Notícia 1 de 4
Madeira
Cada um tem a casa naquilo que é seu
A maior parte das vítimas mortais das enxurradas de sábado passado na Madeira são das terras altas. De povoações como o Caminho do Moinho, ou o Pico do Cardo de Dentro, onde cada um constrói a sua casa no terreno que herdou, sem autorização ou quaisquer condições de segurança. Por Paulo Moura (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)O Rex e a Violeta estão sozinhos em casa. Estão sozinhos no bairro, fechados no quintal. Ladram se alguém se aproxima, o que é raro. Desde a tempestade que ninguém aqui vem, excepto para retirar das casas alguns objectos de valor, ou para alimentar os animais. Não é fácil chegar cá. Depois de atravessar a pequena ponte de ferro que cruza a ribeira, é preciso enterrar os pés na lama até aos tornozelos, num equilíbrio difícil por entre os troncos e os pedregulhos.
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Antes de chegar a casa da D. Inês, passa-se pelo pátio da senhora Mena e da filha, mesmo por baixo do alpendre da D. Cecília, que morreu junto a esta pedra. Ainda se vê a marca do corpo, retirado pelos bombeiros. Cecília de Fátima da Câmara. O funeral foi segunda-feira, às 16h. E aqui, neste pátio onde a lama ainda está mole, é onde ficaram soterrados cinco dos sete filhos da D. Inês. "Sobreterrados", como dizem as pessoas deste "casal", como que para dar mais expressão ao peso da lama. Por milagre, todas as crianças se salvaram. As casas estão cravadas na encosta íngreme, em socalcos, ou nem isso. Estão penduradas, equilibradas, encaixadas umas nas outras e na terra, suspensas.
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A casa de cima é a maior e mais luxuosa. Dentro, tem escadarias de mármore. Nunca ninguém lá viveu. É do filho do compadre do Carlos, marido da D. Inês. Acabou de ser construída há menos de um ano, com o dinheiro que o proprietário vai ganhando na ilha de Jersey, e que ainda não chegou para a mobília. A casa está vazia. Por dentro, só mármores e esmaltes. O filho do compadre do Carlos precisa de trabalhar mais uns anos em Jersey, até ganhar o suficiente para mobilar a casa. Então poderá voltar. Eram esses os planos, disse aos vizinhos, antes da tempestade.
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Logo abaixo da sua casa fica a dos pais, que são compadres do Carlos e da D. Inês, cuja casa fica abaixo da daqueles. A encosta é tão íngreme que, vistas da estrada do outro lado da ribeira, as casas parecem estar umas em cima das outras, como um sinuoso arranha-céus.
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Está tudo coberto de lama, troncos de eucalipto atravessaram os telhados como lanças, enormes pedaços de terra desabaram ou estão prestes a transformar-se em avalanchas. Em baixo passa a ribeira, furiosa.
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A porta da casa da D. Inês está aberta. Ao entrar está-se na sala de estar, que não tem mais de dez metros quadrados. Quer dizer, o quarto. Quer dizer, a sala de jantar. O chão está coberto de colchões e de montanhas de roupa muito suja, numa desarrumação que se percebe anterior à tempestade e à lama. A família de nove pessoas dormia nesta divisão. Só há mais duas: uma cozinha e uma casa de banho, minúsculas. Com as derrocadas, a terra em que assentava descolou-se do ângulo posterior direito do edifício, deixando o chão da casa de banho pendente no vazio. As paredes apresentam rachas frescas. "Se este lado da casa cair, o resto não se aguenta", diz o namorado da Telma, de 16 anos, uma das filhas da D. Inês. Com as chuvas que estão previstas, isso pode acontecer hoje, ou amanhã.
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Há 16 anos que a família andava a pedir uma casa. No mês passado, uma assistente social fez-lhe uma visita. Veredicto: poderiam viver mais algum tempo na miséria e na promiscuidade. "Eles eram pobres, mas muito felizes", diz o namorado da Telma. "Podiam ser remediados, mas o que a gente se divertia!" Dava-se bem com o pai da namorada, por isso passava cá muito tempo. Com ele, a família eram dez. "Faziam churrascos aqui neste pátio, convidavam-me. Ríamo-nos durante a tarde inteira." É o pátio onde a máquina de lavar nova sobreviveu, porque Carlos lhe construiu uma protecção especial em cimento, e onde as crianças ficaram soterradas. A mais nova tem três anos.
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"Eu vi o que eles corriam, aos gritos, coitadinhos", diz Bebiana, uma das vizinhas do "casal" da encosta em frente, do outro lado da ribeira. Os dois aglomerados de casas constituem um "sítio", chamado Caminho do Moinho, pertencente à freguesia de Santo António, a poucos quilómetros do Funchal. As casas da margem direita foram destruídas pelas enxurradas, as da esquerda não sofreram nada. "Fiquei aflita, mas o que é que podia fazer? Pensei que iam morrer todos." Tiago, o neto de Bebiana, também viu, da varanda. "Houve uns rapazes daqui que tentaram ir lá salvá-los, mas ficaram com a lama até à cintura. Tiveram de voltar para trás."
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Tiago, que tem 12 anos, vive na última casa do "carreiro", mais perto da estrada e da ribeira. Bebiana Andrade, que tem 50, vive na casa a seguir, num socalco mais alto da encosta. Não é por acaso. O "carreiro" vai descendo em degraus, com as gerações. No cimo da encosta situa-se a casa dos avós de Bebiana. Logo abaixo desta, a dos pais. Depois vem a casa dela, e a seguir a da filha, com o respectivo marido e filhos.
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"Isto era tudo um terreno que o meu avô comprou, há 33 anos", explica Bebiana. "Ele construiu a sua casa lá em cima, e depois deu uma parcela do terreno ao filho, que também construiu uma casa." Foi aí que Bebiana viveu até se casar, aos 16 anos. Nessa altura, o avô ofereceu-lhe também um terreno, para construir. Ofereceu outro à irmã.
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O "carreiro" tem hoje seis casas, onde vivem 20 pessoas, todas da mesma família. As mais novas vivem mais abaixo, as mais velhas mais acima. Ao lado deste "carreiro" há mais quatro, com histórias idênticas. Todas as casas têm pequenos pátios e quintais com cães, galinhas e porcos, que estão agora sozinhos, pelo menos durante a noite. Não há ninguém, em todo o Caminho do Moinho, que esteja a dormir em casa. Passam aqui o dia, mas pernoitam em casa de familiares noutras zonas, ou no quartel do regimento de Guarnição 3, ou num dos outros abrigos disponibilizados pelas autoridades.
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Nenhuma das casas sofreu danos com o temporal da semana passada. Mas os habitantes têm medo. De quê? Da parede.
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Obras de risco e imaginação
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Bebiana aponta para o topo da encosta. Um muro, ainda com andaimes, está a ser construído num local sobranceiro a todos os "carreiros". "Dizem que eles tiveram autorização para construir uma parede de quatro metros, mas já vai em 12. É para segurar uma plataforma onde vão construir quatro casas. Toda a gente acha que aquilo vai cair em cima de nós", diz.
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Todas as casas do Caminho do Moinho foram construídas ilegalmente, sem qualquer fiscalização. "A câmara diz que não dá licenças, porque isto é Zona Verde", explica Bebiana. Por isso constrói-se sem licença. Ninguém proíbe ou fiscaliza. "O meu avô construiu a casa ele próprio, com a ajuda de amigos. E toda a gente faz o mesmo. Só os mais ricos contratam um empreiteiro."
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O local e a forma de construção são decididos pelos proprietários. Em alguns casos, são obras de risco e imaginação. Há casas em lugares impossíveis, onde nem se percebe como assentam as fundações, onde o terreno é íngreme, o espaço exíguo, o solo instável. "Há sítios em que é difícil acreditar que vão conseguir construir uma casa", diz Bebiana. "Muitas vezes penso: "Não era eu que dormia ali"", acrescenta ela, olhando para a encosta em frente. Mas a verdade é que se constrói em virtualmente todo o lado, e as casas lá iam resistindo, o que encorajava a arriscar ainda mais. Mas agora essa confiança irracional sofreu um abalo. O maior número de vítimas mortais da tempestade surgiu aqui, nas terras altas. Muitas das casas situadas ao lado de ribeiras, no trajecto de enxurradas, em terrenos instáveis, ficaram destruídas. E aquilo que surgia aos olhos das pessoas como uma paisagem normal parece-lhes agora altamente perigoso. A parede de 12 metros, por exemplo. Nem Bebiana nem nenhum dos vizinhos consegue agora dormir sob aquela ameaça. "Ninguém confia naquela parede. Se chover muito outra vez, ela vai cair-nos em cima."
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Proibido construir
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Seguindo a estrada alguns quilómetros para cima, chega-se a outra povoação, o Pico do Cardo de Dentro, onde a destruição foi ainda maior do que no Caminho do Moinho. É lá que tem o seu estaleiro um conhecido empreiteiro da zona.
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"Aquela parede está muito bem construída, não oferece perigo nenhum", garante ele. "Tem fundações na encosta, sapatas no terreno. É feita com betão que vem de fora, mais resistente do que o que temos cá. Aquilo nunca vai cair. Pelo contrário, se não existisse a parede, aqueles terrenos teriam provavelmente desabado."
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No sítio do Pico do Cardo de Dentro poucas casas ficaram inteiras. Das primeiras casas da rua quase não há vestígios, enterradas que ficaram no solo. De uma delas foi retirado quarta-feira o corpo de um homem de 28 anos, ainda enrolado no cobertor onde dormia. As casas seguintes rolaram pela encosta, até se desfazerem na ribeira que corre ao fundo, ou desapareceram, ou ficaram reduzidas a pedaços de parede, sem tecto. Uma das casas era nova e tinha três andares. O próprio estaleiro do empreiteiro foi derrubado pelo tronco de um eucalipto que caiu da encosta superior.
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"O problema disto são os eucaliptos", é a teoria dele. "Não foi a água que fez nada desta desgraça. Olhe para ali. Há eucaliptos de dez, de 20 toneladas. E com mais de 70 metros de comprimento. Vieram a voar por aí abaixo."
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Com efeito, o cenário da destruição está pejado de eucaliptos gigantes. Vêm com as raízes e são visíveis, nos terrenos sobranceiros, os buracos de onde foram arrancados. Quase todas as casas se situavam do lado de baixo da estrada. Para cima, há uma encosta íngreme, de onde veio a enxurrada. À passagem, arrancou os eucaliptos, que se abateram contra a povoação.
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"Se não houvesse eucaliptos, nada disto teria ficado destruído. Nestas zonas de construção, isto deveria ser tudo limpo de eucaliptos. O problema é que a Guarda Florestal não deixa. E os tipos da Quercus." É um facto que a zona estava toda construída, mas não é propriamente uma zona de construção. Aliás, teoricamente, é proibido construir aqui.
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"Se não se pode construir, então porque fizeram a estrada?", argumenta o empreiteiro, que quer manter o anonimato, com receio de que deixem de lhe dar trabalho. "O Alberto João está sempre a dizer: "Construam naquilo que é vosso.""
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As pessoas compraram terrenos nestas zonas, com autorização apenas para o cultivo agrícola. "Mas a agricultura aqui não dá nada", queixa-se o empreiteiro. "Eu tive ali uma horta. Mas quando tentava vender os produtos no mercado, havia sempre outros mais baratos, vindos do continente. É impossível viver disso. As pessoas constroem aqui as suas casas, porque não têm outro lugar."
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Constroem onde têm os seus terrenos, e não onde seria mais seguro construir. "Mas se fôssemos só a construir onde há segurança, então não se poderia construir nada na Madeira", diz o empreiteiro. "Mas é claro que é preciso fazer as coisas bem feitas. E nós fazemos com todas as condições."
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Um colega do empreiteiro, que também já teve a sua própria empresa e agora trabalha para o primeiro, explica: "Todas as casas têm fundações, têm sapatas, que as fixam ao terreno. São todas seguras."
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Mas o que parece evidente é que é o próprio terreno que não é seguro. "Há sítios muito piores do que este, onde se fartaram de construir apartamentos", diz o empreiteiro, coberto de lama, à frente da casa de onde foi retirado o homem enrolado no cobertor.
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"Isto é um terreno seguro!", acrescenta ele, apontando para a encosta completamente revirada, coberta de lama negra, esfolada e marcada pelos buracos dos eucaliptos desentranhados.
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Aqui no sítio do Pico do Cardo de Dentro praticamente todos os habitantes se dedicam à indústria da construção. O seu negócio é fazer casas em locais improváveis.
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"Eu pensava sempre: como é que é possível, naquele lugar? Um dia vai haver uma desgraça", diz Bebiana, a olhar para a encosta em frente. O neto Tiago não diz nada, mas tem passado os dias a olhar para a encosta em frente. Mostra-se tranquilo e confiante, mas percebe-se-lhe no sorriso uma grande insegurança. Está ansioso por que recomecem as aulas, apesar de, para chegar à escola, ter de percorrer vários quilómetros a pé, e mais uns tantos de camioneta. Diz que quando for grande quer ser arquitecto.
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Antes de chegar a casa da D. Inês, passa-se pelo pátio da senhora Mena e da filha, mesmo por baixo do alpendre da D. Cecília, que morreu junto a esta pedra. Ainda se vê a marca do corpo, retirado pelos bombeiros. Cecília de Fátima da Câmara. O funeral foi segunda-feira, às 16h. E aqui, neste pátio onde a lama ainda está mole, é onde ficaram soterrados cinco dos sete filhos da D. Inês. "Sobreterrados", como dizem as pessoas deste "casal", como que para dar mais expressão ao peso da lama. Por milagre, todas as crianças se salvaram. As casas estão cravadas na encosta íngreme, em socalcos, ou nem isso. Estão penduradas, equilibradas, encaixadas umas nas outras e na terra, suspensas.
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A casa de cima é a maior e mais luxuosa. Dentro, tem escadarias de mármore. Nunca ninguém lá viveu. É do filho do compadre do Carlos, marido da D. Inês. Acabou de ser construída há menos de um ano, com o dinheiro que o proprietário vai ganhando na ilha de Jersey, e que ainda não chegou para a mobília. A casa está vazia. Por dentro, só mármores e esmaltes. O filho do compadre do Carlos precisa de trabalhar mais uns anos em Jersey, até ganhar o suficiente para mobilar a casa. Então poderá voltar. Eram esses os planos, disse aos vizinhos, antes da tempestade.
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Logo abaixo da sua casa fica a dos pais, que são compadres do Carlos e da D. Inês, cuja casa fica abaixo da daqueles. A encosta é tão íngreme que, vistas da estrada do outro lado da ribeira, as casas parecem estar umas em cima das outras, como um sinuoso arranha-céus.
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Está tudo coberto de lama, troncos de eucalipto atravessaram os telhados como lanças, enormes pedaços de terra desabaram ou estão prestes a transformar-se em avalanchas. Em baixo passa a ribeira, furiosa.
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A porta da casa da D. Inês está aberta. Ao entrar está-se na sala de estar, que não tem mais de dez metros quadrados. Quer dizer, o quarto. Quer dizer, a sala de jantar. O chão está coberto de colchões e de montanhas de roupa muito suja, numa desarrumação que se percebe anterior à tempestade e à lama. A família de nove pessoas dormia nesta divisão. Só há mais duas: uma cozinha e uma casa de banho, minúsculas. Com as derrocadas, a terra em que assentava descolou-se do ângulo posterior direito do edifício, deixando o chão da casa de banho pendente no vazio. As paredes apresentam rachas frescas. "Se este lado da casa cair, o resto não se aguenta", diz o namorado da Telma, de 16 anos, uma das filhas da D. Inês. Com as chuvas que estão previstas, isso pode acontecer hoje, ou amanhã.
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Há 16 anos que a família andava a pedir uma casa. No mês passado, uma assistente social fez-lhe uma visita. Veredicto: poderiam viver mais algum tempo na miséria e na promiscuidade. "Eles eram pobres, mas muito felizes", diz o namorado da Telma. "Podiam ser remediados, mas o que a gente se divertia!" Dava-se bem com o pai da namorada, por isso passava cá muito tempo. Com ele, a família eram dez. "Faziam churrascos aqui neste pátio, convidavam-me. Ríamo-nos durante a tarde inteira." É o pátio onde a máquina de lavar nova sobreviveu, porque Carlos lhe construiu uma protecção especial em cimento, e onde as crianças ficaram soterradas. A mais nova tem três anos.
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"Eu vi o que eles corriam, aos gritos, coitadinhos", diz Bebiana, uma das vizinhas do "casal" da encosta em frente, do outro lado da ribeira. Os dois aglomerados de casas constituem um "sítio", chamado Caminho do Moinho, pertencente à freguesia de Santo António, a poucos quilómetros do Funchal. As casas da margem direita foram destruídas pelas enxurradas, as da esquerda não sofreram nada. "Fiquei aflita, mas o que é que podia fazer? Pensei que iam morrer todos." Tiago, o neto de Bebiana, também viu, da varanda. "Houve uns rapazes daqui que tentaram ir lá salvá-los, mas ficaram com a lama até à cintura. Tiveram de voltar para trás."
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Tiago, que tem 12 anos, vive na última casa do "carreiro", mais perto da estrada e da ribeira. Bebiana Andrade, que tem 50, vive na casa a seguir, num socalco mais alto da encosta. Não é por acaso. O "carreiro" vai descendo em degraus, com as gerações. No cimo da encosta situa-se a casa dos avós de Bebiana. Logo abaixo desta, a dos pais. Depois vem a casa dela, e a seguir a da filha, com o respectivo marido e filhos.
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"Isto era tudo um terreno que o meu avô comprou, há 33 anos", explica Bebiana. "Ele construiu a sua casa lá em cima, e depois deu uma parcela do terreno ao filho, que também construiu uma casa." Foi aí que Bebiana viveu até se casar, aos 16 anos. Nessa altura, o avô ofereceu-lhe também um terreno, para construir. Ofereceu outro à irmã.
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O "carreiro" tem hoje seis casas, onde vivem 20 pessoas, todas da mesma família. As mais novas vivem mais abaixo, as mais velhas mais acima. Ao lado deste "carreiro" há mais quatro, com histórias idênticas. Todas as casas têm pequenos pátios e quintais com cães, galinhas e porcos, que estão agora sozinhos, pelo menos durante a noite. Não há ninguém, em todo o Caminho do Moinho, que esteja a dormir em casa. Passam aqui o dia, mas pernoitam em casa de familiares noutras zonas, ou no quartel do regimento de Guarnição 3, ou num dos outros abrigos disponibilizados pelas autoridades.
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Nenhuma das casas sofreu danos com o temporal da semana passada. Mas os habitantes têm medo. De quê? Da parede.
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Obras de risco e imaginação
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Bebiana aponta para o topo da encosta. Um muro, ainda com andaimes, está a ser construído num local sobranceiro a todos os "carreiros". "Dizem que eles tiveram autorização para construir uma parede de quatro metros, mas já vai em 12. É para segurar uma plataforma onde vão construir quatro casas. Toda a gente acha que aquilo vai cair em cima de nós", diz.
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Todas as casas do Caminho do Moinho foram construídas ilegalmente, sem qualquer fiscalização. "A câmara diz que não dá licenças, porque isto é Zona Verde", explica Bebiana. Por isso constrói-se sem licença. Ninguém proíbe ou fiscaliza. "O meu avô construiu a casa ele próprio, com a ajuda de amigos. E toda a gente faz o mesmo. Só os mais ricos contratam um empreiteiro."
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O local e a forma de construção são decididos pelos proprietários. Em alguns casos, são obras de risco e imaginação. Há casas em lugares impossíveis, onde nem se percebe como assentam as fundações, onde o terreno é íngreme, o espaço exíguo, o solo instável. "Há sítios em que é difícil acreditar que vão conseguir construir uma casa", diz Bebiana. "Muitas vezes penso: "Não era eu que dormia ali"", acrescenta ela, olhando para a encosta em frente. Mas a verdade é que se constrói em virtualmente todo o lado, e as casas lá iam resistindo, o que encorajava a arriscar ainda mais. Mas agora essa confiança irracional sofreu um abalo. O maior número de vítimas mortais da tempestade surgiu aqui, nas terras altas. Muitas das casas situadas ao lado de ribeiras, no trajecto de enxurradas, em terrenos instáveis, ficaram destruídas. E aquilo que surgia aos olhos das pessoas como uma paisagem normal parece-lhes agora altamente perigoso. A parede de 12 metros, por exemplo. Nem Bebiana nem nenhum dos vizinhos consegue agora dormir sob aquela ameaça. "Ninguém confia naquela parede. Se chover muito outra vez, ela vai cair-nos em cima."
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Proibido construir
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Seguindo a estrada alguns quilómetros para cima, chega-se a outra povoação, o Pico do Cardo de Dentro, onde a destruição foi ainda maior do que no Caminho do Moinho. É lá que tem o seu estaleiro um conhecido empreiteiro da zona.
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"Aquela parede está muito bem construída, não oferece perigo nenhum", garante ele. "Tem fundações na encosta, sapatas no terreno. É feita com betão que vem de fora, mais resistente do que o que temos cá. Aquilo nunca vai cair. Pelo contrário, se não existisse a parede, aqueles terrenos teriam provavelmente desabado."
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No sítio do Pico do Cardo de Dentro poucas casas ficaram inteiras. Das primeiras casas da rua quase não há vestígios, enterradas que ficaram no solo. De uma delas foi retirado quarta-feira o corpo de um homem de 28 anos, ainda enrolado no cobertor onde dormia. As casas seguintes rolaram pela encosta, até se desfazerem na ribeira que corre ao fundo, ou desapareceram, ou ficaram reduzidas a pedaços de parede, sem tecto. Uma das casas era nova e tinha três andares. O próprio estaleiro do empreiteiro foi derrubado pelo tronco de um eucalipto que caiu da encosta superior.
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"O problema disto são os eucaliptos", é a teoria dele. "Não foi a água que fez nada desta desgraça. Olhe para ali. Há eucaliptos de dez, de 20 toneladas. E com mais de 70 metros de comprimento. Vieram a voar por aí abaixo."
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Com efeito, o cenário da destruição está pejado de eucaliptos gigantes. Vêm com as raízes e são visíveis, nos terrenos sobranceiros, os buracos de onde foram arrancados. Quase todas as casas se situavam do lado de baixo da estrada. Para cima, há uma encosta íngreme, de onde veio a enxurrada. À passagem, arrancou os eucaliptos, que se abateram contra a povoação.
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"Se não houvesse eucaliptos, nada disto teria ficado destruído. Nestas zonas de construção, isto deveria ser tudo limpo de eucaliptos. O problema é que a Guarda Florestal não deixa. E os tipos da Quercus." É um facto que a zona estava toda construída, mas não é propriamente uma zona de construção. Aliás, teoricamente, é proibido construir aqui.
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"Se não se pode construir, então porque fizeram a estrada?", argumenta o empreiteiro, que quer manter o anonimato, com receio de que deixem de lhe dar trabalho. "O Alberto João está sempre a dizer: "Construam naquilo que é vosso.""
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As pessoas compraram terrenos nestas zonas, com autorização apenas para o cultivo agrícola. "Mas a agricultura aqui não dá nada", queixa-se o empreiteiro. "Eu tive ali uma horta. Mas quando tentava vender os produtos no mercado, havia sempre outros mais baratos, vindos do continente. É impossível viver disso. As pessoas constroem aqui as suas casas, porque não têm outro lugar."
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Constroem onde têm os seus terrenos, e não onde seria mais seguro construir. "Mas se fôssemos só a construir onde há segurança, então não se poderia construir nada na Madeira", diz o empreiteiro. "Mas é claro que é preciso fazer as coisas bem feitas. E nós fazemos com todas as condições."
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Um colega do empreiteiro, que também já teve a sua própria empresa e agora trabalha para o primeiro, explica: "Todas as casas têm fundações, têm sapatas, que as fixam ao terreno. São todas seguras."
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Mas o que parece evidente é que é o próprio terreno que não é seguro. "Há sítios muito piores do que este, onde se fartaram de construir apartamentos", diz o empreiteiro, coberto de lama, à frente da casa de onde foi retirado o homem enrolado no cobertor.
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"Isto é um terreno seguro!", acrescenta ele, apontando para a encosta completamente revirada, coberta de lama negra, esfolada e marcada pelos buracos dos eucaliptos desentranhados.
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Aqui no sítio do Pico do Cardo de Dentro praticamente todos os habitantes se dedicam à indústria da construção. O seu negócio é fazer casas em locais improváveis.
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"Eu pensava sempre: como é que é possível, naquele lugar? Um dia vai haver uma desgraça", diz Bebiana, a olhar para a encosta em frente. O neto Tiago não diz nada, mas tem passado os dias a olhar para a encosta em frente. Mostra-se tranquilo e confiante, mas percebe-se-lhe no sorriso uma grande insegurança. Está ansioso por que recomecem as aulas, apesar de, para chegar à escola, ter de percorrer vários quilómetros a pé, e mais uns tantos de camioneta. Diz que quando for grande quer ser arquitecto.
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Todos apontam o dedo acusatório às ribeiras, mas há outros culpados na tragédia da Madeira. Um deles: o desconhecimento da população urbana em como reduzir o risco dos maus humores da natureza
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Elas vêm lá de cima. A de Santa Luzia nasce nas franjas do Pico do Arieiro, a quase 1800 metros de altitude, e num piscar de olhos já está cá em baixo. As duas outras - a de João Gomes e a de São João - também correm da mesma maneira, ao longo de vales que começam a 1500, 1700 metros, para desaguar no oceano, junto à cidade, pouco mais de dez quilómetros adiante. O Tejo, por comparação, percorre mil quilómetros para vencer o mesmo desnível.
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.As imagens daquelas três ribeiras enfurecidas a rasgar a cidade do Funchal, com as águas turvas em jorros revoltos de inacreditável velocidade, talvez tenham sido as mais marcantes da catástrofe de há uma semana na ilha da Madeira. Não admira por isso que, na busca de um único responsável, o dedo da acusação lhes seja apontado.
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O desastre da Madeira, porém, foi muito mais complexo. A chuva excepcional que caiu no sábado passado mexeu com tudo. A água subjugou a ilha a um poder incontrolável. Desestabilizou os seus solos, entupiu os seus cursos de água e, sobretudo, surpreendeu a sua gente. "Apresentar como principal factor as ribeiras é redutor", afirma o geólogo Domingos Rodrigues, da Universidade da Madeira.
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Algumas pessoas morreram por terem sido arrastadas pela água. Outras foram apanhadas por fluxos de lama e detritos que escoaram directamente das encostas. Há vítimas que sucumbiram a aluimentos. Houve quem morresse dentro do seu automóvel.
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Domingos Rodrigues chama a atenção para a participação humana no resultado da tragédia. "Um factor decisivo foi o comportamento das pessoas", diz o especialista. Essencialmente, pouca gente que vive na cidade sabe o que fazer numa situação como aquela - se o melhor é ficar dentro do carro, ou dentro de casa, ou fugir para a rua. Domingos Rodrigues exaspera-se ao recordar as imagens de cidadãos a cruzarem correntes da água rasas mas fortes, sujeitos a que qualquer objecto sólido em grande velocidade - uma pedra, um tronco de árvore, um automóvel - os derrube e os mate.
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Uma educação específica para as situações de perigo ajudaria a reduzir a vulnerabilidade das populações, diz o geólogo. A isto somam-se outras medidas, como as que procuram minimizar a fúria das ribeiras, cujos efeitos devastadores pontuam a história recente do arquipélago. Há registos de cheias e aluviões pelo menos desde 1611. O pior episódio de que se tem memória são as cheias de 1803, que terão matado mais de mil pessoas.
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Foi na sequência desta catástrofe que se fizeram obras de fundo para ajudar a conter as ribeiras na cidade. Sucessivamente melhoradas ao longo do tempo, o que lá está hoje parece correcto a Rui Rodrigues, director dos serviços de monitorização dos recursos hídricos no Instituto da Água (Inag). "Do que tenho visto, acho que grande parte daquelas regularizações está bem feita", afirma, referindo-se aos canais que correm abertos, impermeabilizados no fundo de modo a evitar a erosão do leito.
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O encanamento por baixo das ruas, na parte final de algumas ribeiras, não é, porém, visto da mesma forma. A capacidade de vazão fica mais limitada e a possibilidade de entupimento com pedras e detritos aumenta - "Quando se fecha [uma ribeira], ocorrem milhões de problemas", resume Rui Rodrigues.
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Mas ali não estará senão uma pequena parte da culpa pelo que aconteceu. Os maiores problemas ocorrem antes, mais acima. As enxurradas da Madeira não trazem só água, mas arrastam consigo terra, pedras, troncos de árvores. Mesmo obras de engenharia hidráulica calculadas para suportar grandes cheias podem não ser suficientes quando o que corre pelos canais é um fluido de detritos. "A cheia líquida, isto a engenharia resolveria", afirma António Betâmio de Almeida, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "O problema é a carga sólida que é transportada.
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Onda de cheia
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Sendo difícil contê-la, o que se pode é evitar que seja agravada por outros factores, como o afunilamento nos canais ou a construção de pontes com pilares na água, que entulham facilmente, formando pequenas barragens. Quando essas acabam por ceder, liberta-se uma onda de cheia suplementar, capaz de surpreender fatalmente qualquer pessoa que julgue estar segura. "Isso é o que mata", afirma António Valério, coordenador do Projecto de Controlo de Cheias da Região de Lisboa, do Inag.
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Segundo Valério, não foi diferente o que aconteceu em outras cheias em Portugal. As de 1967, na região de Lisboa, fizeram cerca de 500 mortos. Outras voltaram a matar em 1981 (30 mortos), 1983 (19) e 1997 (11).
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Para controlar o risco de cheias súbitas, provocadas por muita chuva concentrada num curto espaço de tempo, várias obras têm sido feitas pelo projecto do Inag. A capacidade de vazão de algumas ribeiras foi aumentada, pontes foram substituídas e nalguns casos foram construídas bacias de amortecimento - pequenas estruturas para conter a água.
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Mas ainda há muito por fazer. O risco de novas cheias em Cascais - fortemente afectada em 1983 - mantém-se. Uma ribeira, a das Vinhas, corre encanada no seu troço final, com uma vazão de apenas 30 metros cúbicos de água por segundo.
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Em cada período de cem anos, é expectável que a ribeira receba um fluxo seis vezes superior. Só agora, quase três décadas depois, está a ser lançado um projecto de uma bacia de retenção, para reduzir parte do risco. "Já é o terceiro que fazemos", diz António Valério.
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Na Madeira, uma série detalhada de medidas para reduzir o risco de cheias foi identificada no seu Plano Regional de Água, concluído em 2003 mas aprovado só em 2008. Miguel Gamboa da Silva, especialista do Instituto Superior Técnico e responsável pelo capítulo das cheias no plano, diz que se deve "atacar o problema na cabeceira das linhas de água". Proibir o pastoreio nas terras altas e evitar que troncos de árvores sejam deixados no terreno quando se corta uma floresta de produção são exemplos de medidas que podem reduzir o transporte de sólidos para os cursos de água.
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O plano, na verdade, aponta para um conjunto muito mais vasto de medidas, desde a cabeceira até à foz das ribeiras, bem como em outras áreas.
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Estudos precisam-se
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Incluída está a sugestão de se realizarem estudos sobre as cheias na região, algo que alguns defendem que seja feito já para o episódio da semana passada. "Era útil avançar para o terreno", diz o especialistas em hidrologia Rodrigo Proença de Oliveira, que quando era estudante no Instituto Superior Técnico, em 1983, foi mobilizado, juntamente com meia centena de colegas, para recolher dados sobre as cheias de Cascais.
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Betâmio de Almeida concorda e também vê utilidade na formação de uma equipa interdisciplinar para avaliar o que se passou. Mas, à margem da compreensão detalhada das cheias - um elemento fundamental para planos de emergência -, Betâmio de Almeida também identifica no comportamento das pessoas um dos cernes do problema. "Estamos predispostos a achar que as cidades são cem por cento seguras", afirma. "Vivemos na sociedade do risco zero."
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Domingos Rodrigues, que tem percorrido a ilha todos os dias desde há uma semana para documentar o que ocorreu, diz que em algumas zonas mais afastadas, mesmo que varridas por grandes deslizamentos, não houve mortos. "Essas pessoas não são urbanas, conhecem os sítios onde vivem, sabem onde está o perigo", afirma.
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Segundo Rodrigues, as cheias mostraram mesmo isso: muitos dos mortos terão sido vítimas da incapacidade da sociedade urbana em avaliar o risco. "Essa para mim é a grande lição."
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O desastre da Madeira, porém, foi muito mais complexo. A chuva excepcional que caiu no sábado passado mexeu com tudo. A água subjugou a ilha a um poder incontrolável. Desestabilizou os seus solos, entupiu os seus cursos de água e, sobretudo, surpreendeu a sua gente. "Apresentar como principal factor as ribeiras é redutor", afirma o geólogo Domingos Rodrigues, da Universidade da Madeira.
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Algumas pessoas morreram por terem sido arrastadas pela água. Outras foram apanhadas por fluxos de lama e detritos que escoaram directamente das encostas. Há vítimas que sucumbiram a aluimentos. Houve quem morresse dentro do seu automóvel.
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Domingos Rodrigues chama a atenção para a participação humana no resultado da tragédia. "Um factor decisivo foi o comportamento das pessoas", diz o especialista. Essencialmente, pouca gente que vive na cidade sabe o que fazer numa situação como aquela - se o melhor é ficar dentro do carro, ou dentro de casa, ou fugir para a rua. Domingos Rodrigues exaspera-se ao recordar as imagens de cidadãos a cruzarem correntes da água rasas mas fortes, sujeitos a que qualquer objecto sólido em grande velocidade - uma pedra, um tronco de árvore, um automóvel - os derrube e os mate.
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Uma educação específica para as situações de perigo ajudaria a reduzir a vulnerabilidade das populações, diz o geólogo. A isto somam-se outras medidas, como as que procuram minimizar a fúria das ribeiras, cujos efeitos devastadores pontuam a história recente do arquipélago. Há registos de cheias e aluviões pelo menos desde 1611. O pior episódio de que se tem memória são as cheias de 1803, que terão matado mais de mil pessoas.
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Foi na sequência desta catástrofe que se fizeram obras de fundo para ajudar a conter as ribeiras na cidade. Sucessivamente melhoradas ao longo do tempo, o que lá está hoje parece correcto a Rui Rodrigues, director dos serviços de monitorização dos recursos hídricos no Instituto da Água (Inag). "Do que tenho visto, acho que grande parte daquelas regularizações está bem feita", afirma, referindo-se aos canais que correm abertos, impermeabilizados no fundo de modo a evitar a erosão do leito.
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O encanamento por baixo das ruas, na parte final de algumas ribeiras, não é, porém, visto da mesma forma. A capacidade de vazão fica mais limitada e a possibilidade de entupimento com pedras e detritos aumenta - "Quando se fecha [uma ribeira], ocorrem milhões de problemas", resume Rui Rodrigues.
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Mas ali não estará senão uma pequena parte da culpa pelo que aconteceu. Os maiores problemas ocorrem antes, mais acima. As enxurradas da Madeira não trazem só água, mas arrastam consigo terra, pedras, troncos de árvores. Mesmo obras de engenharia hidráulica calculadas para suportar grandes cheias podem não ser suficientes quando o que corre pelos canais é um fluido de detritos. "A cheia líquida, isto a engenharia resolveria", afirma António Betâmio de Almeida, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "O problema é a carga sólida que é transportada.
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Onda de cheia
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Sendo difícil contê-la, o que se pode é evitar que seja agravada por outros factores, como o afunilamento nos canais ou a construção de pontes com pilares na água, que entulham facilmente, formando pequenas barragens. Quando essas acabam por ceder, liberta-se uma onda de cheia suplementar, capaz de surpreender fatalmente qualquer pessoa que julgue estar segura. "Isso é o que mata", afirma António Valério, coordenador do Projecto de Controlo de Cheias da Região de Lisboa, do Inag.
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Segundo Valério, não foi diferente o que aconteceu em outras cheias em Portugal. As de 1967, na região de Lisboa, fizeram cerca de 500 mortos. Outras voltaram a matar em 1981 (30 mortos), 1983 (19) e 1997 (11).
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Para controlar o risco de cheias súbitas, provocadas por muita chuva concentrada num curto espaço de tempo, várias obras têm sido feitas pelo projecto do Inag. A capacidade de vazão de algumas ribeiras foi aumentada, pontes foram substituídas e nalguns casos foram construídas bacias de amortecimento - pequenas estruturas para conter a água.
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Mas ainda há muito por fazer. O risco de novas cheias em Cascais - fortemente afectada em 1983 - mantém-se. Uma ribeira, a das Vinhas, corre encanada no seu troço final, com uma vazão de apenas 30 metros cúbicos de água por segundo.
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Em cada período de cem anos, é expectável que a ribeira receba um fluxo seis vezes superior. Só agora, quase três décadas depois, está a ser lançado um projecto de uma bacia de retenção, para reduzir parte do risco. "Já é o terceiro que fazemos", diz António Valério.
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Na Madeira, uma série detalhada de medidas para reduzir o risco de cheias foi identificada no seu Plano Regional de Água, concluído em 2003 mas aprovado só em 2008. Miguel Gamboa da Silva, especialista do Instituto Superior Técnico e responsável pelo capítulo das cheias no plano, diz que se deve "atacar o problema na cabeceira das linhas de água". Proibir o pastoreio nas terras altas e evitar que troncos de árvores sejam deixados no terreno quando se corta uma floresta de produção são exemplos de medidas que podem reduzir o transporte de sólidos para os cursos de água.
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O plano, na verdade, aponta para um conjunto muito mais vasto de medidas, desde a cabeceira até à foz das ribeiras, bem como em outras áreas.
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Estudos precisam-se
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Incluída está a sugestão de se realizarem estudos sobre as cheias na região, algo que alguns defendem que seja feito já para o episódio da semana passada. "Era útil avançar para o terreno", diz o especialistas em hidrologia Rodrigo Proença de Oliveira, que quando era estudante no Instituto Superior Técnico, em 1983, foi mobilizado, juntamente com meia centena de colegas, para recolher dados sobre as cheias de Cascais.
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Betâmio de Almeida concorda e também vê utilidade na formação de uma equipa interdisciplinar para avaliar o que se passou. Mas, à margem da compreensão detalhada das cheias - um elemento fundamental para planos de emergência -, Betâmio de Almeida também identifica no comportamento das pessoas um dos cernes do problema. "Estamos predispostos a achar que as cidades são cem por cento seguras", afirma. "Vivemos na sociedade do risco zero."
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Domingos Rodrigues, que tem percorrido a ilha todos os dias desde há uma semana para documentar o que ocorreu, diz que em algumas zonas mais afastadas, mesmo que varridas por grandes deslizamentos, não houve mortos. "Essas pessoas não são urbanas, conhecem os sítios onde vivem, sabem onde está o perigo", afirma.
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Segundo Rodrigues, as cheias mostraram mesmo isso: muitos dos mortos terão sido vítimas da incapacidade da sociedade urbana em avaliar o risco. "Essa para mim é a grande lição."
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