Quinta-feira, 13.Mai.2010
Extracto da comunicação apresentada no Congresso «Guerra colonial e descolonização», Lisboa, 15 e 16 de Abril, Organização da Assoc. 25 de Abril, IHC da Univ. Nova de Lisboa e ISCTE.
Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz, que lidamos mal com a história, o que faz de nós uma sociedade distraída e de curta memória. Sobretudo para os episódios mais traumáticos, como aquele que Eduardo Lourenço chamou a ‘mais refinada e incomunicável das nossas tragédias actuais: a guerra colonial’.
O recalcamento é a resposta directa a esta incomunicabilidade, mas apresenta-se em graus e formas bem diversos, desde a pura negação da tragédia, até à dispersão do seu sentido mais fundo e real, em mil pequenos sentidos reconfiguradores dessa dura realidade.
Nesse contexto se produziu todo um complexo glossário feito de expressões oblíquas, enredadas de subtilezas, metáforas, ambiguidades, analogias, e até estranhos jogos de ironia e de sarcasmo que, impostas pela Censura no próprio decurso do conflito, persistem como precioso mas contraditório reservatório de experiências vividas e, como tal, marca identitária de sobrevivência individual e grupal. Veja-se, por exemplo, os regulares encontros de batalhões e companhias que cumprem um estranho ritual de ‘catarse em grupo’, escape para muitos silêncios, que só ‘quem lá esteve’ pode entender. O que significa que, no limite, não falamos da mesma coisa quando falamos de Guerra Colonial.
A começar pelo regime político que a impôs e que sempre se recusou a nomeá-la assim, mas antes Guerra do Ultramar. Para ele não havia guerra, mas uma revolta cruel, bárbara e ilegítima, a exigir uma resposta exemplar. Os militares, portanto, não iam para uma guerra, mas em ‘missão de soberania’, e combatiam não movimentos nacionalistas de libertação, mas bandidos desprezíveis ou terroristas.
Também no interior do universo militar surgiram hábeis e criativas operações semânticas para não chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo eram, por exemplo, maçaricos para Angola, os checa-checa para Moçambique e os piriquitos para a Guiné (‘piriquito é pior do que terrorista’, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os oficiais do Estado-Maior eram oficiais de alcatifaou ar condicionado, a metralhadora do inimigo era a costureirinha… e por aí fora… Guerra a sério, não havia, pois o significado, paradoxalmente, era deslocado do seu verdadeiro contexto, para zonas periféricas. Havia, assim, pequenas guerras: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas lojas e mesmo nos espaços de convívio públicos ou privados, onde o apelo à normalidade mais se fazia sentir. Aí sim, fazia-se a guerra, pequena, banalizada, e até parodiada.
‘As próprias mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de indiano e de chinês era uma guerra. Como vai aqui a sua guerra? – já tinha o noivo perguntado a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas, de mistura com galochas e canela.’ (Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, 1988:74)
Pequenas guerras, múltiplas razões. A razão do soldado de Quadrícula (tropafandanga ou tropa pacaça, segundo o glossário referido) não é a mesma das Tropas Especiais. A razão dos chefes militares (muitas vezes a guerra da cadeira ou do prestígio) não é a mesma dos colonos (cuja solução em muitos casos era uma operação de extermínio de todos os terroristas), nem sequer a do poder político e económico dominantes. A razão dos oficiais do Quadro não é a mesma dos Milicianos. E, de entre estes, a razão dos que, ideologicamente amorfos, iam à guerra para comprar o Mini, ou cumprir a rotineira guerra dos papéis, não era a mesma dos que iam por assumidas opções políticas de defesa da Pátria pluri-continental e da civilização ocidental (que os havia, e muitos, sobretudo na primeira fase do conflito) ou então por contrárias convicções de esquerda: lutar contra a guerra na guerra.
Hoje, verifica-se quão difícil tem sido a recuperação de um sentido de tragédia colectiva, assim desconstruído através dessas mil pequenas razões que irromperam na ausência de uma grande Razão.
Talvez resida aqui, neste défice de legitimidade política e moral da guerra, a principal causa dessa pulverização de sentidos que, no entanto, são a corrente subterrânea que alimenta as múltiplas memórias da guerra que circulam em romances, diários, ou simples escritos roubados ao silêncio de gavetas que nunca se conseguiram fechar, porque como escreveu Malaparte ‘a guerra não tem fim para aqueles que se bateram’.
A estes últimos a Internet tem servido de veículo privilegiado e a prová-lo a enorme quantidade de sites da responsabilidade de ex-combatentes para quem, independentemente das diferenças sociais, de sensibilidades ou ideologia, a experiência da guerra foi fundadora de uma segunda identidade nascida numa situação limite não somente de horror e sofrimento, mas também da mais pura solidariedade, inacessíveis aos que a não viveram.
Num desses sites, escrito por José Teixeira pode ler-se: Passaram 40 anos. Pensava eu que a Guiné fora uma etapa para esquecer e que a vida continuava. Como estava errado. A Guiné grudou-se em mim, vive comigo todos os dias e irá comigo para a cova. O meu espírito vagueia por aquelas tabancas, olha de frente aquela gente terna e meiga que me acolheu quando eu era agressor e me acolhe agora com terno carinho, sempre que vou até lá matar saudades.
Emoções, vivências, memórias contraditórias e até paradoxais, impossíveis de enquadrar na narrativa racionalizadora da história, o que faz dela, segundo Foucault, uma contra-memória.
Esses rastos e restos inscritos na memória mais fiel e íntima, como ‘corpo marcado pela história e história que devasta o corpo’ (ainda Foucault) perturbarão certamente a rigidez da narrativa histórica, pelo elemento de excesso, de ilimitado, de trágico (mesmo se negado ou mascarado) que desarruma e subverte as suas categorias e procedimentos metodológicos normais. Mas contribuirão decisivamente para instituir um elo precioso entre memória e história, abrindo uma reflexão sobre a memória trágica da guerra, que se torne por sua vez um imperativo ético-político para uma sociedade que defenda e promova o direito à memória.
UMA RESPOSTA PARA “DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE GUERRA COLONIAL?”
- Quinta-feira, 13.Mai.2010 at 09:05:17Um olhar perturbante de Manuela Cruzeiro sobre a guerra colonial (seria mais ou menos assim que um cronista literário começaria a sua crónica de domingo, referindo-se a este texto).Matéria esta – a guerra colonial – relativamente a que sou mais propenso a cultivar o silêncio do que a palavra; – assim começo eu. Mas o texto da Manuela convida-me, desta vez, a participar no “boneco” para o qual ela escreveu a legenda.“ um estranho ritual de catarse em grupo”. Tenho diferente opinião. Penso existir catarse quando se toma consciência do erro e se busca a purificação redentora. Não me parece ser o que se passa com as manifestações a que a Manuela se refere. Julgo antes tratar-se de manifestações que celebram, buscam razões para justificar e procuram sublimar.Guerra “pequena”, – essa. Aí estou de acordo. E algumas tentativas para lhe acrescentar dimensão épica, colocando-a em bicos-de-pés e comparando-a ao Vietnam – caso da Guiné – nunca passou de uma fanfarronice semelhante aquelas a que são dados pescadores e caçadores, quando, para aumentarem em tamanho os seus méritos, atribuem dimensão, no mínimo de lobo, ao pequeno coelhito que apanharam a dormitar na toca, e de tubarão aos dez centímetros de faneca que lhes tropeçou no anzol.Por alguns cenários – como foi por exemplo o caso de Angola – passaram muitos militares que nunca ouviram ou deram sequer um tiro. E não é sem uma indisfarçável mágoa que referem a sua experiência.Posto isto, parece-me mesmo que um dos aspectos mais traumáticos da guerra foi, paradoxalmente, esse: ter sido “pequena”. Excessivamente pequena, para explicar ou fundar nela processos posteriores, como por exemplo o próprio 25 de Abril. Que, fardado ou à civil, com este ou com outro formato, nesta ou noutra data, ocorreria sempre.E para concluir o meu comentário, aqui vai o meu contributo para o “boneco” que a Manuela tão bem descreveu. Aí pelos idos de 68 estava eu em Farim (Guiné), quando me coube ir reforçar (?) com o meu grupo de combate, a unidade estacionada em Cuntima (junto à fronteira com o Senegal), de que era comandante o então capitão Vasco Lourenço. Ao cair da noite, o grupo que se encontrava na caserna/abrigo, entretido no mais avançado exercício cultural que se cultivava – a “sueca”, intervalada com cerveja e whisk – ouviu as primeiras morteiradas da noite com normalidade maior do que aquela com se ouve o toque matutino do despertador, lembrando que são horas de levantar. Perante o sossego dos demais, perguntei, na minha inocência de recém-chegado:- “Então não se responde ao fogo do inimigo?”– “A gente já lá vai, foda-se! Eles não se vão embora já. E se forem, melhor!” – respondeu o Duarte (aquele mesmo que a Manuela refere na sua “entrevista” a Vasco Lourenço).- “Vamos primeiro acabar esta merda!” – anuíram os demais (incluindo eu, que continuei a bater os meus “duques” e “ternos” em cima do caixote de munições, transformado em mesa de casino, entremeados com os golos de whisk que iria pagar juntamente com o meu parceiro se perdesse a “ronda”).Entretanto, por falta de resposta do interlocutor, o IN também se calou. E pouparam-se desta feita umas quantas munições.Era assim a “tropa fandanga”. Aos ouvidos de quem a metralhadora ligeira do IN soava ao conforto doméstico do ruído produzido pela velha máquina de costura “Singer”, movida a pedal, com que lá longe a mãe arredondava as contas do mês, ou “virava” o colarinho gasto da camisa do marido, para durar mais um ano. Era a “costureirinha”.nelson anjos.http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2010/05/13/de-que-falamos-quando-falamos-de-guerra-colonial/#more-11666