A crise das dívidas
Fechámos este artigo em plena turbulência financeira, que reflete um forte recrudescimento da crise económica mundial. Em 8 de agosto, as bolsas mundiais despencaram, “evaporando-se” US$ 2,5 triliões num dia, que afetaram especialmente as ações dos bancos. Em agosto, os principais bancos da zona euro perderam entre 20% e 30% do preço de suas ações. Os grandes bancos revivem as cenas de pânico de quando o Lehman Brothers afundou. A dívida pública norte-americana perdeu a avaliação máxima de crédito, em meio a uma aguda crise política em Washington. Todos os dados indicam que a claudicante recuperação da economia mundial se estanca e surge nova ameaça de uma recessão geral. Na Europa, a crise da dívida acelerou-se a ponto de o fantasma da falência já ter alcançado a Espanha, Bélgica e Itália (30% da economia da zona do euro) e ter começado a contagiar a França, segunda economia europeia.
A crise da dívida soberana
Com efeito, a crise da dívida soberana europeia está descontrolada e ameaça seriamente a sobrevivência da zona do euro e da própria União Europeia (UE). Esta crise é parte central da crise capitalista mundial. Na realidade, agora é seu elo mais frágil.
A origem mais imediata da crise da dívida deve ser buscada no estouro da enorme bolha que, em 2007, pôs um fim abrupto a anos de desenfreada especulação financeira mundial. O estouro pôs o sistema financeiro global a um passo do abismo e a economia à beira de uma nova “Grande Depressão”. Os governos imperialistas lançaram, naquele momento, uma operação massiva, historicamente inédita, de salvamento dos banqueiros, comprometendo enormes somas de fundos públicos, que superaram 20 % do PIB mundial.
Com isto, conseguiram ganhar tempo, impedir que a situação afundasse e que o controle saísse de suas mãos. O que não conseguiram foi reverter a crise. Para consegui-lo, o capitalismo não inventou outra solução a não ser a destruição massiva de capitais, a paralisação e o desmantelamento do nível de vida e dos direitos dos trabalhadores. Só assim pode recuperar as taxas de lucro que permitiriam abrir um novo ciclo histórico de crescimento.
A intervenção dos Estados, no entanto, deu lugar a uma nova fase da crise: a da dívida pública, que afeta em particular os grandes países imperialistas, EUA (com um terço do total mundial), Europa e Japão. Concentra-se com muita violência na Europa, em especial em sua periferia.
A situação europeia
Não é por acaso que a crise da dívida se concentra na zona do euro. A União Monetária Europeia surgiu com base na hegemonia do capitalismo alemão, em conjunto com o capitalismo francês (principal sócio e concorrente). Mas a zona do euro também agrupa em seu interior países da periferia europeia economicamente muito mais frágeis e subordinados comercial e financeiramente. O euro não é a moeda de um Estado único, mas sim a divisa de uma associação de Estados tremendamente desiguais entre si, com seus próprios interesses, prioridades e orçamentos. O orçamento europeu não chega sequer a 2% do PIB da UE.
Nessas condições, a moeda única se tornou um instrumento privilegiado dos capitalismos alemão e francês para reforçar seu domínio na Europa. A periferia da zona do euro consolidou-se como um grande mercado para a exportação de suas multinacionais e o destino de enormes investimentos financeiros de seus bancos, que serviram para sustentar os grandes deficits comerciais, inflar a bolha imobiliária (Espanha e Irlanda) e inclusive para facilitar os investimentos das multinacionais espanholas na América Latina.
O papel da Alemanha
O euro foi decisivo para consolidar a Alemanha como a grande potência europeia. Isso está associado à sua reafirmação como grande economia exportadora e, paralelamente, a um processo de forte degradação de seu mercado de trabalho e de sua situação social. Os salários reais estão estagnados desde 1991 e ao nível de desemprego oficial (7,6 % ou 2,9 milhões de pessoas) devem ser adicionados mais de 5 milhões de trabalhadores que recebem assistência social porque não chegam ao fim do mês com seus salários; 1,2 milhão de trabalhadores temporários subcontratados com salários reduzidos pela metade e ramos inteiros, como segurança e limpeza, relegados a “salários de lixo”. A Alemanha exporta mais de 40 % de sua produção de automóveis, máquinas e ferramentas, e de 50 % a 60 % da produção das indústrias eletrónica e farmacêutica. Do total de suas exportações, 60 % destinam-se à UE, com cujos países seu superavit comercial foi multiplicado por cinco desde o surgimento do euro. Nos últimos quatro anos, o declínio das exportações para a periferia europeia, devido aos planos de austeridade, foi compensado com vendas para a China, que dobraram. A fortaleza exportadora alemã é também sua grande fragilidade, pois uma recessão internacional, em especial se afetasse a China, traria enormes efeitos para o país.
A espiral da dívida
As multinacionais alemãs e francesas e seus grandes bancos fizeram negócios extraordinários com a periferia da zona do euro durante os anos de vacas gordas. Parecia que os grandes deficits comerciais e a bolha do endividamento privado não tinham limites. Tudo ia bem enquanto as rodas continuavam girando… até que a grande bolha estourou em 2007, veio o salvamento estatal massivo dos bancos e apareceu o problema da dívida pública (enquanto a massa da dívida privada permanecia). A festa havia acabado dramaticamente.
Para financiar a dívida soberana dos Estados, o Banco Central Europeu (BCE) vem emprestando, há três anos, dinheiro ilimitadamente a 1 % ou 1,5 % de juros aos mesmos grandes bancos “resgatados” para que esses, por sua vez, emprestem-no aos países periféricos a taxas de juros muito mais altas. Então, começaram os primeiros planos de ajuste com os quais os governos roubavam o povo para pagar aos bancos credores. Nesse processo, os países periféricos da zona do euro se encontram de mãos e pés atados, sem nenhuma independência para agir. Não podiam recorrer ao procedimento tradicional de desvalorizar a moeda, atacar os salários e aumentar as exportações. Agora dependiam das decisões do BCE e da Alemanha e a única receita era a “austeridade”, enquanto a dívida se tornava cada vez maior, até impossibilitar seu pagamento.
Os “planos de resgate”
Isso foi o que aconteceu com os países mais frágeis. E quando eles já não podiam pagar, “os mercados” não lhes emprestavam mais, e quando era iminente a suspensão do pagamento, apareceram os “planos de resgate”, que agravaram muito mais o problema. Agora, quem concede os novos empréstimos são a UE e o FMI diretamente. É a “troika” (a Comissão Europeia, o BCE e o FMI) que impõe diretamente os draconianos planos de ajuste que sangram com selvageria os trabalhadores e as classes médias e fazem a economia retroceder décadas. Assim ganham tempo e garantem o ganho e os lucros dos bancos, enquanto estes vão se desfazendo de seus títulos da dívida periférica e repassando-os aos governos, por intermédio das instituições europeias e do FMI.
Tivemos o primeiro plano de “resgate” grego em maio de 2010. Em outubro, foi a Irlanda que se incorporou ao clube dos “resgatados” e, mais recentemente, em junho de 2011, Portugal. Esses planos, longe de serem uma “ajuda”, são cordas para que os países se enforquem. Sua essência é a pilhagem. Por isso mesmo são planos destinados ao fracasso.
O segundo “resgate” da Grécia
Um ano depois de seu primeiro “resgate”, a Grécia, brutalmente golpeada, não podia garantir os pagamentos do mês de julho e só faltava declarar-se falida. Todos os créditos do primeiro “resgate” foram utilizados para pagar empréstimos anteriores, e quanto mais pagava, mais dinheiro devia. Desta vez, diferentemente do momento do primeiro resgate, o “contágio” (expresso no “prémio de risco” ou “risco-país”: a diferença entre a taxa de juros da dívida paga pelo país e a paga pela Alemanha) não só afetou Portugal e Irlanda como também atingiu em cheio a Espanha e, pela primeira vez, a Itália, unindo os destinos da dívida destes dois Estados e colocando o conjunto da zona do euro ante uma gravíssima crise.
Durante três semanas tensas, os governos e as instituições da UE enfrentaram-se publicamente acerca do “resgate” grego e da crise da dívida, até que chegaram a um acordo em 21 de julho. Quando as diferenças foram resolvidas, exigiram do parlamento grego que aprovasse (enfrentando o repúdio massivo e uma onda de protestos reprimida com selvageria) o novo plano de ajuste, com novos cortes de direitos económicos e sociais, de empregos públicos, mais aumentos de impostos e um programa massivo de privatizações. Um plano que os jornais gregos qualificaram de “comoção e terror” e que o Financial Times definiu como “provocação política e vandalismo económico”.
A “latino-americanização” da periferia europeia
Antes de discutir esses acordos, é preciso avaliar o significado profundo do plano da “troika” para a Grécia, o lugar onde foram mais longe e de onde já podemos entrever o futuro preparado para Portugal ou Irlanda. Às vésperas de seu segundo “resgate”, a Grécia utilizava 29 % de sua receita para pagar os juros. Se somarmos a amortização da dívida, sobe para mais de 50 %. No entanto, sua dívida é cada vez maior, enquanto a fuga de capitais para a Suíça prossegue sem freios. A situação grega é como se tivesse sido devastada por uma guerra. O preço do “resgate” supera o das indemnizações de guerra às quais a Alemanha foi submetida no Tratado de Versalhes, depois de perder a I Guerra Mundial. Bairros inteiros de Atenas encontram-se em situação de emergência sanitária e a expectativa de vida começa a baixar. Assistimos a um empobrecimento súbito do povo, dos trabalhadores e das classes médias da Grécia. Agora, para completar a pilhagem, vem a operação do segundo “resgate”: a apropriação massiva do que resta do património nacional (infraestruturas de turismo, portos, aeroportos, telecomunicações, correios, energia, ferrovias, companhias de águas, bancos, loterias…) a preços de liquidação (o valor atual das ações é 30 % do de 2009) e em benefício dos mesmos bancos e multinacionais que arruinaram o país, em especial alemães e franceses.
A Grécia está sendo submetida a um processo acelerado de “latino-americanização”. De um lugar de país sub-imperialista (imperialismo de terceira divisão) dentro do imperialismo europeu, está se tornando um país semicolonial governado diretamente pela “troika”, sem soberania nacional. A “troika” forçou a Grécia a renunciar aos “direitos de imunidade”, que historicamente impediram os credores de expropriar ativos de um Estado insolvente. O presidente do Eurogrupo, Juncker, declarou à revista alemã Focus: “a soberania dos gregos será limitada de forma massiva”. A aplicação do plano de austeridade e do programa de privatização está sob o controle direto da “troika”. A própria arrecadação fiscal grega será privatizada, segundo declarou “Jeffrey” Papandreu.
Não é, pois, casual que os manifestantes gregos comparem sua situação à da Argentina de 2001 e escrevam em seus cartazes: “Teremos uma noite mágica como na Argentina: quem será o primeiro a fugir de helicóptero?”. Estamos diante de um problema que não se limita à Grécia, mas que já atinge países como Irlanda e Portugal. O assessor da Comissão Europeia, Paul de Grauwe, escrevia: “Alguns países europeus viram-se degradados ao status de economias emergentes”.A imprensa portuguesa denuncia que, nesses meses sob intervenção internacional, Portugal funcionou como um protetorado do FMI e da UE. O Diário de Notícias observou que Poul Thomsen, do FMI, é “o verdadeiro ministro de Finanças” de Portugal. Estamos em meio a uma batalha crucial, de dimensão europeia e global, que ainda está para ser decidida e cujas repercussões económicas e políticas são decisivas.
A “participação” dos bancos no resgate
Voltando ao acordo europeu de 21 de julho, há uma primeira parte dedicada ao “resgate” grego, que inclui um novo empréstimo da UE e do FMI (com juros mais baixos e prazos mais longos) e a chamada “contribuição voluntária” dos grandes bancos e seguradoras, que foi objeto de intensa polémica pública.
A polémica reflete o pânico provocado pela fragilidade do sistema bancário. No entanto, há um componente marcadamente obsceno porque, como explicou um analista, “o que começou como uma tragédia tornou-se uma comédia negra1 de enredos e simulações”, na qual “nada é o que parece e nenhum dos protagonistas diz o que pensa ou fala do que faz”2. A verdade é que Sarkozy e, sobretudo, Merkel encontravam-se com grandes dificuldades políticas para aprovar uma nova “ajuda” à Grécia se não a justificassem com o discurso de que os “bancos também deveriam pagar sua parte”. Mas a “contribuição privada” foi uma cínica operação cosmética.
De fato, “enquanto se falava publicamente nesses termos, o primeiro banco alemão, o Deutsche Bank - presidido pelo poderoso Joseph Ackerman, o grande assessor financeiro do Governo Merkel –, e o banco francês BNP funcionavam como arquitetos do novo esquema de ajuda. (…) Por isso, o plano implica mais alívio para os bancos credores – um desejo que lateja por trás dos atos da troika comunitária – do que uma solução para a enorme dívida do atormentado povo grego. De cada 100 euros da dívida que os bancos renovarem para a Grécia, ela verá só 50; os outros 50 servirão para financiar a operação e para que os bancos não registem perdas, desfazendo-se veladamente de parte dos títulos gregos. Além disso, gozarão da garantia pública europeia. Merkel y Sarkozy tiveram de lidar com o descontentamento de seus compatriotas lançando mão do discurso de que queriam castigar os credores privados, mas não foram além das palavras. Os credores, alguns dos quais compraram a dívida grega com rendimentos de 25%, recebem mais garantias e ganham mais dinheiro. Dos outros fundos do programa de resgate, até 110 mil milhões de euros serão aportados pela zona do euro e pelo FMI e servirão, como já ocorreu parcialmente com o primeiro plano de resgate, para que a dívida passe do ativo dos balanços dos bancos e fundos de investimento ao passivo das contas públicas.”3
Na realidade, jamais passou pela cabeça das autoridades europeias e do FMI a possibilidade da “quitação” da dívida grega, da forma como os especialistas consideravam obrigatória (entre 50% e 70%) para assegurar que o país não entrasse em colapso. A razão é que uma “quitação” assim poderia trazer gravíssimas consequências para o sistema financeiro europeu e mundial. Significaria, em primeiro lugar, a fuga de biliões de depósitos dos bancos gregos e sua falência certa. Bancos credores como o Commerzbank, BNP, Dexia, ING, UniCredito ou RBS, com quantidades importantes da dívida grega, teriam de ser “recapitalizados” e alguns deles “resgatados” pelo Estado. Desencadear-se-ia, ainda, uma liquidação massiva dos chamados credit default swaps4, o que afetaria os bancos de Wall Street e teria efeitos globais imprevisíveis. Por último, também haveria a onda de contágio para Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Em outras palavras, a “quitação” poderia converter-se em um novo Lehman Brothers.
Por tudo isso, a “quitação” acertada em Bruxelas chegou a apenas 10% da dívida grega. No entanto, só a menção à “participação privada” no “resgate” provocou pânico diante do temor de uma virulenta reação em cadeia dos “mercados” e levou a sérios enfrentamentos entre o BCE, o FMI, Merkel e Sarkozy, que dedicaram duas semanas buscando um reparo para que a crise se mantivesse sob controle.
Outro ponto-chave foi a ampliação de competências do chamado Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (MEEF), com o fim de que possa intervir de forma “preventiva”, comprando as dívidas da Espanha e da Itália, antes que esses países cheguem à beira da falência e já não haja mais retorno. O problema é que esta decisão não foi acompanhada pela ampliação de fundos para torná-la possível, e também foi feito um acordo de que só se interviria em situações “excecionais” e com prévio acordo dos 17 países da zona do euro. São condições que fazem com que, diante de uma situação crítica, o Fundo seja inviável. O ministro das Finanças da Alemanha, Schäuble, já acalmou os ânimos ao declarar que o MEEF “não é nenhum cheque em branco”.
É possível evitar a quebra dos PIGs?
O acordo firmado em Bruxelas foi apresentado como solução definitiva para a crise da dívida grega e como um “avanço histórico” da UE. Mas o entusiasmo durou apenas dois dias. No terceiro, os riscos-país da Espanha e da Itália voltaram a disparar e o BCE, fortemente dividido, viu-se imediatamente obrigado, contra a opinião alemã, a comprar as dívidas italiana e espanhola para deter a corrida até a quebra. Trichet, presidente do BCE, justificou-se dizendo que “se o BCE não tivesse atuado… já estaríamos na pior crise desde a I Guerra Mundial”.
O acordo de Bruxelas é, antes de tudo, um plano de salvamento dos bancos que prolonga a agonia da Grécia, permite maximizar sua pilhagem e tenta, mais uma vez, ganhar tempo. Tempo para transferir a carteira de títulos da dívida dos países periféricos que está nas mãos dos bancos (sobretudo franceses e alemães) para as mãos do BCE, da UE e do FMI, e também tempo para esperar um milagre impossível.
É consenso entre os analistas que a Grécia, Irlanda e Portugal não poderão honrar seus compromissos e terão que declarar, cedo ou tarde, a suspensão dos pagamentos. A Grécia não vai poder pagar a dívida pela simples razão de que esta é 150 % superior ao seu PIB (cada bebé nasce com uma dívida de 30 mil euros), porque se espera que a dívida chegue a 172 % do PIB em 2012 e porque vive uma brutal recessão (15 % de queda do PIB nos últimos três anos). Na Irlanda, o próprio governo reconhece que será impossível pagar, algo evidente para um país que viu sua economia retroceder mais de 20% desde 2009 e tem uma dívida público-privada 10 vezes maior que seu PIB. O mesmo vai acontecer em Portugal, com uma economia que foi submetida a um forte processo de desindustrialização, passou anos paralisada e agora se encontra em plena recessão (seu PIB vai cair 5 % este ano).
E a Espanha e a Itália?
Mas o problema não é a Grécia, Irlanda e Portugal (6% da zona do euro). O problema é a Espanha e a Itália (30 %). E já não podemos falar de “resgate” destas economias, simplesmente porque seu tamanho faz com que isso seja impossível. A quebra de ambos os países equivaleria à “implosão” do euro, levaria à quebra dos grandes bancos europeus, provocaria um verdadeiro desmoronamento do sistema financeiro internacional e quebraria a UE, pondo fim a décadas de “construção europeia”.
Itália e Espanha estão sofrendo uma forte crise política e a ameaça de rebaixamento da qualificação de sua dívida pelas agências de classificação. A economia espanhola, com um desemprego que atinge 5 milhões de trabalhadores (21 % da população ativa), não só está estancada como também está condenada a uma paralisação prolongada devido aos planos de ajuste e à ausência de crédito provocada por um sistema bancário que se mantém sobre ativos imobiliários fictícios e depende, em boa medida, do financiamento externo, cada vez mais caro e restritivo conforme aumenta o risco-país espanhol. Nessa situação, a dívida pública espanhola está condenada a tornar-se cada vez maior, mais cara e mais difícil de ser paga. Em 2008, ela equivalia a 40 % do PIB. Este ano será 68 %. Além disso, a dívida pública faz parte de um endividamento total (de bancos, empresas e famílias) que chega a quase 4 vezes o PIB espanhol, metade da qual é dívida externa, principalmente em mãos francesas e alemãs.
A Itália tornou-se a última “vítima dos mercados”. Suporta 10 anos de paralisia económica, vem perdendo progressivamente quotas de exportação e sofre também uma grande fragilidade bancária. Seu endividamento público supera 120 % do PIB (terceira dívida do mundo, depois dos EUA e Japão). Suas perspetivas económicas são sombrias, como consequência dos drásticos planos de ajuste impostos, com repercussões na dívida pública ainda mais graves do que no caso espanhol.
Falsas esperanças nos eurobónus
Alguns analistas acreditam que o melhor é deixar os PIGs falirem (aqueles que são dados como perdidos) e se concentrar em evitar a queda das dívidas espanhola e italiana. “Há dois cenários: ou o BCE assume sua responsabilidade e protege a Itália e a Espanha, ou tudo isso vai cair em pedaços”. O famoso George Soros defende que, para salvar o euro e evitar o caos, deve-se estabelecer a “saída ordenada” da Grécia e de Portugal do euro e da UE e que o resto dos países substitua suas dívidas nacionais pelos chamados euro-bónus (títulos de dívida pública que seriam emitidos e garantidos em conjunto por todos os países da zona do euro e em iguais condições para todos).
A cúpula da social-democracia europeia e economistas neokeynesianos, como Joseph Stiglitz, defendem algo parecido. Eles publicaram um documento na imprensa europeia, assinado por uma dezena de ex-primeiros-ministros, no qual se pronunciam, reivindicando Roosevelt na Grande Depressão, a favor de um “New Deal” centrado no “crescimento”. São partidários, como Soros, da emissão de euro-bónus que substituam 60 % da dívida dos países da zona do euro. Defendem também que, enquanto isso não se materializa, o BCE e o Fundo de Estabilidade Financeira comprem toda a dívida espanhola e italiana que for necessária. Do mesmo modo, defendem um reforço substancial do Banco Europeu de Investimentos (BEI) e o controle dos credit default swaps.
No entanto, os governos alemão e francês não estão a favor e se opõem ao euro-bónus por razões poderosas. A primeira: a taxa de juros que pagariam por eles seria superior à de suas atuais dívidas nacionais e isso aumentaria substancialmente os custos. A segunda: veriam seu controle sobre as economias periféricas enfraquecido. A terceira, não menos importante, em particular no caso alemão: a enorme crise política que acarretaria se isso for levado adiante.
Ao mesmo tempo, o prolongamento da atual situação, em que a crise da dívida em cada país retroalimenta as dos demais, o que se associa com a possível onda recessiva internacional e com a paralisia política da UE, faz pensar que o mais provável é que sejam incapazes de evitar a implosão do euro, o desmembramento da UE e um agravamento imediato da crise económica. Neste contexto, a saída-expulsão dos países periféricos vai colocá-los em cenários dramáticos como o da Argentina em 2001 (desvalorização massiva, dívida multiplicada, “corralitos”, quebras de bancos, ruína súbita das classes médias, fechamentos massivos de empresas...), uma verdadeira catástrofe social, que só pode ser enfrentada com drásticas medidas anti-capitalistas e a unidade da classe trabalhadora europeia.
Não há solução sem romper com o euro e a UE
A social-democracia europeia, executora dessas políticas e planos de ajuste, e corresponsável por esta invenção a serviço de banqueiros e multinacionais que é a UE, diz- nos agora que a solução para a crise europeia são os euro-bónus e algumas medidas de política keynesiana. Suas propostas não são mais que um tímido complemento (investimentos do BEI) aos planos de ajuste, de cuja “necessidade” compartilha sem escrúpulos.
Eles não questionam a Europa do Capital nem os bancos e multinacionais que a governam. Sua defesa do euro-bónus não é senão uma tentativa de salvar a zona do euro e a UE, tornando mais “digeríveis” as dívidas espanhola e italiana, com o objetivo de evitar suas falências. No entanto, ainda que os euro-bónus acabem sendo emitidos, isto tampouco significará o final da crise nem dará nova vida ao euro, simplesmente entraremos numa nova fase da crise.
“Esquecem” que a primeira condição para que os trabalhadores e os setores populares saiam da crise é precisamente o não pagamento da dívida, algo que anda de mãos dadas com o fim do euro e da UE. Repudiamos completamente os planos de ajuste a serviço dos banqueiros e defendemos um programa de resgate dos trabalhadores e dos povos, que começa com a implantação de medidas de distribuição do trabalho e que exige a expropriação dos bancos e a nacionalização dos setores estratégicos como base necessária para reorganizar a economia a serviço da grande maioria. Esta luta não é “nacional”, mas europeia e mundial. Não pode triunfar se não for no âmbito europeu, se não conseguir avançar na unidade da classe trabalhadora do continente e se não abrir o caminho para uma Europa socialista unida, baseada na democracia operária. Não há alternativa histórica diante da guerra social que o capital declarou para nos impor um retrocesso de décadas, “latino-americanizar” o nível de vida europeu e converter os países da periferia em semicolónias dos capitalismos alemão e francês, ameaçando, neste processo, liberdades e direitos democráticos. É o momento da revolução europeia.
Felipe Alegría (Espanha)
Notas:
1. A comédia negra revela-nos personagens de personalidade fraca, à deriva na vida, ou deixadas à mercê de um destino muitas vezes incompreensível, também chamada de humor negro.
2. Manel Pérez, Un sacrificio inútil, www.lavanguardia.com, 30/06/11
3. Idem
4. Conhecidos como CDS, é uma operação financeira de cobertura de riscos, pela qual uma operação de crédito (um empréstimo, por exemplo) é assegurada contra o não pagamento por parte de devedor.
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