sexta-feira, 13 de novembro de 20
Segundo a Constituição, art.º 117.º, os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções, cabendo à lei ordinária determinar os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos.
No artigo 130.º prevê-se a responsabilidade do Presidente da República pelos crimes praticados no exercício das suas funções, sendo a iniciativa do processo da Assembleia da República e a competência para o julgar do Supremo Tribunal de Justiça
Durante mais de dez anos a lei ordinária não deu cumprimento ao disposto na Constituição, tendo finalmente, a Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, estabelecido a tipologia dos crimes de responsabilidade bem como o respectivo regime.
Esta lei foi alterada posteriormente várias vezes, sendo última alteração de 2015, Lei n.º 30/2015 de 22 de Abril.
Para analisar a responsabilidade criminal do Presidente da República convirá fundamentalmente atender aos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º Lei n.º 34/87 de 16 de Julho.
Art.º 8.º - ATENTADO CONTRA A CONSTITUIÇÃO
O titular de cargo político que no exercício das suas funções atente contra a Constituição da República, visando alterá-la ou suspendê-la por forma violenta ou por recurso a meios que não os democráticos nela previstos, será punido com prisão de cinco a quinze anos, ou de dois a oito anos, se o efeito se não tiver seguido.
Art.º - 9.º - ATENTADO CONTRA O ESTADO DE DIREITO
O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido.
DESENVOLVIMENTO
Analisemos em primeiro lugar o artigo 8.º. Este artigo prevê duas situações: a alteração ou a suspensão da Constituição por meios violentos ou por recurso a meios que não os democráticos nela previstos.
Relativamente à primeira situação não se vê como possa o crime consumado ser punido, parecendo antes que na sua previsão apenas poderá caber a tentativa ou a frustração. Vejamos porquê. Se o titular de um cargo político no exercício das suas funções atenta contra a Constituição com vista a alterá-la ou suspendê-la por forma violenta e logra obter esse objectivo, a partir desse momento a lei que penaliza o atentado contra a Constituição deixa de aplicar-se, porque a legalidade vigente passa a ser outra - a legalidade decorrente do acto de força que permitiu alterar ou suspender a Constituição; se, porém, o titular do cargo político não conseguir alcançar o objectivo, então estaremos perante uma tentativa que a lei igualmente prevê e para a qual estabelece uma punição mais branda. A menos que se entenda que a lei não consagra a tentativa por se bastar com o facto de o agente visar alterar ou suspender a Constituição. Só que nesse caso deixa de ter sentido a previsão da pena para a simples tentativa. Uma coisa, porém, é certa, se o objectivo for alcançado por meios violentos (manu militari) a punição não terá lugar pelas razões acima aduzidas. Por muito cínica que esta interpretação possa parecer, ela é a que resulta do princípio da efectividade.
Já o mesmo se não poderá dizer relativamente à alteração ou suspensão da Constituição por meios não democráticos. O recurso a meios não democráticos só pode querer significar o recurso a qualquer outro meio que não os previstos na Constituição para a sua alteração ou suspensão. A questão que a este respeito naturalmente se põe é a de saber se a alteração ou a suspensão a que o artigo 8.º se refere tem de consubstanciar-se num acto formal ou se pode também resultar de uma prática que deixa formalmente inalterado o texto constitucional, mas da qual resulta de facto uma verdadeira alteração ou suspensão da Constituição.
Relativamente à alteração ou suspensão da Constituição por meios não democráticos também se poderia começar por afirmar que o crime consumado não poderá ocorrer porque o acto que formalmente consagra aquela violação é juridicamente inexistente, uma vez que se mantém a estrutura essencial do Estado de direito. No entanto, neste caso, parece óbvio que o essencial para que a consumação ocorra é a prática do acto, independentemente da sua validade jurídica. Todavia, apesar de a prática, por meios não democráticos sem recurso à violência, de um acto formal, porém inexistente, ser punível e de relativamente a ele se não levantarem os mesmos problemas que filosófica e praticamente estão associados à prática de um acto da mesma natureza por meios violentos, temos de admitir que, para além da prática de actos formais, o artigo em questão se refere também às práticas que igualmente visem a alteração ou a suspensão da Constituição levadas a cabo sem a existência de actos formais que a consubstanciem. Ou seja, práticas que produzam um resultado equivalente ao que resultaria de uma alteração ou suspensão formal.
A dificuldade com que esta interpretação se depara é que nem toda e qualquer prática contrária à Constituição de um titular de órgão de soberania deve ser criminalmente punida. Teria de se fazer a distinção entre as práticas contrárias à Constituição e as práticas que visam de facto alterá-la ou suspendê-la por subverterem gravemente os princípios democráticos nela consagrados.
Optar por este caminho para punir o titular de um órgão de soberania seria certamente um caminho árduo e difícil de ser percorrido com êxito. Mas nada impede de o tentar percorrer desde que os factos que provam a existência dessa prática e o animus de quem os pratica sejam manifestamente informados pelo desprezo pelos princípios democráticos consagrados na Constituição.
Já quanto ao artigo 9.º da lei acima citada, a configuração do crime de atentado contra o Estado de direito refere situações mais plausíveis e mais prováveis de acontecer sem que a subsunção dos respectivos comportamentos na previsão normativa levante o mesmo tipo de interrogações. Aquele que abusar das suas funções, que delas se desviar gravemente ou que gravemente violar os seus deveres para tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido incorre numa pena de dois a oito anos de cadeia ou de um a quatro se os seus intentos não tiverem sido alcançados.
Aqui tudo é mais simples e plausível ,como acima se disse. Desde que uma determinada conduta de um titular de um órgão de soberania se traduza numa flagrante violação das suas funções ou represente um uso abusivo dessas funções ou uma grave violação dos seus deveres para por essa via tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente consagrado estaremos claramente numa situação em que o comportamento do agente preenche (integra) a previsão normativa, havendo, portanto, lugar ao desencadeamento das consequências jurídicas que a concretização daquela previsão acarreta.
Do ponto de vista prático – e era aqui que queríamos chegar – a questão que se põe é portanto a de saber como qualificar o comportamento de Cavaco, enquanto titular de um órgão de soberania, se fizer tábua rasa da decisão do Parlamento e mantiver em funções o actual Governo, na sua actual composição ou remendado, recusando-se a indigitar um outro Primeiro ministro.
Vejamos o que diz a Constituição. Cabe ao Presidente da República nomear o Primeiro Ministro, ouvidos os partidos políticos representados na Assembleia da República, tendo em conta os resultados eleitorais. Esta é uma competência do Presidente da República.
A competência de um órgão compreende os poderes que por lei lhe são atribuídos para o desempenho da sua função. Todavia, os poderes compreendidos na competência de um órgão não são todos da mesma natureza. Há poderes que esse órgão exerce discricionariamente (não confundir com arbitrariamente), embora sempre em vista do fim para que foram concedidos, compreendendo essa discricionariedade umas vezes a prática ou a não prática de um acto; outras, a escolha de uma via entre várias possíveis, devendo em qualquer caso a decisão, embora baseado num juízo pessoal de quem decide, ser aquela que, segundo esse juízo, melhor serve o objectivo, o fim, em vista do qual aquele poder foi concedido.
Todavia, nas competências de um órgão não estão apenas compreendidos poderes discricionários. Pelo contrário, a maior parte desses poderes são poderes vinculados, poderes que têm de ser exercidos nos termos prescritos pela lei, havendo, entre estes, poderes que não podem deixar de ser exercidos por a inacção representar a violação de um dever.
É o que se passa com a nomeação do Primeiro Ministro pelo Presidente da República.
O Presidente da República não pode deixar de nomear o Primeiro Ministro. Não pode, por exemplo, o Presidente da República deixar de nomear um novo Primeiro Ministro saído de eleições legislativas, mantendo o anterior Governo em funções, por não lhe agradar ou não concordar com a orientação política do partido vencedor ou por qualquer outra razão. O Presidente da República não tem o poder de nomear ou não nomear. Tem de nomear.
A que regras está subordinada essa nomeação? A Constituição é muito clara: como já atrás dissemos, o Presidente da República nomeia o Primeiro Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais, depois de ouvidos os partidos representados na Assembleia da República.
Ter em conta os resultados eleitorais significa olhar para a correlação de forças no Parlamento resultante do acto eleitoral. E há situações saídas dos resultados eleitorais que não suscitam quaisquer dúvidas, em que ouvir os partidos não passa de uma mera formalidade. Assim, inequivocamente, quando há um partido ou uma coligação de partidos que ganha as eleições com maioria absoluta dos deputados. Também não há qualquer espécie de dúvida quando depois das eleições se constituiu uma coligação formada por dois ou mais partidos com maioria absoluta de deputados no conjunto dos partidos coligados. E o mesmo se poderá dizer quando dois ou mais partidos negoceiam depois das eleições um acordo de incidência parlamentar que assegura, a um deles, o apoio maioritário no Parlamento. Em todos estes casos a decisão do Presidente da República só pode ser – tem de ser – a indigitação como Primeiro Ministro da personalidade que chefia o partido mais votado, a coligação de partidos ou o partido que beneficia do acordo de incidência parlamentar.
Em qualquer destes casos se o Presidente da República não nomear Primeiro Ministro a personalidade acima indicada, se estiver a fazer depender essa nomeação de exigências ou da aceitação de condições que a Constituição não prevê – e a Constituição não prevê nenhumas! –, terá de entender-se que o Presidente da República estará a tentar alterar a Constituição por meios não democráticos ou, no mínimo, a abusar das suas funções, a violar os seus deveres e a tentar alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente consagrado por estar a impedir o regular funcionamento das instituições.
Mesmo nos casos em que a interpretação dos resultados eleitorais não seja tão óbvia como nas situações acima descritas, o Presidente também não goza de um poder discricionário de interpretação dos resultados eleitorais. O seu poder é sempre limitado e compreende-se que o seja porque o que está em causa é o voto do povo numa democracia representativa. Numa democracia representativa o deputado não recebe um mandato imperativo, como toda a gente sabe. O deputado não tem tutores, nem explicadores sobre o que deve ou não fazer, estando apenas condicionado pelo voto popular na eleição seguinte. Numa democracia representativa de feição partidária o partido assume igualmente um papel de relevo, sem que contudo a autonomia jurídica do deputado seja posta em causa, embora do ponto de vista prático essa autonomia esteja obviamente condicionada pelas regras partidárias, que, todavia, o deputado pode não aceitar, desligando-se do partido sem deixar de ser deputado. Isto para dizer que ninguém, com excepção do deputado, no sistema constitucional português se pode arrogar o direito de interpretar o sentido do voto popular. Daí que os poderes do Presidente na República sejam muito limitados quando se trata de atender aos resultados eleitorais.
Assim, fora dos casos acima previstos, o Presidente da República deve indigitar para Primeiro ministro a personalidade que chefia o partido mais votado. Contudo, se durante as negociações para a formação de governo, o Primeiro Ministro indigitado chegar à conclusão de que não consegue assegurar o voto favorável do Parlamento ou a abstenção que lhe permita governar impõe a lealdade institucional que tal facto seja comunicado ao Presidente que, depois de ouvidos novamente os partido, deverá convidar o segundo partido mais votado para formar governo já que nenhuma outra alternativa lhe resta, pois, como se sabe, a AR não pode ser dissolvida nos seis meses subsequentes à sua eleição.
Se, porém, o Primeiro Ministro indigitado for empossado porque não comunicou ao Presidente que não dispunha de apoio parlamentar ou porque acreditava que esse apoio poderia vir a alcançar-se e o seu Governo não passar no Parlamento em consequência de uma moção de rejeição aprovada por maioria absoluta de votos dos deputados em efectividade de funções e entretanto se tiver formado uma coligação pós eleitoral ou um acordo de incidência parlamentar que assegure, em qualquer dos casos, um apoio maioritário a essa coligação ou a um partido, o Presidente da República deve – está obrigado – nomear Primeiro Ministro a personalidade que chefia a coligação ou o partido que dispõe desse apoio parlamentar maioritário. O Presidente da República não pode deixar ficar o país sem Governo, sem um Governo no pleno exercício de efectividade de funções.
A Constituição não atribui ao Presidente da República qualquer poder susceptível de condicionar essa nomeação. O Presidente não pode impor-lhe condições para o nomear, nem exigir-lhe compromissos de nenhuma espécie, salvo obviamente o respeito pela Constituição. Se o Presidente não nomear o novo Primeiro Ministro por não concordar com a “cor” política do novo Governo ou por entender que esse Governo não está em condições de cumprir as exigências (inconstitucionais) que ele lhe impôs, ou por qualquer outro motivo, e deixar em gestão por tempo indeterminado o governo rejeitado, o Presidente da República estará de facto a tentar alterar a Constituição ou, no mínimo, a abusar dos seus poderes e das suas funções, a violar gravemente os seus deveres e a tentar por essa via subverter ou alterar o Estado de direito consagrado na Constituição por estar dolosamente a impedir o regular funcionamento das instituições.
No caso de Cavaco, o dolo nem sequer é difícil de provar porque ele expôs com muita clareza o seu pensamento e as suas intenções no discurso de indigitação de Passos Coelho. Por outro lado, o comportamento de Cavaco subsequente à rejeição aponta no mesmo sentido. A decisão de ouvir os chamados “parceiros sociais”, em vez de ouvir os partidos, como a Constituição lhe impõe, resolver partir de férias ou de viagem de recreio para a Madeira, protelando a decisão sobre uma situação urgente, não podem deixar de constituir indícios mais que seguros de um comportamento doloso de desprezo pela Constituição que assim estava sendo subvertida com base num sectarismo absolutamente inaceitável.
Se esse for o caso, se o actual Governo for mantido em gestão até á realização de novas eleições, a Assembleia da República, mediante proposta de um quinto dos deputados (46), deverá iniciar o processo-crime por atentado contra a Constituição e contra o Estado de direito com vista à sua aprovação e posterior remessa ao Supremo Tribunal Justiça afim de nele ser instruído e julgado.
.
1 comentário: