A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

sábado, maio 16, 2009

Santidades


As palavras e os factos

Duas épocas e um paralelo.

Em Junho de 1360 nascia Nun'Álvares Pereira, filho de rei que era também prior e de mãe burguesa e camareira da corte. A Europa ardia na interminável «guerra dos cem anos», os povos morriam à fome e prosperavam os senhores da guerra. As sucessivas revoltas do «povo meúdo» impunham mão de ferro ao Poder. Os costumes degradavam-se. Os reis sonhavam com a unificação dos reinos europeus, tal como agora. Mas sobre eles prevalecia a autoridade incontestada do Papa.

Há poucos dias, em Viseu, perante uma assistência de oficiais generais das Forças Armadas e das Polícias, D. Januário Torgal Ferreira, bispo castrense, pregou uma homilia. Sem referir nomes em concreto, chamou «ladrões» aos grandes capitalistas, lembrou que a crise tinha raízes éticas e falou no Condestável como espelho de todas as virtudes e modelo de referência de uma sociedade que perdeu os seus valores. Porque Nun'Álvares praticara ao longo da sua vida todas as virtudes teologais: prudência, fé, caridade, justiça e temperança. «O Santo Nuno é capaz de vir na hora própria; faltam-nos modelos, faltam-nos referências, falta-nos a luz que vá à frente.»

A época de Nun'Álvares foi um longo desfiar de chacinas, guerras, razias e fossadas. Em 1373, com 13 anos de idade, é armado cavaleiro. Desde então combate permanentemente contra os castelhanos, participa nas constantes intrigas políticas e é nomeado comandante militar (fronteiro) do Alentejo. Feito Conde de Ourem herda toda a fabulosa fortuna do Andeiro. É nomeado Condestável do Reino. Ocupa dezenas de localidades e castelos fiéis a Castela e neles exerce o direito de saque feudal. Alcança a vitória de Aljubarrota e partilha com D. João I os despojos conquistados. Nun'Álvares, em Aljubarrota, tem 25 anos de idade. Detém a maior fortuna de Portugal reunida na guerra, no saque e nas doações da coroa e da Igreja. Morre em 1431.

A construção do mito

A primeira proposta de canonização do Condestável é muito antiga. Data de Março de 1674, parte do vigário-geral da Ordem dos Carmelitas e recolhe o poderoso apoio imediato do Congresso da Nobreza. Nesse documento invocam-se, como argumentos a favor da canonização, exactamente os mesmos de que Torgal Ferreira se socorreu quando se dirigiu aos oficiais-generais. Portugal só foi salvo quando a fé se aliou à força das armas. É esta a bússola que deve orientar os nossos passos. É pelo menos este o sentido que pode explicar o mistério do bispo castrense ter escolhido como tema central da homilia a corrupção da justiça em Portugal, o caótico estado da economia e a ética cristã como traço de união entre as virtudes teologais e o dever de agir, como na guerra. Os militares que tinham ido à missa comandam tropas e dirigem polícias que são agentes virtuais da repressão.

Muito do que se conhece acerca de Nun'Alvares Pereira foi descrito por Fernão Lopes, cronista dos séculos XIV e XV extremamente honesto e com raízes camponesas. No entanto morreu antes de completar a «Crónica de D. João I», sendo então substituído nas funções por Gomes Eanes de Zurara, de estirpe nobre e tradições guerreiras. É a partir de então que se começa a vulgarizar um perfil do Condestável que nada tem a ver com o homem que ele foi: nem Deus, nem o Diabo.

Antes terá sido alguém como muitos que se encontram a cada passo na história de todos os tempos: piedoso, inflexível e ambicioso. O mito foi buscar às arcas da história – sobretudo ao condestável francês Duguesclin, célebre pela sua ferocidade na guerra; e à «donzela de Orleães» que a Igreja queimou viva para depois a celebrizar – os traços de carácter que agora se atribuem a Nun'Alvares Pereira. Construiu-se o mito, venha então o altar.


A Igreja Católica joga forte nestas intrigas. Neste caso, constrói um homem que nunca existiu mas que convém invocar para melhor subjugar a opinião pública. Despojado, Nun'Álvares? Ele que foi senhor de Barcelos, Braga, Guimarães, Montalegre, Chaves, Ourém, Porto de Mós, Alter do Chão, Sousel, Borba, Vila Viçosa, Estremoz, Arraiolos, Montemor e Portel, Almada, Évora-Monte, Monsaraz, e de muitas outra terras mais... Refere Fernão Lopes: «tinha metade do reino em terras, rendas e outras dádivas». E o camarada Álvaro Cunhal, ao referir que só os rendimentos das doações feitas por D. João I, tinham sido avaliadas em 16 mil dobras cruzadas («As lutas de classes em Portugal») comentava: «Era mais bem pago do que o rei.»

Também importa recusar a afirmação de que Nun'Álvares, já próximo da morte, distribuiu a sua imensa fortuna aos pobres. Na verdade a quase totalidade dessa riqueza foi para a Casa de Bragança e para a Igreja. Foi escavar ainda mais o fosso entre pobres e ricos.

Ontem foi assim, tal como hoje continua a acontecer em Portugal.



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In AVANTE - 2009.05.14
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