17 de Novembro de 2015 - 10h59
Parece cruel supor que o os verdadeiros responsáveis pela tragédia que se abateu sobre Paris na última sexta-feira sejam os próprios poderosos franceses e seus aliados da Otan. Assim como parecia insensível a atitude de quem atribuía aos próprios (poderosos) estadunidenses a responsabilidade pelos atentados de 11 de setembro de 2001.
Parece. Mas nem tudo o que parece é. A realidade é sempre mais complexa do que apontam os fatos tomados isoladamente. E é por isso que a crítica marxista ao positivismo foi arrasadora. Olhado isoladamente o fato social nada nos diz, são suas múltiplas conexões que podem nos fornecer um olhar mais aproximado do todo social e alguma explicação da realidade em toda a sua complexidade.
Não há como compreender os acontecimentos de Paris por uma lógica dualista que opõe a “nós” (ocidentais, cristãos etc.) e a “eles” (orientais, não cristãos etc.). Primeiro porque não há “nós”, numa comunhão perfeita, onde os “ocidentais” seriam uma comunidade coesa e livre de conflitos. E porque não há “eles” como um amálgama social formado por valores estranhos ao tal do “ocidente”, um conjunto coeso, que compartilha valores e aspirações “anti-ocidentais” e violentas.
Enquanto a mídia ocidental chora as vítimas francesas e aplaude o discurso de guerra de Hollande (tal como fez com Bush em 2001) como um ato de honra, o Líbano chora seus mortos e feridos num atentado ocorrido pouco antes do de Paris, a Síria lamenta cinco anos de atentados quase diários e de proporções maiores, a Palestina chora a diáspora de décadas e o Quênia lamenta a centena e meia de estudantes mortos em uma universidade. A dor francesa é de todos nós, é claro, mas por que para a mídia ocidental ela é mais dolorida do que a dor libanesa, síria ou queniana? Talvez porque “eles” sejam diferentes de “nós” e, portanto, mais “acostumados” às asperezas dos conflitos, afinal “eles” são a origem do mal.
Essa é a versão da mídia ocidental, que nos é empurrada diariamente em noticiários e comentários de “especialistas”. Se olharmos mais de perto, porém, e fizermos algum esforço de conexão entre os fatos, não será difícil encontrar a mão do governo francês na origem do Daesh (ou Isis), assim como não era difícil mostrar as conexões entre os EUA e a Al Qaeda e, agora também, o Daesh. Talvez alguém aponte aqui alguma falta de sensibilidade, mas é impossível deixar de atentar para que transcorridas poucas horas após a odiosa tragédia de Paris - nem bem identificados e chorados os mortos - o governo francês já sobrevoava a Síria e bombardeava “áreas controladas pelo DAESH”. A mesma França que se opunha, há poucos dias, à ofensiva russa, iniciada em 30 de setembro com a autorização do governo constitucional de Assad, contra as instalações dos terroristas na Síria. A mesma França que financia os bandos armados que desestabilizam a Síria e que tem múltiplos interesses geoestratégicos a defender naquela região.
Já não assistimos algo semelhante em 2001? Os atentados de 11 de setembro não foram seguidos de um discurso inflamado de Bush Jr. onde se invocava a proteção de “deus” e o posicionamento do mundo, a favor ou contra os EUA? Logo Bush Jr., cujas conexões com as empresas petroleiras atuantes no Oriente Médio eram amplamente conhecidas? Logo os EUA, que apoiaram, treinaram e financiaram Osama Bin Laden para fortalecer a Al Qaeda como instrumento de guerra contra a presença soviética no Afeganistão?
A propaganda midiática esquece-se de propósito dessas conexões. E ignora, também de propósito, o sofrimento dos povos daquela região do mundo. Trata-os como “outros” para tornar honrosa a guerra da agressão promovida pelas potências do ocidente e de Israel. Perpetua a velha forma da propaganda antecipada, que prepara o caminho palatável da guerra de agressão. O que a grande mídia faz a respeito dos episódios recentes não é muito diferente do que os grandes jornais já faziam no final do século XIX, como mostra essa passagem do livro “História da Nação Latino-americana”, de Jorge Abelardo Ramos a respeito das agressões dos EUA a Cuba (que visavam sua anexação):
“O magnata do jornalismo marrom, William Randolph Hearst, proprietário doJournal, enviou para Havana [em 1898] o seu melhor desenhista, Frederic Remington, e o seu famoso jornalista, Richard Harding Davis, os quais contratou por três mil dólares ao mês para preparar a opinião pública norte-americana em relação à guerra que o seu jornal preconizava. Entretanto, ambos os jornalistas passavam suas entediadas tardes no bar do Hotel Inglaterra bebendo. Até que um dia, por acaso sóbrio, Remington telegrafou para Hearst: “Tudo está tranquilo (...) Não haverá guerra (...) Desejo voltar”. Hearst respondeu com outro telegrama que se fez célebre: “Por favor, fique. O senhor providencie os desenhos e eu providenciarei a guerra”.
Mais de cem anos depois os magnatas da informação continuam fazendo o mesmo que o proprietário do Journal: providenciando a guerra. Ou, como expressou recentemente o vice-ministro russo da Defesa, Anatoly Antonov, travando, permanentemente, uma “verdadeira guerra de informação”.
“Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade” (Boake Carter).
* Socióloga
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