A esperança macabra de qualquer estratega é encurralar o inimigo num quadrado cada vez menor e, finalmente, destruí-lo com terríveis «fogos cruzados». Trata-se não apenas de uma táctica de guerra mas também, em tempos de paz, de um princípio estratégico geral, militar ou não militar. A Igreja Católica adopta-o frequentemente, sobretudo quando se trata de talhar a sociedade à medida dos seus interesses ou de abrir caminho aos seus aliados, eliminando concorrências potenciais. . Ainda há poucos dias, um conhecido padre demonstrou possuir esse entendimento. . Bom conhecedor em matéria política, o padre Vítor Melícias melhor do que ninguém conhece o estado lamentável da Nação. Sobe o custo de vida, cresce o desemprego, a educação é uma lástima, a saúde é reserva dos ricos. A Igreja perde prestígio e influência junto das populações. Os lucros financeiros da banca privada são um escândalo moral. . O sacerdote em questão sempre tem alimentado a sua imagem pública de defensor da solidariedade, da caridade e da «igreja dos pobres». . Diariamente recorda esses valores. Como bom franciscano jovial e optimista, é assim que quer ser visto pela multidão dos humildes. Porém, Vítor Melícias também gere negócios importantes da pastoral caritativa. Conduz Misericórdias, IPSS, ONGS, Lotarias, Fundações. É, de facto, um administrador competente (ninguém o negará!) de uma esmagadora massa financeira. . Mas chegado a este ponto, aqui na face da tese oposta à da «igreja dos pobres», na esfera doirada dos que «voam mais alto», é evidente que o padre se confronta com uma insustentável contradição. Porque Melícias, condutor eclesiástico de um importante sector social, é a face visível da Igreja na luta contra a pobreza. Logicamente, impõe-se-lhe escolher (e, com ele, toda a Igreja Católica) entre os interesses dos ricos e os interesses dos pobres. A imagem evangélica do «sim, sim; não, não». Mas o padre Melícias pensa de outra maneira. Passa à frente e, jovial e optimista, insiste em pregar a reconciliação de classes. Numa carta recentemente divulgada, na esteira do Banco Privado Português confessa Vítor Melícias: «Na minha condição de frade franciscano... tive trato directo com o mundo do dinheiro que me trouxe vivências e episódios de grande riqueza humana e sábia pedagogia no meu relacionamento com ele (o mundo do dinheiro).» . Investidores da banca privada . Esta hipotética potencialidade humana do mundo do dinheiro que Melícias afirma ter experimentado relaciona-se com novas formas que o capitalismo adopta para se expandir e ocupar fatias do mercado financeiro mundial ainda pouco exploradas. É uma área que a Pastoral Social privilegia e se associa aos objectivos expansionistas do chamado sector das empresas private equity (investidores ligados a investimentos concretos). Uma explicação rápida e provisória destes palavrões pode consistir assim, em português: o capitalismo não se baseia na produção, mas no crédito; o crédito implica investimento; ora, o investimento exige cada vez mais grande poder financeiro ao investidor, deixando de fora da corrida uma multidão de pequenos investidores que pertencem, quase sempre, às classes médias da sociedade mundial. . O papel das private equitys é, justamente, extrair lucro dos pequenos investidores sem acesso às Bolsas de Valores. Como? Ligando o investidor a um só projecto para ele escolhido e gerido pelo banco. Sem outra participação do pequeno investidor que se limitará, no futuro, a receber dividendos e a pagar à banca pesadas taxas. . Caso contrário, o pequeno accionista ficará isolado, sem capacidade para investir. . Isso acontecerá, necessariamente, se o pequeno investidor da classe média recusar as condições ditadas pelo banco que se propõe «salvá-lo». Os agentes bancários desta área tornam-se, assim, verdadeiros apóstolos do capital. Por isso mesmo, os banqueiros lhes chamam business angels (anjos do negócio). A banca acantona os interessados numa área pré-definida, extrai deles o lucro que puderem dar e, no momento conveniente, abre sobre a classe média o seu fogo cruzado, abate-a e arruína-a. . Declara ainda o padre Melícias na sua missiva pastoral: «Dá-se o aflito ao aflito, o pobre ao pobre, o generoso ao necessitad ... Na verdade, é no dar que se recebe, no repartir – investindo ou distribuindo – que se respeita a natureza e finalidade social do dinheiro. Mal usado é o esterco. Posto ao serviço, é oiro.» . É a retórica da demagogia. Sem mais comentários. . in Avante 2008.01.17 . Quadro de Giotto - Jesus expulsa os vendihões do Templo
in auladearte.com.br/historia_da_arte/giotto_capela scrovegni |
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