20 DE MAIO DE 2009 - 17h59
Lênin, Stalin e a questão das nacionalidades
por Augusto Buonicore*
Stalin e Lenin em 1919
Dezenas e centenas de milhões de pessoas pertencentes aos povos asiáticos e africanos, que suportavam a opressão nacional na forma mais brutal e mais cruel, ficavam comumente fora do campo visual dos "socialistas". Não se atreviam a colocar no mesmo plano os brancos e os de pele escura, os negros "incultos" e os irlandeses "civilizados", os hindus "atrasados" e os polacos "ilustrados". Ainda que fosse necessário lutar pela emancipação das nacionalidades européias que não gozavam da plenitude dos seus direitos, não seria digno de um "socialista decente" (...) falar a sério da emancipação das colônias "indispensáveis" à "manutenção" da "civilização"."
A principal obra do marxismo-leninismo sobre a questão nacional foi, sem  dúvida, o ensaio "O Marxismo e o Problema Nacional", redigido por Stalin entre  1912 e 1913. Sobre esse trabalho pioneiro, Lênin afirmou: "Encontra-se agora  entre nós um magnífico georgiano, que escreveu um grande artigo (...), para cujo  fim reuniu todos os materiais austríacos e outros". Meses mais tarde, ainda  afirmaria: "na literatura doutrinária marxista, os fundamentos do programa  nacional da social-democracia já foram analisados ultimamente (aqui se destaca,  em primeiro lugar, o artigo de Stalin)". Essas duas citações comprovam que não  tem sentido a afirmação de Michael Löwy de que o artigo teria sido  "decepcionante aos olhos de Vladimir Ilitch". 
Mas, afinal, o que diz o festejado artigo? Stalin começa, justamente,  pela definição de nação. Ela não seria, como afirmavam alguns ideólogos de  direita, uma comunidade de raças. As nações reais se comporiam de elementos de  "tribos" e "raças" diferentes. "A atual nação italiana, afirmava ele, foi  formada por etruscos, romanos, germânicos, gregos e árabes etc. A nação francesa  foi constituída por gauleses, romanos, bretões, germânicos etc.". Ou seja, ao  contrário do que muitos possam pensar, não somente o brasileiro é um povo  etnicamente miscigenado. Esse é um fenômeno quase universal. Segundo a ciência  moderna, confirmando o marxismo, não existem povos puros nem mesmo  raças.
Para Stalin nação seria, antes de tudo, "uma comunidade estável,  historicamente formada, de idioma, de território, de vida econômica e de  psicologia manifestada na comunidade de cultura" e, conclui peremptório, "nenhum  desses traços distintos, tomado isoladamente, é suficiente para definir a nação  (...) basta que falte um só desses elementos para que a nação deixe de existir."  Esclarece, no entanto, que esses elementos se articulam de maneira diferente na  construção de cada nação particular.
Dentro dos critérios apresentados, os  judeus europeus no início do século 20 não formariam propriamente uma nação.  Eles, na sua grande maioria, já estavam integrados às nações na qual habitavam e  com as quais compartilhavam o território, a língua, a vida econômica e até mesmo  certa psicologia comuns. Um operário judeu francês pertenceria à nação francesa,  a mesma coisa o operário judeu britânico. Possivelmente assim pensava a grande  maioria dos judeus europeus antes do avanço da ideologia sionista.
Naquele momento Stalin e os bolcheviques polemizavam contra uma corrente  socialista denominada autro-marxista. Um dos seus principais expoentes, Oto  Bauer, havia escrito um livro muito influente: "A questão nacional e a  social-democracia" (1909). A mais importante obra socialista produzida sobre o  tema até então.
Para Bauer a nação seria "um conjunto de homens unidos numa comunidade de  caráter à base de uma comunidade de destinos". Essa definição fluída – com uma  forte tônica no elemento cultural – leva-o, por exemplo, a definir os judeus  espalhados por todo o mundo como povo-nação, pois estariam unificados numa mesma  comunidade de destino. Sobre esse ponto específico, contestou Stalin: "que  vínculos nacionais podem mediar, por exemplo, entre judeus georgianos,  daguestanos, russos e norte-americanos, completamente desligados uns dos outros,  que vivem em diferentes territórios e falam distintos idiomas?" e concluiu: "ao  identificar a nação com o caráter nacional, separa a nação do terreno que está  assentada e a converte numa espécie de força invisível, que se basta a si  mesma". Em outras palavras, Bauer escorregaria para posições fortemente  idealistas.
Diga-se a favor de Bauer que, em algumas passagens de seu livro, chegou  a reconhecer que o capitalismo estava incorporando os judeus às nações já  existentes e que o fato de não terem um território e um língua próprios havia  contribuído para esse processo de "desnacionalização". Assim, acabou, sem se dar  conta disso, aderindo às teses leninistas sobre a questão judaica. Um  parêntesis: estranhamente, seria o próprio Stalin uma das principais  personalidades a contribuir para a constituição de um Estado judeu na Palestina  em 1948, renegando frontalmente o que dizia em 1913.
Para os marxista-leninistas o Estado e a nação são fenômenos sociais  distintos. Existiram – e existem - inúmeras nações sem Estado e muitos Estados  que abarcam no seu interior várias nações. A indevida inclusão do Estado na  definição de nação pode justificar a exclusão dos povos de países dependentes e  colonizados e mesmo das minorias nacionais oprimidas. Por fim, os  marxista-leninistas definem nacionalidade como um atributo da (condição de  pertencer a uma) nação.  Ela não é um formalismo jurídico-político.  
Nação e movimento nacional
Para Stalin a nação seria uma categoria histórica da época da ascensão das sociedades burguesas modernas na Europa. No caso europeu ocidental, esse processo se deu concomitantemente com a formação dos Estados nacionais. Esse fenômeno se observou em Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Itália e Alemanha. É claro que houve exceções importantes como a Irlanda, nação submetida ao Estado Inglês, e a Polônia, nação submetida ao Estado Czarista.
O que foi uma exceção na Europa ocidental tornou-se quase uma regra no  restante do mundo. A tendência na Europa oriental, por exemplo, foi a formação  de Estados multinacionais como os Impérios Russo, Austro-Húngaro e Otomano. Isso  foi fruto da inexistência de uma revolução burguesa e dos entraves apresentados  ao desenvolvimento pleno do capitalismo. As nações submetidas, incorporadas  nesses estados multinacionais, chegaram tarde demais para o grande banquete  capitalista e colonial. 
Assim, escreveu Stalin, "enquanto no Ocidente da Europa nascem Estados  puramente nacionais, sem opressão nacional, no Oriente nascem Estados  multinacionais com uma nação desenvolvida, à frente, encontrando-se as demais  nações, menos desenvolvidas, em submissão política e mais tarde também econômica  em relação à nação dominante". Na época imperialista, mesmo o primeiro grupo de  países – capitalistas europeus desenvolvidos – "transpõe os limites do Estado  Nacional e estende o seu território a expensas dos vizinhos, próximos e  distantes", transformando-se em Estados multinacionais e coloniais. 
O fato dos irlandeses, bascos, húngaros, tchecos, polacos, croatas,  letões, lituanos, ucranianos, georgianos, armênios, curdos, albaneses etc. não  terem conseguido se constituir enquanto Estados nacionais não fazem deles nações  sem direitos históricos. Para o leninismo todos teriam o direito de lutar pela  autonomia nacional. Os povos das nações subjugadas tiveram consciência disso e  responderam aos opressores com poderosos movimentos nacionais libertadores no  século 20.
A direção da luta nacional nesta primeira etapa – se referindo à Europa  oriental e à Ásia pré-capitalistas – caberia a burguesia ascendente, que poderia  arrastar o jovem proletariado e os camponeses. A constatação de que a revolução  nacional deveria ser, na sua essência, burguesa não deveria conduzir à falsa  conclusão "que o proletariado não devia lutar contra a política de opressão das  nacionalidades. A restrição da liberdade de movimentos, a privação dos direitos  eleitorais, a perseguição ao idioma, a redução das escolas e outras medidas  repressivas afetariam os operários em grau não menor, ou maior talvez, que à  burguesia."
Ao defender a importância da luta pela independência nacional para o  proletariado, ele também alertou para um problema importante.  Contraditoriamente, essa política nacionalista podia "desviar a atenção de  extensas camadas da população dos problemas sociais, dos problemas da luta de  classes (...) para os problemas "comuns" ao proletariado e à burguesia. E isso  criaria um terreno favorável às prédicas mentirosas sobre a "harmonia de  interesses", ao mesmo tempo serviria para esconder os interesses de classe do  proletariado, para escravizar moralmente os operários". E concluiu: "Por isso,  precisamente, não podia o proletariado consciente colocar-se sob a bandeira  "nacional" da burguesia". 
Em outras palavras, a luta nacional não devia servir de véu para mascarar  inconciliável luta de classes que existe entre a burguesia e o proletariado.  Quando isso acontece, o nacionalismo – de instrumento importante de luta  antiimperialista – se torna um elemento de submissão ideológica do proletariado  à burguesia. Essas, portanto, são as duas faces do movimento nacionalista. 
Como vimos, e isso é central, a consequência lógica (e política) da  definição leninista de nação é a defesa intransigente do direito das nações – de  todas as nações, pequenas ou grandes - à autodeterminação. Autodeterminação não  apenas como a compreendiam os autro-marxistas, sinônimo de autodeterminação  cultural. Escreveu Lênin: "por autodeterminação das nações entendemos a sua  separação estatal das coletividades nacionais estrangeiras, a formação de um  Estado Nacional independente (...) seria errado entender por direito à  autodeterminação tudo que não seja o direito à existência estatal separada". Por  isso, o leninismo era estruturalmente avesso a todo e qualquer tipo de  chauvinismo nacional de fundo burguês e pequeno-burguês.
Embora a definição de nação stalinista esteja no fundamental correta,  ela contêm várias lacunas – algumas preenchidas posteriormente e outras não. A  primeira delas é a afirmação categórica que a nação se define pela existência,  ao mesmo tempo, dos elementos território, unidade econômica, língua, cultura  comuns. Sabemos, por exemplo, que quando houve a unificação da nação italiana  havia na península várias línguas. Isso aconteceu em muitos outros países. Ou  seja, Estado Nacional nasceu antes da unificação lingüística. A língua nacional  não foi um elemento a priori e sim uma construção posterior para dar maior  consistência a nação e ao Estado. 
  
Não foi sem razão - mas com certo exagero – que, após a unificação  italiana, uma dos participantes daquele movimento afirmou: "Nós fizemos a  Itália, agora temos que fazer os italianos". Essa frase adaptada poderia servir  para uma grande parte dos países, no sentido que o povo-nação plenamente  constituído foi fruto da revolução política burguesa e da homogeneização  construída pela ação dos Estados nacionais modernos. Mesmo na França e Alemanha  do final do século 18 apenas uma parte de população falava uma única e mesma  língua – a língua nacional adotada era apenas uma das possibilidades históricas.  
Outra imprecisão é a encarar a construção da nação apenas como uma  conseqüência lógica do desenvolvimento do capitalismo e que só a burguesia  poderia ser vanguarda desse processo. Isso tem sentido se pensarmos no "tempo  histórico" que o mundo começava a viver – o da ascensão e expansão do  capitalismo. Mas, quando pensamos nos casos concretos as coisas são bem  diferentes. Sabemos que muitos países iniciaram seu movimento nacional contra a  opressão colonial nos marcos de sociedades pré-capitalistas e tiveram na sua  direção elementos ainda feudais. Depois da revolução socialista de outubro de  1917, uma parte das revoluções nacional-libertadoras foi dirigida por correntes  comunistas, representando os operários e camponeses pobres. 
A maior crítica que atualmente se faz do conceito stalinista de nação é  quanto ao seu esquematismo e objetivismo.  Destaca-se nessa crítica Benedict  Anderson, que resgata Bauer ao definir as nações modernas enquanto comunidades  imaginárias e o historiador Eric Hobsbawn que as entende como criações culturais  e classistas. Contudo, foge aos objetivos desse breve artigo tratar das  contribuições originais desses autores marxistas contemporâneos. 
Michael Löwy afirmou que "uma nação não pode ser definida tendo apenas  como base critérios abstratos, externos e "objetivos". A dimensão subjetiva, ou  seja, a consciência de uma identidade nacional, a vitalidade da cultura  nacional, e existência de um político nacional, também são importantes". Isso é  correto, contudo a nação também não pode ser conseqüência da auto-definição de  uma comunidade dada. Por outro lado, esses aspectos subjetivos (elementos  psicológicos e culturais) também estavam presentes na definição de Stalin.
A formação da URSS
                                     
Logo após a revolução russa de fevereiro de 1917, os bolcheviques, conseqüentes com seu programa, afirmaram que "era preciso outorgar aos povos oprimidos, que faziam parte da Rússia, o direito de decidirem eles mesmos a questão de se desejam continuar dentro do Estado russo ou se querem sair dele e constituir-se em Estados independentes". Na questão do direito dos povos-nações à autodeterminação, os revolucionários russos operaram uma verdadeira revolução teórica e política no movimento socialista.
Lênin foi duramente criticado pelos direitistas chauvinistas e por  setores esquerdistas ditos internacionalistas de estar procurando, de um lado,  dividir a nação e, de outro, dividir os trabalhadores em interesses nacionais  mesquinhos. Retrucou irônico o líder bolchevique: "Acusar os partidários da  liberdade de autodeterminação, isto é, da liberdade de separação, de estimular o  separatismo é tão absurdo e hipócrita como acusar os partidários da liberdade do  divórcio de estimular a destruição dos laços familiares". Continuou ele: "Posso  reconhecer a uma nação o direito da separação, mas isso não significa que a  obrigue a separar-se. O povo tem o direito a separar-se, mas pode, segundo seja  a situação, não usar desse direito". 
Ele se voltou, principalmente, contra o chauvinismo, ideologia  tipicamente burguesa e que influenciava elementos de seu próprio partido: "O  real significado de classe da hostilidade liberal em relação aos princípios da  autodeterminação política das nações é um só: o nacional-liberalismo, a  salvaguardar os privilégios estatais da burguesia grã-russa". Os bolcheviques  deveriam evitar ceder "aos preconceitos nacionalistas" dos que reconheciam a sua  nação como "exemplar", a única com o privilégio histórico de se edificar  enquanto Estado nacional. Nisso residia o chauvinismo de todas as nações  opressoras, pequenas ou grandes.
Sabemos que mesmo nações dominadas pelo  imperialismo podem exercer opressão sobre as minorias nacionais que vivem sob o  seu próprio território. Recusam para elas o que reivindicam para si. Caso típico  é a opressão imposta às nações indígenas na América Latina.
Contudo, a  situação não seria tão fácil de ser resolvida no vasto império russo que se  desfazia aos golpes de uma profunda revolução popular e socialista. O direito à  separação deveria ser respeitado, mas a unidade das jovens repúblicas soviéticas  que se formavam a partir da dissolução do império russo se tornava uma  necessidade para própria sobrevivência delas. A destruição da República dos  Conselhos da Hungria (1919) representou um alerta para todos. Divididas numa  miríade de pequenos estados socialistas elas ficavam fragilizadas diante da  pressão política, econômica, ideológica e, principalmente, militar do  imperialismo unificado.
Escreveu Stalin, em 1921, nos estertores da guerra  civil e da ocupação estrangeira que quase pôs fim à experiência soviética: "A  existência isolada das diferentes Repúblicas Soviéticas é instável e insegura,  porque sua existência se encontra ameaçada pelos Estados capitalistas. Os  interesses comuns da defesa das Repúblicas Soviéticas (...) impõe a necessidade  da união estatal das diferentes Repúblicas Soviéticas como única via de salvação  diante da escravidão imperialista e da opressão nacional". 
Como resposta a essa situação nova, em dezembro de 1922, foi constituída  a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ela inicialmente incluiu quatro  repúblicas: a federação Russa, a federação trans-caucasiana e as repúblicas  socialistas da Ucrânia e Bielo-Rússia. A elas iriam se agregar várias outras  repúblicas ao longo das décadas que se seguiram. Essa foi uma grande obra de  engenharia estatal e social que, com altos e baixos, sobreviveu por cerca de  setenta anos. 
Lênin, no final da vida, definiria alguns aspectos da  política das nacionalidades de Stalin, especialmente no tratamento aos  georgianos, como chauvinista grão-russo. Para ele era preciso distinguir  claramente o nacionalismo das nações opressoras (a Rússia) e o nacionalismo das  nações oprimidas (a Geórgia). Fato que, às vezes, Stalin parecia não  compreender. O chauvinismo grão-russo, por razões militares, reapareceu com  força durante a 2ª Guerra Mundial. A dissolução da URSS no início da década de  1990 deve nos levar a refletir seriamente sobre as virtudes e vicissitudes  daquela experiência histórica.
Ver também os artigos:
O marxismo e a questão colonial e racial (1ª parte):
O marxismo e a questão colonial e racial (2ª parte):
Bibliografia:
Balakrishnan, Gopa – Um mapa da questão nacional, Ed. Contraponto, RJ, 1996
Cherstobitov, V. – URSS: Solução da questão nacional, Ed. Progresso, Moscou,  1987
Hobsbawn, Eric J. – Nações e nacionalismo desde 1780, Ed. Paz e Terra, RJ,  2002
Lênin, V.I. – Sobre o direito das nações à autodeterminação, Ed. Avante!,  Lisboa, 1978
Löwy, Michael – Nacionalismo e internacionalismo, Ed. Xamã, S.P.,  2000
Marx, K. - El colonialismo, Grijaldo, México, DF, 1970.
Pinsky, Jaime (org.) - Questão nacional e marxismo, Brasiliense, SP, 1980.
Stalin, J. – O marxismo e o problema nacional e colonial, Ed. Ciências Humanas, S.P., 1979.
*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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