corre o risco de perder uma voz própria (as definições pela negativa tendem a ser mais frágeis) e, além disso, de facilitar o entendimento dos dois outros pólos como entidades de referência predeterminados e não, também eles, como construções sociais. Em vez disso, a economia social, sem deixar de reconhecer as diferenças estruturais que a distinguem do Estado, com quem não partilha a obrigação, assente em recursos materiais, da provisão de serviços públicos, da garantia do acesso universal aos direitos e à igualdade, pode contribuir para que se torne claro que a linha de demarcação fundamental é a que separa a economia mercantil de outras formas não-mercantis de organização socioeconómica.
.
Não será essa também uma maneira de recolocar a questão do Estado como espaço de lógicas não-mercantis, por oposição às pressões que nas últimas décadas este tem vindo a sofrer no sentido da progressiva adesão aos princípios e práticas do neoliberalismo (privatização, desregulamentação, erosão de responsabilidades sociais, aumento das desigualdades, etc.)? E não será também esse um caminho para a economia social definir, em independência e respeito pelos seus princípios, mas sem afastar formas de cooperação com o sector público, projectos que estejam cada vez mais ancorados no tecido social e que contribuam para desenvolver linhas de trabalho sustentáveis, conjugando formas dignas de trabalho e de emprego com a coesão social e territorial?
.
Ainda no quadro desta lógica de contágios mutuamente benéficos que, em vez de elidirem, reforçam os papéis de cada interveniente, não terão os actores da economia social um contributo a dar para a discussão de temas como a ética de serviço público ou as motivações, práticas e expectativas que intervêm no viver comum? Não podem estas questões ser relacionadas com o distanciamento em relação à vida pública ou a falta de confiança nas instituições e na democracia? Talvez não seja pouco importante a contribuição, sem mitificações, que a economia social pode dar para se pensar, colectivamente, o aprofundamento da democracia, com mais participação, e o pluralismo da economia, com mais racionalidades não-mercantis. Venha o debate.
.
.
in Le Monde Diplomatique
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário