Duas histórias (que não são estórias) à laia de intróito.
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Nos dias 25 e 26 de Abril de 1974 uma das preocupações centrais da polícia política do regime fascista foi destruir a lista nominal dos bufos. Aliás esse foi dos poucos documentos que a PIDE/DGS queimou. Eram mais de 25.000 os informadores espalhados pelo país. Como o fascismo apenas reconhecia a existência de cerca de 1 milhão e meio de eleitores (sim, é verdade), dava qualquer coisa como um bufo para cada 50 cidadãos “politicamente activos”. Bufos esses de que a PIDE mantinha um arquivo com as suas actividades descritas ao pormenor. Mas onde apenas constavam os seus pseudónimos. Daí o queimar apressado. Bufos que apenas eram conhecidos dos respectivos chefes. Cada chefe de brigada, sub-inspector ou inspector tinha a sua própria rede, desconhecida dos demais.
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Passado poucos anos muitos ex-PIDEs e ex-bufos eram chamados pelo regime democrático a integrar serviços da República onde poderiam aplicar as suas conhecidas “competências”. E os relatórios elaborados por esses serviços eram (e são) remetidos diária, semanal e mensalmente a quem nos governa. Ano após ano. E aí voltou a surgir o conceito de “inimigo interno”. Do que se tratava (trata)? De comunistas e seus aliados, sindicatos, associações de estudantes, comissões de trabalhadores, organizações sociais as mais diversas. Explicitamente referidos como tal. E não consta que qualquer governante tenha mandado corrigir esta situação.
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Este caldo de cultura ajuda a explicar muita coisa.
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Assistimos de há muito a uma ofensiva que crescentemente põe em causa direitos, liberdades e garantias que são conquistas inalienáveis de Abril. Mas que ganhou novas formas e conteúdos nestes mais de 2 anos de governo PS de José Sócrates. Com a implementação de formas meticulosamente elaboradas de condicionamento e paralisia da acção e intervenção social e laboral, mas também política. O simples enunciado de medidas basta para nos facultar uma pálida visão do que está em causa.
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Desde logo, nas novas leis ditas de “reforma do sistema político”. Nos processos de governamentalização e concentração de poderes nas áreas da segurança interna. No processo de reorganização das forças de segurança. Nos novos projectos de governamentalização da justiça. No cartão único. Nas anunciadas alterações às leis eleitorais.
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Mas também, nas crescentes limitações ao direito de propaganda política. Nas múltiplas acções visando iniciativas de divulgação e afirmação política. Nas exigências ilegítimas de licenciamento. Na imposição excessiva de limitações quanto a espaços (quando a lei, e só ela, claramente tipifica os locais e regras a que deve obedecer). Na pretensão da obrigação de informação ou autorização prévia. Na invocação de abusivos regulamentos de publicidade para impedir iniciativas de propaganda. Na retirada de propaganda visual e das estruturas que lhe dão suporte. No impedimento de distribuição de documentos escritos em locais públicos, invocando a natureza privada da propriedade dos espaços e locais. Na aprovação dos chamados regulamentos municipais de propaganda e publicidade. Na identificação de membros do PCP e da JCP, de activistas e dirigentes sindicais e associativos por parte das forças de segurança. No levantamento de processos no sentido de criminalizar essas actividades.
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Outra vertente corporiza-se nas medidas visando a alteração da correlação de forças nas relações de trabalho. Que se traduzem em retrocessos graves no plano da democracia participativa. Em retrocessos nos direitos de organização e acção sindical. Na proibição da actividade sindical e das comissões de trabalhadores nas empresas. Na perseguição e na repressão aos dirigentes sindicais e activistas e a todos aqueles que assumem a defesa dos interesses dos trabalhadores. No refinamento dos mecanismos de pressão e repressivos limitativos do simples direito à sindicalização e do direito à greve. No Código do Trabalho. Na ofensiva contra os trabalhadores da Administração Pública. Na degradação das relações laborais dos profissionais da comunicação social. Na tentativa de imposição da Lei do Estatuto do Jornalista ou da chamada flexigurança.
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O mesmo se passa na escola com a desvalorização da participação dos estudantes nas suas estruturas associativas. Nas crescentes limitações nos processos eleitorais. Na negação do direito à propaganda. Nas pressões inadmissíveis para fazer abortar as suas formas de luta. Na anunciada reforma do ensino superior.
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Onde estão as medidas visando uma sempre maior e mais consciente participação dos cidadãos na vida política, económica, social e cultural do país?
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A comunicação social dominante tem ao longo destes anos desempenhado um papel crescente na legitimação destas políticas. Bem espelhado na defesa de valores e concepções retrógradas para a nossa sociedade. Na imposição do pensamento único. Com o conjunto de efeitos que são conhecidos na formação de opiniões, no desenvolvimento da consciência política e social, no quadro de valores dominantes e na cultura democrática.
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Há muito que os grupos económicos perceberam que a comunicação social, para além de um grande negócio, é também um instrumento de pressão sobre o poder político e de dominação das opiniões e das consciências.
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É transparente que se pretende naturalizar a exploração e eternizá-la. Impondo novos conceitos que não são mais que construções ideológicas e instrumentos de alienação do real. E inculcá-las com o duplo objectivo de legitimar o apagamento de direitos duramente conquistados e anunciar falsas inevitabilidades.
Especialista em Sistemas de Comunicação e Informação
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