* Vitor Dias
SEXTA-FEIRA, 17 DE MARÇO DE 2006
Uma amargura combatente
Sabemos perfeitamente que a posse de Cavaco Silva como Presidente da República ocorreu já lá vão oito dias e que há quem diga que, nos tempos que correm, um tal prazo é, em termos políticos, uma eternidade.
E, para além disso, também sabemos que, no PÚBLICO de passado domingo, num texto intitulado «Declaração de voto de vencido», Mário Mesquita já disse, com a profundidade, elegância e fina ironia a que nos habituou, o que estava a fazer falta que alguém dissesse em torno da “entronização”, perdão, da posse de Cavaco Silva e de um certo espírito semi-reverencial, de um inusitado louvor das “sintonias” e de um quase unanimismo gelatinoso que pareciam marcar o ambiente político a propósito daquele relevante facto político.
Apesar disso, talvez os leitores possam compreender que, um pouco a modos de “trabalho de luto” que precede a continuação da luta, queiramos juntar a nossa voz à de Mário Mesquita, naturalmente sem a pretensão de representar os 2.713.916 portugueses que votaram nos outros cinco candidatos, mas com a certeza de que muitos deles ou fugiram da transmissão em directo da cerimónia ou, como o autor destas linhas, perante ela sentiram uma considerável preocupação, mágoa e tristeza.
No fundo, trata-se de fazer frente a um processo já várias vezes verificado em Portugal, e que alguém há uns anos, em França, baptizou de “intimidação maioritária” e que consiste basicamente em, perante a vitória eleitoral de um candidato presidencial ou de uma força política, tratar como inexistentes ou irrelevantes os eleitores (e as suas aspirações e convicções) que não alinharam na opção vencedora, muitas vezes com base no argumento de que a maioria dos eleitores tem sempre razão, quando em boa verdade essa maioria terá sempre as suas razões mas não necessariamente “a razão”.
E é por isso que queremos escrever preto no branco e claro como a água que não nos sentimos nada felizes nem reconfortados, bem pelo contrário, por ver chegar à Presidência da República uma personalidade como Aníbal Cavaco Silva.
Porque, contra a corrente da amnésia e do relativismo político e para além de cruciais razões de futuro, não nos esquecemos de que, há 21 anos, a sua ascensão a líder do PSD e depois a Primeiro-Ministro se alicerçou no truque de fazer crer que um “novo PSD” tinha começado com ele e que para trás não havia nem história nem responsabilidades do seu partido e na suprema mistificação de ainda haver ministros do PSD no Governo do Bloco Central e, em simultâneo, conseguir fazer uma campanha eleitoral de crítica devastadora à acção desse governo mesmo quando os ministros em exercício do PSD estavam a seu lado nos palcos dos comícios.
Porque não nos esquecemos que gastou uma década inteira a fazer invariavelmente uma perversa campanha contra “os políticos” e “a política” sempre protegido pela insistente rábula de que, na chefia do governo, era apenas um submisso escravo do interesse nacional e um economista e professor universitário que só o destino, o acaso ou o amor ao país tinham empurrado para a vida política.
Porque não nos esquecemos que, debaixo dessa pose de não-político, não houve campanha eleitoral em que participasse, entre 1985 e 1995, que não fosse marcada por alguns dos vícios mais politiqueiros, desde o frenesim das inaugurações eleitoralistas às distribuições de cheques do Estado por caciques e candidatos do PSD, passando pelas tremendas catástrofes que sempre anunciava caso perdesse, como aconteceu, por exemplo em 1991, quando chegou ao requinte de proclamar que a vitória dos seus adversários teria como uma das muitas nefastas consequências que os portugueses já não poderiam comprar frigoríficos.
Porque não nos esquecemos que, sendo pessoalmente incorruptível, beneficiou vastas e gulosas clientelas, favoreceu o enriquecimento ilegítimo de muitos fiéis e apoiantes, deu um impulso decisivo à reconstituição dos grandes grupos económicos. designadamente através das famosas OPV (contra as quais o insuspeito Francisco Sousa Tavares escreveu em “A Capital” um texto de extraordinária violência) e dos subsequentes avanços das privatizações.
Porque não nos esquecemos que foi com Cavaco Silva no cargo de Primeiro-Ministro que os compradores do Totta em apenas três anos tiveram os lucros suficientes para compensar o que tinham pago pela aquisição daquele banco nacionalizado e também não esquecemos o caso do “acordo secreto” com António Champalimaud em que esteve especialmente envolvido o Secretário de Estado Elias da Costa.
Porque não nos esquecemos que, por volta de 1991, foi Cavaco Silva quem proclamou que “com mais alguns anos de estabilidade governativa” (nesse tempo já era um valor em si mesma) seria possível “agarrar o pelotão da frente” dos países mais avançados da Comunidade Europeia, embora como economista não pudesse deixar de saber que estar no “pelotão da frente” do cumprimento dos critérios de Maastricht era uma coisa e outra bem diferente seria estar no “pelotão da frente” em padrões de desenvolvimento e bem-estar, tarefa esta, segundo abalizadas opiniões, para 40 ou 60 anos, consoante os cenários.
Porque não nos esquecemos que, na década em que governou o país, se aplicaram centenas de milhões de contos oriundos de fundos comunitários em formação profissional e hoje ainda se continua a identificar como um sério problema a qualificação da mão-de-obra nacional.
Porque, entre outras coisas miúdas e muitas mais graúdas, não nos esquecemos nem da despudorada instrumentalização em tempos de antena do PSD da vitória dos juniores portugueses num Mundial de futebol, nem da atitude de Cavaco Silva e do seu Governo face aos incidentes na Ponte 25 de Abril, nem das suas ridículas pretensões de forjar um “novo português”, nem do facto de uma RTP telecomandada por Marques Mendes ter chegado ao ponto de mudar o nome de uma telenovela brasileira (de “O salvador da pátria” para um ensosso “Sassá Mutema”) com medo das incómodas associações de ideias que poderia gerar, em época já de ocaso político de Cavaco Silva.
Aqui chegados, não faltará quem diga que este “regresso ao passado” é mesmo típico de alguém que julgava estar escrito nas estrelas que nunca a direita conquistaria a Presidência da República e teve uma desagradável surpresa em 21 de Fevereiro.
Sinceramente, não cremos que seja o nosso caso. Em boa verdade, cedo pressentimos a extraordinária dificuldade da última eleição presidencial. E, por estranho que possa parecer, um dos primeiros sinais de alarme que vislumbrámos foi quando, no tempo em que se ainda se perfilava uma eventual candidatura presidencial de Santana Lopes, vimos algumas personalidades à esquerda não apenas assustadíssimas com tal hipótese mas também procedendo, por comparação, a uma certa “reabilitação” de Cavaco Silva.
Mais à frente, dava para perceber que o campo diversificado e plural que se opunha à eleição de Cavaco Silva enfrentava o que poderíamos chamar de máxima conjunção de factores desfavoráveis: a saber, a displicência com que o PS sempre geriu este dossiê: o descontentamento de vastos sectores sociais e profissionais com a política do Governo PS; a existência de centenas de milhar de eleitores que, na década de governação cavaquista, eram crianças ou pré-adolescentes; um ambiente de crise económica e dificuldades sociais sempre propicia a alguns suspiros por um “homem providencial”; e, por fim, uma pré-campanha e campanha eleitoral de Cavaco Silva milimetricamente encenada no sentido de uma alegada postura supra-partidária e de um férreo acantonamento num discurso redondo, asséptico, blindado e, na aparência, incrivelmente despolitizado.
Aqui chegados, também já sabemos que não faltará quem diga que este é um texto típico de quem tem mau perder, de quem não entendeu as mudanças que ocorreram nos últimos vinte anos e de quem se quer vingar da realidade através de desabafos carregados de amargura e ressentimento.
De tudo isto só aceitamos a referência à amargura e do resto falaremos noutras ocasiões. Mas acreditem que é uma amargura combatente.
publicado por vítor dias às 23:09
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