Há uma voz que falta no debate sobre a guerra: a dos iraquianos. Ou melhor: ela não é digna de ser mencionada. E parece que ninguém se importa. Isso tem sentido na habitual presunção tácita de quase todos os discursos sobre política internacional: somos donos do mundo, o que importa, então, o que outros pensem?
Por Noam Chomsky, para a Agência Carta Maior
Não faz muito tempo, ainda se dava por descontado que a guerra do Iraque seria o tema central na campanha presidencial, como já foi nas eleições da metade do mandato, em 2006. Mas praticamente desapareceu, o que tem provocado uma certa perplexidade.
Não deveria ser assim. O "The Wall Street Journal" esteve perto de acertar em um artigo de primeira página sobre a Super Terça-feira, aquele dia de múltiplas primárias: "Os temas passam ao segundo plano na campanha de 2008 na medida em que os eleitores vão se focando na personalidade".
Para colocar a coisa de maneira mais específica, os temas deixam de estar em primeiro plano, enquanto os candidatos e suas agências de relações públicas se concentram na personalidade. Como de costume, os temas podem ser perigosos. A teoria democrata progressista sustenta que a população ("marginais ignorantes e intrometidos") deveria ser "espectadora" e não "partícipe" da ação, como escreveu Walter Lippmann.
Os partícipes estão conscientes de que ambos os partidos políticos estão bem à direita da população e de que a opinião pública é consistente através do tempo, assunto analisado no útil estudo "A falta de conexão da política exterior", de Benjamin Page e Marshall Bouton. É importante, então, que a atenção seja desviada para outro lado.
O trabalho concreto do mundo é do domínio de uma liderança iluminada. E isso revela-se mais na prática do que nas palavras. O Presidente Wilson, por exemplo, afirmou que se devia empoderar uma elite de cavalheiros de "altos ideais" para preservar a "estabilidade e a correção", essencialmente na perspectiva dos Pais Fundadores (dos Estados Unidos). Em anos mais recentes, esses cavalheiros transmutaram-se na "elite tecnocrática", "intelectuais de ação", os neocons "straussianos" de Bush II e outras configurações. Para esta vanguarda, as razoes de que o Iraque seja retirado da tela do radar não deveriam ser obscuras.
Foram convincentemente explicadas pelo distinguido historiador Arthur M. Schlesinger, articulando a posição dos "pombas" há 40 anos, quando a invasão do Vietnã pelos Estados Unidos estava em seu quarto ano e Washington se preparava para somar outros 100 mil efetivos militares aos 175 mil que já estavam deixando o Vietnã do Sul em cacos. Na época, a invasão implicava em árduos custos, razão pela qual Schlesinger e outros liberais da linha de Kennedy resistiam-se a passar de falcões a pombas.
Em 1966, Schlesinger escreveu que "todos oramos" porque os falcões tenham razão ao pensar que o aumento militar do momento poderá "eliminar a resistência" e, se fizer isso, "todos poderíamos estar saudando a sabedoria e a capacidade estadista do Governo" ao obter a vitória, deixando ao mesmo tempo o "trágico país destruído e devastado pelos bombardeios, arrasado pelo napalm, transformado em uma terra baldia pela defoliação química, uma terra em ruínas", com seu "tecido político e institucional" pulverizado. Mas a escalada provavelmente não terá êxito e vai acabar sendo cara demais para nós; ou seja, que talvez seria necessário repensar a estratégia. Na medida em que os custos começaram a subir severamente, logo ocorreu que todos tinham sido "ferrenhos opositores à guerra".
O raciocínio da elite e as atitudes que o acompanham apresentam hoje poucas mudanças. E apesar de que as críticas à guerra do Iraque são muito maiores e estão mais estendidas que no caso do Vietnã em qualquer etapa comparável, os princípios que Schlesinger articulou continuam vigentes. E ele mesmo adotou uma posição muito diferente perante a invasão do Iraque. Quando as bombas começaram a cair sobre Bagdá escreveu que as políticas de Bush são "alarmantemente similares à política que o Japão imperial aplicou em Pearl Harbor, em uma data que, como disse um Presidente americano anterior, vai perdurar na infâmia.
"Franklin D. Roosevelt tinha razão, mas hoje somos nós que vivemos na infâmia". Que o Iraque é "uma terra em ruínas" não é questionável. Recentemente a agência britânica Oxford Research Business atualizou sua estimativa de mortes adicionais causadas pela guerra em 1,03 milhões, excluindo Karbala e Anbar, duas das piores regiões. Seja correta essa estimativa, ou exagerada, segundo alguns, não há dúvida de que o balanço é horrendo. Vários milhões de pessoas estão deslocadas internamente.
Graças à generosidade da Jordânia e da Síria, os milhões de refugiados que fogem do colapso do Iraque, incluindo a maioria profissional, não foram, simplesmente, exterminados. Mas essa acolhida fica enfraquecida porque a Jordânia e a Síria não recebem nenhum apoio significativo de parte dos autores dos crimes em Washington e Londres; a idéia de que eles possam admitir essas vítimas, para além de casos pontuais, é estapafúrdia demais para ser considerada. A guerra sectária devastou o Iraque. Bagdá e outras áreas foram submetidas a uma limpeza étnica brutal e deixadas em mãos de senhores da guerra e de milícias, a primeira cartada da atual estratégia de contra-insurgência desenvolvida pelo general Petraeus.
Um dos mais informados jornalistas que se aprofundaram na chocante tragédia, Nir Rosen, publicou recentemente um epitáfio, "A morte do Iraque", em "Current History". Escreve Rosen: "O Iraque foi assassinado, para nunca mais se levantar. A ocupação americana tem sido mais desastrosa que a dos mongóis, que saquearam Bagdá no século 13", percepção comum dos iraquianos. "Somente os tolos falam agora em 'soluções'. Não há solução. A única esperança é que, talvez, o dano possa ser limitado".
Independiente da catástrofe, o Iraque continua sendo um tema marginal na campanha presidencial. Isso é natural, dado o espectro falcão-pomba da opinião elitista. As pombas liberais aderem ao seu raciocínio e atitudes tradicionais, rezando para que os falcões estejam com a razão, que os EUA obtenham uma vitória e imponham "estabilidade", palavra código para subordinação à vontade de Washington.
Os falcões são alentados e as pombas silenciadas com relatórios entusiastas sobre menores baixas após o aumento de tropas. Em dezembro, o Pentágono difundiu "boas notícias" sobre o Iraque: um estudo mostrava que os iraquianos têm "opiniões divididas", com o que a reconciliação deveria ser possível. As opiniões eram duas. Primeiro, que a invasão dos EUA é a causa da violência sectária que deixou o Iraque aos pedaços. Segundo, que os invasores deveriam se retirar.
Umas poucas semanas depois do relatório do Pentágono, o especialista militar no Iraque do The New York Times, Michael R. Gordon, escreveu uma análise arrazoada sobre as opções referentes ao Iraque que enfrentam os candidatos presidenciais. Há uma voz que falta no debate: a dos iraquianos. Ou melhor: ela não é digna de ser mencionada.
E parece que ninguém se importa. Isso tem sentido na habitual presunção tácita de quase todos os discursos sobre política internacional: somos donos do mundo, o que importa, então, o que outros pensem? São "não-pessoas", pegando de empréstimo o termo usado pelo historiador britânico Mark Curtis em seu trabalho sobre os crimes imperiais do Reino Unido. Por rotina, os americanos unem-se aos iraquianos em ser não-pessoas. Suas preferências também não oferecem opções.
O original encontra-se em IAR Notícias/The New York Times Syndicate
Título do Vermelho 14 DE MARÇO DE 2008 - 12h21
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