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Carvalho da Silva, líder de uma das centrais sindicais mais representativas do País, garante que a CGTP não se pôs à margem das negociações para a revisão do Código do Trabalho e acusa o Governo de ter decidido, ainda em 2006, excluir a central de todo o processo.
Raquel Martins
- No final da reunião da Concertação Social, a 24 de Junho, disse que o despedimento por inadaptação sempre esteve na proposta do Governo para cair. Se assim era, por que é que esta foi uma das palavras de ordem da manifestação desde Junho?
- Logo no dia em que o Governo apresentou o documento dissemos que havia três matérias sensíveis: a negociação colectiva, o tempo de trabalho e a precariedade. Havia ainda uma quarta, a inaptidão, mas que era apenas para fazer cenário de negociação.
- Então que sentido faz convocar uma manifestação onde essa era uma das palavras de ordem?
- A proposta estava no texto e havia que tomar algumas precauções. Também não disse que era definitivamente para cair. Também não sou eu que faço a propaganda e além disso há outras interpretações. Mas para mim estava claro que a figura do despedimento por inaptidão tinha sido colocado ali para cair. Por duas razões; uma era a barreira da Constituição da República e outra é que alguns sectores patronais defendiam que se podiam atingir os mesmo objectivos sem ferir a Constituição.
- A estratégia negocial da CGTP foi a adequada? Fica a ideia de que os protestos não valeram de nada e que a CGTP não conseguiu defender alguns dos interesses que considerava fundamentais. O que é que os trabalhadores ganharam?
- As questões que têm que se colocar são, por um lado, se esses interesses eram defensáveis face ao contexto em que vivemos e, por outro, quais os desafios que se colocam agora à sociedade. Há dimensões nas relações do trabalho que têm um forte conteúdo laboral e sóciolaboral, mas cujas soluções já não dependem só da intervenção nestes quadros. São questões de ordem política e da própria democracia. Por outro lado, o espaço que ficou para a CGTP foi muito pequeno.
- Por culpa de quem?
- Os estrategas do Governo assim o determinaram. Na Primavera de 2006, cruzei-me com dois amigos que me apresentaram o seguinte cenário: os estrategas do Governo acham que não é possível negociar com a CGTP, devido ao aprisionamento do PCP, e vão partir para um processo de afrontamento. Foi-me ainda transmitido que a revisão do Código do Trabalho era para atacar a estrutura do sindicalismo, que se reflecte no edifício da contratação colectiva construído há cerca de 40 anos. A ideia era atacar a CGTP...
- Estava "escrito" que o Governo iria ignorar a CGTP no processo de revisão do Código?
- Ignorar é palavra que não se usa. O Governo definiu a CGTP e os sindicatos referenciados na CGTP como inimigo a abater. Em 2006 esta estratégia já estava delineada, depois tratou-se de construir a comissão do Livro Branco com uma constituição que se adequasse ao objectivo.
- Em todo este processo o que é que trabalhadores ligados à CGTP ganharam com as lutas e manifestações?
- Praticamente tratou-se de uma imposição violenta. Não se podem contabilizar resultados nesta prática. Toda a gente fala que esta é uma revisão pontual, mas o Governo fez a maior revisão da legislação laboral porque toca em pontos-chave.
Os contratos colectivos em vigor começaram a construirse em 1968/69, através da contratação colectiva e, curiosamente, com mudanças significativas ao nível do horário de trabalho. E é precisamente isto que esta legislação pretende destruir. Os "artistas" que trabalharam a contratação colectiva — e que na minha perspectiva não são os actores políticos - não deixaram nenhuma das situações de fora.
As formulações que usam atingem a contratação colectiva, o papel dos sindicatos, a organização do tempo de
- Não terá gasto os cartuchos num processo em que sabia à partida que não iria conseguir o que pretendia...
- Nesta fase pode parecer que há poucos ganhos, mas se assumirmos que há problemas laborais cuja resolução passa pela sociedade de uma forma mais ampla, talvez não tenham sido poucos os ganhos para processos de futuro. Esta ideia de valorizar as lutas no imediato é muito pouco.
- Este Código vai agravar ainda mais as crises no mundo laboral de que fala?
- Não tenho dúvida de que vai agravar as desigualdades.
- Nem o reforço dos direitos de paternidade e o combate à precariedade merecem a sua concordância?
- As medidas pontuais e vistas isoladamente são positivas. Mas as questões estratégicas são a contratação colectiva, o tempo de trabalho e colocar os trabalhadores a trabalharem mais tempo por menos dinheiro. Os bancos de horas generalizados, sem que haja contratação colectiva, servem para não pagar trabalho extraordinário. Esta lei vai ser aplicada de acordo com esta relação de forças que já é desequilibrada.
- Não lhe faz confusão ver Bagão Félix (o pai da legislação em vigor) ao lado da CGTP em algumas críticas à revisão do Código do Trabalho?
- Ele não está ao lado da CGTP!
- Mas há críticas comuns, nomeadamente ao despedimento por inadaptação.
- Isso não é verdade! Estrategicamente o Código do Trabalho de 2003 pretendia isto tudo, nomeadamente atingir a célebre expressão de colocar o conta quilómetros a zero na negociação colectiva. Só não foram mais longe porque o PS estava na oposição e não o permitiu, assim como as outras forças de esquerda e as movimentações dos sindicatos. Agora, o PS tomou a dianteira. Perante isso não estranhem que aos olhos dos trabalhadores e do povo aconteçam duas coisas: uma é o descrédito da política e outra é considerar que estar lá o Sócrates ou a Ferreira Leite é a mesma coisa. Não tenho dúvidas que todo este processo [de revisão do Código] significa um retrocesso social e democrático do país, porque está associado a uma governação corporativa - veja-se o caso dos camionistas ou dos pescadores quepode preparar o país para o surgimento de um populismo qualquer e que pode contribuir para a convergência de espúrias. Mas há uma certeza, quem vai dar a volta a isto são os portugueses.
Vieira da Silva e elemento do Governo mais elogiado pela direita e pelo patronato
- Não perdoa ao PS ter-se desviado do que defendeu na oposição?
- É uma das maiores marcas da história do PS em Portugal e vai confirmar um desvio profundo, do qual não sei como irá recuperar.
- Um desvio da sua matriz ideológica?
- A governação incorporou práticas e dinâmicas do neoliberalismo dominante sem as assumir. Há um livro do Pierre Bordieu, o "Corta- Fogos", onde ele explica o que é este tipo de governação neoliberal: a prática de pôr a sociedade a discutir uma ideias gerais e quando se compara o que se discutiu com os conteúdos plasmados em decretolei não têm nada a ver. Isto vê-se na educação, na saúde, no trabalho.
- Temos um partido de esquerda no poder, que segue políticas neoliberais...
- Esta proposta do Código não está isolada, nem governo português criou aqui o comando do neoliberalismo. Estamos a entrar no processo, que também se sente ao nível da União Europeia (UE). Gostava que em Portugal tivéssemos um governo de esquerda. E não digo da esquerda de que eu... de que sou militante de base... falo num conceito amplo. Temos um conjunto de governantes que estão absolutamente vendidos ao modelo neoliberal.
- O ministro Vieira da Silva está vendido ao neoliberalismo? Ele é considerado o braço esquerdo do Governo...
- Mas também nunca ouviu tantos elogios de gente de direita! Neste momento ele é o elemento do Governo mais elogiado pela direita e pelo patronato. Ele e o primeiro-ministro ainda vão ter de explicar muitas coisas, nomeadamente o engajamento ao conceito de flexigurança durante a presidência portuguesa [da UE], uma coisa disparatada.
- Mas o conceito foi abandonado...
- A revisão do Código é o desenvolvimento do conceito que o ministro disse que já estava no programa do governo. E isso não se pode perdoar: o PS ganhou votos com base no que defendeu na oposição e depois vendeu a alma ao diabo.
"Trabalhadores: organizem-se, de qualquer forma, senão estão lixados"
- A possibilidade de os trabalhadores aderirem individualmente aos contratos colectivos, sem serem sindicalizados, é um ataque directo à CGTP?
- Primeiro é a adesão individual, que historicamente é considerada, até pela Organização Internacional do Trabalho, como uma das medidas mais anti-sindicais que se conhecem na história do movimento sindical. Para completar, o trabalhador faz a inscrição num contrato que tem uma cláusula que diz que ele ao inscrever-se tem que pagar quota. Está tudo dito sobre o que se quer para o sindicalismo: os patrões podem decidir o sindicato que querem na empresa ao viabilizarem essa cláusula.
- Mas as alterações ao nível da contratação colectiva não são o desmoronar de um edifício que já estava a cair?
- A contratação colectiva está em crise, não nego.
- Também por culpa dos sindicatos...
- Toda a negociação até 2003 foi feita com base no princípio do tratamento mais favorável. Daí em diante, esse princípio ficou fragilizado e hoje, como a relação de forças entre o capital e o trabalho é muito desequilibrada a favor do capital, há um tendência natural para um grande "defensismo". É isso que explica o posicionamento dos sindicatos
- Então a CGTP não podia ter feito mais?
- A acção da CGTP têm estado a contribuir para pôr a claro o que é isto da manipulação do tempo de trabalho. Há já muita gente desperta para esse cinismo de se dizer que os trabalhadores querem fazer 36 horas em três dias. Querem porque têm necessidade, para depois terem um segundo emprego.
- É apenas por necessidade? Há empresas que já têm horários flexíveis com o acordo dos trabalhadores? A Autoeuropa por exemplo.
- Mas é uma flexibilidade controlada, com os trabalhadores organizados.
- A ideia do banco de horas é que seja negociado...
- Teoricamente é para ser negociado. Agora, faço-lhe um desafio, qual é a percentagem de empresas portuguesas onde existe organização colectiva dos trabalhadores afirmada? Por isso, fazemos um apelo aos trabalhadores: organizem-se, de qualquer forma, porque senão estão lixados! Quando se fala da Autoeuropa esquece-se a outra parte: a maioria dos empresários portugueses e o Governo não permitem a organização colectiva e a sindicalização livre dos trabalhadores.
- Mas há estruturas sindicais, nomeadamente a UGT, que aceitaram o reforço dos mecanismos de flexibiIização. Eles é que estão errados?
- É de uma falsidade incrível que dirigentes sindicais, nomeadamente a UGT, venham dizer que a flexibilidade será aplicada por negociação. Mas que negociação, se não existe organização colectiva dos trabalhadores e quando o documento nos encaminha para um aprofundamento da relação individual de trabalho?
- Está a dizer que a UGT não é independente do Governo?
- Não faço comentários em relação a isso. A UGT desde a sua fundação o que é?
- Mas a CGTP também tem fortes ligações ao Partido Comunista.
- Agora diz-se que é ao PCP e ao Bloco (risos). O poder não é indiferente à CGTP. Agora se fossemos discutir se as lutas dos trabalhadores estão muito ou pouco prisioneiras da luta política geral, isso dava para outra conversa.
Patrões e sindicatos analisam o novo Código do Trabalho
Ao longo dos próximos dias, o Jornal de Negócios vai ouvir quatro dos principais actores da revisão do Código do Trabalho, que se sentaram à mesa das negociações com o Governo. Os bastidores das reuniões, as vitórias e as derrotas de cada uma das confederações vão estar em análise na primeira pessoa. A CGTP foi a única confederação que não viabilizou o documento que serviu de base à proposta de lei que já está nas mãos dos deputados. Já Francisco Van Zeller, da Confederação da Indústria Portuguesa, João Proença, da UGT, e José António Silva, da Confederação do Comércio e Serviços, deram o seu acordo à proposta inicial do ministro Vieira da Silva. Também o Turismo e a Agricultura viram as suas reivindicações aceites e ficaram ao lado do Governo.
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