* Umberto Martins
“A verdade está nos fatos”Deng Xiaoping
Euro e dívida fazem a diferença
A crise do dólar não é uma novidade histórica. Já vimos outras no passado. As circunstâncias particulares em que esta ocorre é que fazem a diferença. Cabe destacar dois fatos: a emergência do euro e o agigantamento do passivo externo e, conseqüentemente, da necessidade de financiamento do balanço de pagamentos norte-americano.
Os EUA precisam captar quase 3 bilhões de dólares diariamente no exterior para fechar as contas. O problema é que os investidores estrangeiros, públicos e privados, parecem cada vez menos dispostos a financiar tamanho parasitismo num contexto de crescente instabilidade monetária e valorização do euro. Assim, não é só entre os inimigos e na periferia do império que avulta a impressão de que a hegemonia da moeda estadunidense está com os dias contados.
A luz da dialética
Tal como ocorre com outros fenômenos históricos, a queda do dólar é um acontecimento contraditório, sujeito a diferentes interpretações. São muitas as opiniões em voga a respeito do tema, naturalmente mediadas pelas preferências ideológicas. Devemos analisá-lo à luz da dialética. Não é um bem ou um mal absoluto, nem mesmo para os EUA, onde para a economia doméstica suas conseqüências são em muitos aspectos positivas. Um dos efeitos da desvalorização é o crescimento expressivo das exportações (à taxa anualizada de 16% no terceiro trimestre deste ano). Isto vem estimulando a recuperação da competitividade e de mercados por parte da decadente indústria estadunidense, o que não é pouca coisa.
Com base neste fato, alguns observadores concluem que a queda do dólar faz bem aos EUA e coincide com a vontade da Casa Branca, a quem se atribui (falsamente) o poder de definir e impor arbitrariamente o valor relativo de sua moeda. Porém, esta é uma conclusão equivocada, fruto de uma visão unilateral e também idealista da história, pois no fundo nega ou não compreende o caráter objetivo dos fenômenos econômicos e as contradições dialéticas que lhes são inerentes. As coisas não são tão simples quanto parecem à primeira vista.
Se, de um lado, é verdade que a queda persistente do dólar impulsiona as exportações e constitui uma via obrigatória para equacionar o extraordinário desequilíbrio comercial cultivado pelo império, de outro é inegável que também promove objetivamente a necessidade de reformar a atual ordem monetária internacional. Neste sentido, não é uma boa notícia para quem quer preservar a hegemonia mundial. É provável também que um ajuste externo mais severo para corrigir o déficit em conta corrente vai exigir a contrapartida de uma redução mais sensível da taxa de consumo, o que pode levar à recessão.
A queda da moeda dos EUA não é como a queda de uma outra moeda nacional qualquer, embora as causas do declínio possam ser as mesmas, refletindo problemas no balanço de pagamentos provocados por um acúmulo de déficits comerciais. Nas presentes circunstâncias, a inflação do dólar pode provocar danos irreparáveis à posição privilegiada que este ocupa no mundo e acelerar a falência da hegemonia monetária dos EUA.
O enfraquecimento da hegemonia monetária faz parte de uma decadência mais ampla do imperialismo.
A depreciação, que vem se manifestando com altos e baixos desde 2002 e tem se acentuado nos últimos meses, compromete a capacidade do dólar continuar exercendo as funções de moeda internacional, reduzindo sua relevância como meio de pagamento e unidade de conta no comércio de mercadorias e no fluxo de investimentos globais, assim como reserva de valor dos bancos centrais.
O critério da verdade
- Na reunião de Riad (18/11), a OPEP acatou proposta apresentada pela Venezuela e pelo Irã no sentido de realizar um estudo sobre a conveniência econômica de substituir o dólar como meio de pagamento, padrão de preços do petróleo e reserva dos países membros. Parece óbvio que o declínio do dólar traz prejuízos e estimula maior instabilidade dos preços do ouro negro, além de reduzir o valor real das reservas nele denominadas. Se a OPEP decidir substituir o dólar pelo euro, o iene, o yuan, a libra ou qualquer outra moeda, no rico e lucrativo comércio do petróleo, a supremacia do dinheiro de Tio Sam nos mercados internacionais não irá pelo ralo?
- Muitos países, destacando-se exportadores de petróleo como os Emirados Árabes, Irã, Venezuela e Indonésia já estão convertendo suas reservas em dólar para o euro, caminho que também começou a ser trilhado pela Rússia. Antes de 2003 o Iraque de Saddam Hussein também substituiu o dólar pelo euro e lucrou com isto, fato que alguns analistas apontam como uma razão adicional para a criminosa guerra promovida pelo governo Bush. Seja como for, depois da ocupação o dólar naturalmente voltou a ocupar sua antiga posição.
- A participação do euro nas reservas internacionais é crescente, principalmente nos países considerados menos desenvolvidos
- Em 2006 o valor dos empréstimos denominados em euro atingiu US$ 4,8 trilhões, superando o valor dos empréstimos em dólar, que ficou em US$ 3,8 trilhões (1)
- O Brasil e a Argentina estão ultimando os preparativos para dispensar o dólar como meio de pagamento nas transações comerciais bilaterais
- A bela Gisela Bunchen, modelo mais cotada do mundo, está recusando contratos e pagamentos em dólar. Nossa musa agora só aceita euro. Em declarações à imprensa, Patrícia Bunchen, sua irmã e empresária, explicou que os contratos em euro são mais atraentes e seguros, tendo em vista que sabe-se lá o que vai acontecer com a moeda estadunidense. Ou seja, não é um ato de hostilidade ao império. Este fato pitoresco, aparentemente sem maior importância econômica, revela como o padrão dólar vai perdendo objetivamente as condições para exercer as funções de meio de pagamento e unidade de conta nas transações econômicas, que no caso envolve contraltos entre indivíduos e empresas. A fé é o lastro da moeda fiduciária. A perda de confiança no dólar é o prenúncio do fim da hegemonia monetária dos EUA
O tempo e a razão
Observados em conjunto, esses fatos configuram uma situação econômica que foi caracterizada com propriedade na resolução política aprovada no 11º Congresso do PCdoB como um cenário histórico de “decomposição do padrão dólar”. À época tal caracterização despertou divergências e chegou a ser considerada por alguns camaradas como expressão de “catastrofismo”, mas o tempo, que é senhor da razão e conselheiro do futuro, parece querer confirmar sua justeza. É bom reler, à luz dos fatos em curso, a análise do quadro internacional proposta pelo 11º Congresso.
A resolução faz, neste ponto, uma reverência e uma homenagem ao líder da revolução soviética, Vladmir Ilitch Lenin, que se referiu, mais de uma vez, à decomposição econômica da potência hegemônica (então, a Inglaterra) em seus estudos sobre o imperialismo. Para o grande revolucionário e teórico russo, a decomposição do império real britânico foi provocada pela ação combinada de duas leis do desenvolvimento do capitalismo em sua fase imperialista, descobertas pelo economista e historiador inglês Jonh A. Hobson: o parasitismo e o desenvolvimento desigual.
Muita água rolou sob as pontes da história desde que Lênin escreveu sobre o imperialismo, enquanto corria a 1ª Guerra Mundial, motivada pela decadência da Inglaterra e ascensão da Alemanha. As idéias fundamentais que desenvolveu sobre o tema mantêm notável atualidade. É indispensável recorrer ao pensamento de Lênin para compreender a conjuntura que o mundo vive hoje.
Parasitismo e desenvolvimento desigual
No palco histórico em que se encena o drama da decomposição do padrão dólar, o pano de fundo é o aberrante parasitismo dos EUA e o desenvolvimento desigual, também referidos na resolução política do 11º Congresso. Não é e nem poderia ser o propósito deste artigo explicar em detalhes as relações entre parasitismo, desenvolvimento desigual e a crise do dólar, muito menos esgotar o debate em torno de um tema tão vasto e complexo. Todavia, é possível e necessário concluir que a queda do dólar, nas atuais circunstâncias históricas, apesar dos seus aspectos contraditórios, reflete um processo mais amplo de decadência da potência hegemônica. Hugo Chávez tem razão: a decomposição do padrão dólar é uma expressão da decomposição do império americano e “devemos nos preparar para isto”.
A arrastada novela do dólar, que vai nos render ainda muitos novos capítulos, é ao mesmo tempo um fenômeno econômico e político. A interação entre economia e geopolítica transparece em alguns fatos. As derrotas que o império vem amargando na América Latina, o ressentimento disseminado entre os povos árabes e os muçulmanos pelas tragédias no Iraque e Afeganistão e o apoio a Israel, além da ressurreição do nacionalismo russo, são fatos políticos que influenciam o comportamento de governos e bancos centrais nas decisões em curso sobre diversificação das reservas, estimulando a preferência pelo euro, que de resto também tem sólidas justificativas econômicas.
O assunto merece novas análises, outros artigos e maior aprofundamento. Conforme observou o presidente do nosso PCdoB, camarada Renato Rabelo, na conclusão do seminário sobre o capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo (20/11), o debate sobre as perspectivas do padrão dólar se impõe aos comunistas não por diletantismo ou por razões acadêmicas. A elaboração das universidades deve ser levada em conta, mas a preocupação do coletivo partidário tem natureza política, tem a ver com os desafios da luta de classes no plano da ideologia, o que exige um esforço para o desenvolvimento de um pensamento próprio, comunista. É indispensável estudar e compreender o fenômeno, com o espírito crítico, aberto e sem dogmatismo, para atualizar e aprimorar a teoria marxista e, com ela, iluminar o caminho da luta contra o imperialismo e pelo socialismo. É a formulação da tática e da estratégia revolucionária que requer um conhecimento mais profundo e preciso da crise do imperialismo, pois como já dizia Lênin (citado pelo camarada Renato Rabelo) “sem teoria revolucionária não há revolução”.
Notas
(1) Tal informação, atribuída à International Capital Market Association, consta do artigo intitulado “A abastança desenfreada dos EUA”, de Willian A. M. Buckler, publicada no sítio Resistir.info. Notemos que emprestar dinheiro, conforme Buckler, “é o maior negócio do mundo”
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