No dia 25 de Abril de 1974 um golpe levado a cabo pelo Movimento das Forças
Armadas (MFA) põe fim à ditadura portuguesa. De imediato, e contra o apelo dos
militares que dirigiram o golpe – que insistiam pela rádio para as pessoas
ficarem em casa –, milhares de pessoas saíram de suas casas, e foi com as
pessoas à porta, a gritar «morte ao fascismo», que no Quartel do Carmo, em
Lisboa, o chefe do Governo foi cercado; as portas das prisões de Caxias e
Peniche abriram-se para saírem todos os presos políticos; a PIDE, a polícia
política, foi desmantelada, atacada a sede do jornal do regime A Época e
a censura abolida. A queda da ditadura deu-se de forma imprevista e as forças
sociais que protagonizaram o golpe de estado, a 25 de Abril de 1974, não
resultaram das contradições que o atraso do País gerou, mas justamente da sua
condição imperial: a guerra de libertação dos povos africanos conduziu à mais
grave crise do regime, que se resolveu, em meia dúzia de horas, quase sem sangue
e sem violência, pelo seu fim.
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A revolução foi a
tradução na metrópole da derrota na guerra colonial. A vitoriosa luta dos
movimentos de libertação das colónias portuguesas, apoiados nas massas
camponesas e populares desses países, levou a que na Guiné o PAIGC (Partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amílcar
Cabral, conseguisse declarar unilateralmente a independência, ainda em 1973. Em
Moçambique e Angola o Exército colonial português sofria importantes derrotas. O
arrastamento da guerra ao longo de treze anos, sem vislumbre de qualquer solução
política no quadro do regime de Marcelo Caetano e a iminência da derrota abriram
a crise nas Forças Armadas, coluna vertebral do Estado[1].
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No Portugal de hoje, ao
lado da Torre de Belém, símbolo dos Descobrimentos e do início da formação do
Império português, está o Monumento Nacional aos Combatente do Ultramar, um
edifício em forma de seta a apontar para África. No dia 10 de Junho, feriado
nacional que celebra o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas,
os ex-combatentes reúnem-se, com o apoio das instituições estatais e dos
partidos mais conservadores, para prestarem homenagem aos mortos em combate na
guerra colonial. Se o investigador indagar a história da guerra colonial,
percorrendo algumas das mais sérias e rigorosas obras sobre este período,
como A Guerra Colonialde Aniceto Afonso[2],
vai encontrar com detalhe o número de mortos do Exército português[3] (e
a brutalidade das suas acções, como o uso de napalm sobre populações
civis, etc.), mas não terá nenhuma pista sobre os mortos dos guerrilheiros dos
movimentos de libertação ou mesmo dos civis.
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De acordo com o
Estado-Maior do Exército, morreram ao serviço do Exército português 8300
militares, na Guiné, Angola e Moçambique[4].
É muito difícil saber-se o número de mortos do lado dos movimentos de
libertação, até porque esse trabalho não foi feito pelos historiadores
africanos. Mas de acordo com estudos internacionais, como os dirigidos por Ruth
Sivard[5],
morreram 3 a 5 vezes mais guerrilheiros e 10 vezes mais civis, portanto os
números mais optimistas contabilizam um número total de vítimas, entre
guerrilheiros e civis, superior a 100 mil mortos.
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Seria inadequado
verificar nesta ausência de referências às vítimas de todo o conflito um sintoma
apenas das incertezas estatísticas sobre as baixas dos exércitos anticoloniais,
uma vez que a historiografia sobre a guerra não se limita a afirmar esta dúvida,
mas a assumir a guerra colonial como uma guerra «pouco intensa», com poucos
mortos, um «low cost conflict»[6].
Esta omissão contribui para a propagação do mito, ainda hoje dominante na
sociedade portuguesa, de que os Portugueses fizeram uma revolução «sem mortos»,
«pacífica», quase um prolongamento, embora não directo, do país de «brandos
costumes» que a propaganda de Salazar gostava de acarinhar. Esta opção de
investigação, que separa artificialmente a revolução da sua principal causa e
que desagrega das sementes da própria revolução os mortos que encabeçaram a luta
contra o Exército português, tem consequências na construção de uma falsa
memória sobre a revolução e sobre a guerra.
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Na década de 70 do século XX era comum a referência à luta dos povos
coloniais como «revoluções anti-coloniais» – e foi assim que foram designadas
todas as guerras de libertação do pós guerra – esta é hoje um terminologia
marginal, à qual se sobrepõe a «guerra colonial». O uso de uma terminologia em
detrimento da outra conduz de certa forma à desvalorização das mobilizações
massivas, neste caso de camponeses e populares, contra o império colonial
português. É certo que estas mobilizações não se traduziram em manifestações de
rua ou assaltos a “palácios de inverno” (nem podiam, porque a base de apoio da
guerrilha era uma população camponesa e dispersa, sendo nalguns casos as
próprias aldeias destruídas com recurso ao napalm e as suas populações
realojadas em aldeamentos controlados pela tropa, além da proibição de
ajuntamentos ou manifestações que era comum à metrópole e às colónias). Mas
traduziram-se num apoio camponês generalizado aos guerrilheiros – aliás
semelhante ao que se passou na China, em Cuba, no Vietname, na Indonésia e mesmo
na França ou na Jugoslávia da resistência anti-nazi –, sem o qual as guerrilhas
não teriam sobrevivido.
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Uma das historiadoras
que, contra a corrente, veio reivindicar a importância da resistência
anticolonial foi Dalila Cabrita Mateus, na sua obra A PIDE-DGS e a Guerra
Colonial[7].
A partir do estudo da morfologia da polícia política nas colónias – e usando
também arquivos africanos, bem como uma série de entrevistas a guerrilheiros –,
Dalila Mateus demonstra a brutalidade da repressão sobre os guerrilheiros,
fornecendo um teatro de algum modo surpreendente para quem estudava a actuação
da PIDE na metrópole, vista como pouco eficaz, apesar de brutal sobre os membros
do Partido Comunista. Nas colónias era também uma polícia brutal, que prendeu e
torturou milhares de combatentes, com um largo apoio entre os colonos, com uma
rede de informações e vigilância essencial no auxílio à guerra, uma ligação
estreita com os comandos militares e, sobretudo, extremamente eficaz: «A
violência do acto colonial foi seiva que alimentou brutalidade e os crimes da
PIDE/DGS, que, em África, praticou uma repressão de massas e teve um papel de
grande relevo na Guerra Colonial»[8].
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Este relato, que agora
chegou às páginas da história, tinha antes passado nas reportagens de jornalismo
e nos romances literários. São a este respeito incontornáveis os documentários
realizados por Diana Andringa (As Duas Faces da Guerra eTarrafal:
Memórias do Campo de Morte Lenta) e Joaquim Furtado (A Guerra), ambos
fazendo um esforço bem sucedido para mostrar ambos os lados do conflito e também
a brutalidade do próprio Exército colonial. Da literatura destacam-se dezenas de
escritores e poetas, muitos dos quais militaram nas fileiras dos movimentos de
libertação, estando entre os mais conhecidos Luandino Vieira, Pepetela e Mia
Couto[9].
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Raquel Varela é autora
de História do
PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011) e Revolução ou
Transição. História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012).
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Artigo 3 – Este artigo faz parte de uma série: 25 Artigos para 25
Dias, 2013. Publicado também em http://blog.5dias.net/
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[1] Rosas,
Fernando, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976). Lisboa,
Editorial Notícias, 2004, p. 136.
[2] Afonso,
Aniceto, Gomes, Carlos, A Guerra Colonial. Lisboa, Editorial Notícias,
2000.
[3] Afonso,
Aniceto, Gomes, Carlos, A Guerra Colonial. Lisboa, Editorial Notícias, 2000, pp.
526-533.
[4] Pinto,
António Costa, O Fim do Império Português, Lisboa, Livros Horizonte,
2001, p. 52-53.
[5] Sivard,
Ruth Leger, World Military and Social Expenditures 1987-88,Washington,
D.C, World Priorities, 12th ed, 1987.
[6] Cann,
John P, Counterinsurgency in África. The Portuguese Way of War,
1961-1974, Westport, Greewood Press, 1997, p. 106; Pinto, António
Costa, O Fim do Império Português, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p.
52.
[7] Mateus,
Dalila Cabrita, A PIDE-DGS e a Guerra Colonial, Lisboa, Terramar,
2004.
[8] Mateus,
Dalila Cabrita, A PIDE-DGS e a Guerra Colonial, Lisboa, Terramar, 2004,
p. 420.
[9]Para
uma extensa bibliografia da literatura sobre a guerra colonial ver Melo, João
de.Os Anos da Guerra 1961-1975, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988, pp.
9-30.
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