Vermelho
17 DE AGOSTO DE 2008 - 12h22
O juiz espanhol Baltasar Garzón estará no Brasil nesta semana para uma série de palestras e debates sobre a violação dos Direitos Humanos, tortura e o direito da sociedade de conhecer o seu passado.
Baltasar Garzón (foto ao lado) ficou mundialmente conhecido em 1998 ao ordenar a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet por crimes contra a humanidade. Foi a mais notória decisão do magistrado que construiu uma carreira baseada no combate à impunidade dos torturadores de cidadãos da Espanha na América Latina, em especial no Chile e na Argentina. A pressão externa de Garzón engrossou o caldo de cultura que permitiu a esses dois vizinhos do Brasil levar aos tribunais militares acusados de tortura e assassinatos durante as respectivas ditaduras.
Garzón foi convidado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), e cumprirá agenda em São Paulo, nesta segunda-feira, 18, e em Brasília, no dia 19.
Magistrado da Audiencia Nacional, Baltasar Garzón possui o título doutor honoris causa concedido por 21 universidades. Em 1998, ele se tornou conhecido mundialmente por ter decretado a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres.
O juiz Garzón cumprirá uma agenda de eventos e encontros com autoridades e representantes da sociedade civil em São Paulo e em Brasília. Na segunda-feira, às 15 horas, ele visita, na capital paulista, a exposição “Direito à Memória e à Verdade”, no antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), hoje Estação Pinacoteca.
Estarão presentes o ministro Paulo Vannuchi, da SEDH, o presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Barbosa, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, José Gregori, os secretários da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Marrey, e o da Cultura, João Sayad.
À noite, às 19 horas, no teatro do Hotel Renaissance, Garzón participa do seminário internacional “Direito à Memória e à Verdade”, promovido pela SEDH, Universidade Estadual Paulista (Unesp) e revista Carta Capital, com apoio da Caixa Econômica Federal.
Na terça-feira (19), em Brasília, estão previstos encontros com autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário. Às 17 horas, o juiz fará palestra e participará de debate promovido pela Universidade de Brasília (UnB) e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, no Auditório Joaquim Nabuco, da Faculdade de Direito.
Entrevista
Em breve entrevita à revsita CartaCapital, Garzón antecipou algumas idéias que pretende expor aos brasileiros durante sua participação nos debates em São Paulo e Brasília. Garzón disse não estar nos seus planos investigar crimes de tortura no Brasil, mas que a punição a torturadores é um passo importante à consolidação da democracia. “O mais acertado, o mais humano é que os arquivos sejam abertos e os culpados responsabilizados”, afirmou.
O Brasil, ao contrário de vizinhos próximos, ainda não abriu os arquivos do regime militar nem levou a julgamento acusados de tortura. O que o senhor pensa a respeito?
Baltasar Garzón: Eu creio que a história é recorrente. Quando não são tomadas as decisões necessárias, apoiadas na verdade, na memória, para se estabelecer o que realmente aconteceu no passado, o país tem um problema a resolver. Entendo que o mais acertado, o mais humano, o mais positivo, é que esses arquivos sejam abertos e os culpados responsabilizados, e não se tomar a atitude de “nada acontece, porque é assim mesmo”. Há países que demoram muito para fazer isso, como a Espanha, que levou 70 anos, mas que mesmo assim conseguiu resolver alguns casos e determinar responsabilidades.
O principal argumento dos que são contra a abertura dos arquivos e a abertura de ações judiciais é que isso causaria instabilidade política...
BG: Sempre, em todos estes casos, quando chegamos ao ponto em que é pedida a abertura (dos arquivos), há esta polêmica, que considera que ela só pode ser feita se houver um ataque ao sistema. Mas muitas pessoas, e eu me incluo entre elas, conseguem mostrar que isso não é verdade, que a abertura não tem nada a ver com o risco ao sistema político, e sim com a aplicação prática da Justiça, com a recuperação da memória. Não se pode fechar definitivamente a porta em relação aos atos cometidos durante a ditadura, cuja impunidade é um caso de muita gravidade. É preciso que cada país encontre a sua maneira de fazer justiça, e eu acho que isso pode perfeitamente acontecer no Brasil.
Em que medidas as leis de anistia em países como Argentina, Chile e Brasil não se contrapõem à legislação internacional sobre crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados?
BG: A existência dessas leis locais de anistia, que concedem perdão aos acusados, não foi um obstáculo para a Justiça espanhola em relação aos casos chileno e argentino, porque, se o fato aconteceu fora do país em que a investigação é realizada, é aplicado o princípio da justiça penal universal. Ele estabelece que crimes cometidos contra a humanidade são imprescritíveis. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu uma sentença muito importante no caso Barrios Altos (chacina que matou quinze pessoas em Lima, no Peru, em 1991, cometida por paramilitares ligados às Forças Armadas), pelo qual Alberto Fujimori (presidente do Peru à época) está sendo investigado. Ela determinou a abolição da lei de anistia do Peru, que impedia até então a investigação. Portanto, está claro que uma lei de anistia não pode impedir a investigação de crimes de lesa-humanidade.
Embora tardia, a discussão sobre o julgamento de torturadores no Brasil começa a tomar corpo. Quais devem ser os próximos passos desse movimento aqui?
BG: Eu não conheço a realidade brasileira, nem alguma eventual comissão que pretenda resgatar a memória histórica desse período, sobre todos os atos cometidos pelo regime, como o desaparecimento de pessoas. Mas digo que é necessário procurar saber se há jurisprudência, se há uma atuação uniforme dos promotores e juízes em relação aos casos existentes. Só assim é possível saber se o País está em um momento de debate sobre todos os casos do período, e é necessário alcançar este momento. Sobretudo, para fortalecer a democracia, porque o fato de não ter havido apuração dos crimes até agora não significa que eles devem ficar impunes. Somente assim acontecerá a recuperação da memória e da Justiça.
Por que foi conseguido sucesso nesse sentido na Argentina, no Chile, no Uruguai e não no Brasil?
BG: Não tenho conhecimentos concretos sobre o caso do Brasil, e que iniciativas foram tomadas. Porém, nos casos da Argentina e do Chile, tenho uma relação direta, porque fui o responsável pelas ações internacionais direto da Espanha. Elas começaram em 1996, e o ponto alto foi a detenção de Augusto Pinochet, que serviu para ativar todos os mecanismos de Justiça internacional e nacional e para finalmente poder julgar aqueles que cometeram crimes, tanto no Chile como, sobretudo, na Argentina. Esta é a única maneira de fechar as feridas causadas pelo passado mal-resolvido.
Esses crimes são realmente considerados imprescritíveis? Os Estados sul-americanos têm a obrigação de punir os responsáveis por esses crimes?
BG: Sabe-se que em países como Chile e Argentina já se estabeleceu que sim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também disse que sim, do meu ponto de vista, também. O Chile foi o primeiro caso em que a prescrição existia no sistema penal, mas sempre há de se levar em conta que são crimes internacionais, por serem de lesa-humanidade. Portanto, conforme prevê o direito consuetudinário internacional, é obrigatório que este tipo de crime seja combatido e investigado, mesmo que tenha transcorrido um certo tempo, que seria suficiente para caracterizar a prescrição nas leis locais de cada país.
Em caso de omissão estatal, como isso pode ser revisto em cortes internacionais? O Brasil pode receber punições por não levar à Justiça os torturadores e militares em geral envolvidos nesses crimes?
BG: Este é um assunto bastante complicado. É preciso observar se, passado o período da ditadura, as leis que possibilitaram a instituição da democracia permitem barrar as investigações de atos do regime anterior. Creio ser necessária uma interpretação conjunta com as normas internacionais, quando se trata de crimes contra a humanidade, o que permitiria investigar os atos passados da ditadura, não tanto em relação à omissão e, sim, em relação às conseqüências que esses atos tiveram.
Se os crimes cometidos pela ditadura brasileira são contra a humanidade, por que esses delitos não foram tratados assim no País até agora?
BG: Seria necessário ver as decisões que a Justiça brasileira tomou em relação a isso, e eu desconheço qualquer tipo sobre a qualificação desses crimes (cometidos pela ditadura) como de lesa-humanidade. Em todo caso, aqueles crimes que foram cometidos sistematicamente a partir das estruturas de poder, ou por organizações amparadas por essas estruturas, contra determinados setores da população, em razão de suas crenças e idéias políticas, são considerados crimes contra a humanidade. Então seria necessário estudar e entender o caso do Brasil e, a partir desse ponto, decidir pela adoção da doutrina que prevê os crimes de lesa-humanidade nos tribunais brasileiros.
Há informações de que o senhor teria dito a autoridades brasileiras que pretende investigar crimes da ditadura aqui no Brasil. O senhor confirma essa informação? Pretende mesmo investigar crimes no Brasil?
BG: Não, não há nenhum procedimento aberto na Espanha sobre crimes brasileiros, os procedimentos que estavam abertos se referiam ao caso chileno, em que havia vítimas brasileiras, e era isso que estava sendo investigado, não os crimes que foram cometidos no Brasil. Repito que não há nenhum procedimento aberto na Espanha e nem houve a intenção em nenhum momento.
Há um caso específico de um cidadão espanhol, Miguel Sabat Nuet, preso no Brasil pelo DOI-Codi em 1973 e que até hoje consta como desaparecido. Um mês e meio depois ele morreu numa cela, segundo denúncias. O Ministério Público do Brasil investiga no momento a morte de Nuet. O senhor está acompanhando esse caso? O governo e a Justiça espanhóis estão fazendo alguma coisa? Qual medida pode ser tomada por parte da Espanha?
BG: Desconheço a existência deste caso e não sei se ele está seguindo os trâmites diplomáticas, mas a mim não me consta tenha sido iniciado algum tipo de ação internacional, e se houvesse, teria de ser tomada por algum organismo internacional. Em todo caso, como está sendo investigado pela Justiça brasileira, seria necessário esperar o resultado deste processo de investigação. Se for uma desaparição forçada, entra no rol dos crimes internacionais contra a humanidade, não há prescrição, é um delito permanente, e que precisa ser investigado. Se não fosse investigado no Brasil, teria que se investigar na Espanha.
A Justiça da Espanha pode responsabilizar o governo brasileiro pela morte do cidadão Miguel Nuet? O senhor mesmo poderia encaminhar ação nesse sentido?
BG: Eu creio que temos que esperar o que decide a Justiça Brasileira, já que você me disse que o caso está sendo investigado aí. É preciso que a investigação seja concluída, seria leviano e temerário que qualquer autoridade fale em culpabilidade antes do fim do processo.
Na Espanha, chegou-se à conclusão que juízes do país poderiam investigar casos de abusos mesmo se o cidadão vitimado não for espanhol, por tratar-se de crime contra a humanidade. O que o senhor achou da decisão?
BG: Na Espanha existe o principio de justiça penal universal e a lei do poder judicial, de 1985, se aplicou nos casos argentinos, e em outros casos que ainda tramitam na Espanha, como o caso de Salomón e o caso de Sahara, o Tribunal Constitucional Espanhol, em uma sentença de setembro de 2005, reiterada por outras sentenças, estabeleceu que o princípio de justiça penal universal permite que a investigação seja feita quando se trata de crimes de lesa-humanidade, mesmo que a vítima não seja espanhola, o que seria uma espécie de cláusula conta a impunidade. Partindo deste princípio, de que a aplicação correta é prevista pelo Tribunal Constitucional, assim é que aplicamos nos casos em que investigamos.
Com informações da CartaCapital
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