A Internacional

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quarta-feira, junho 02, 2010

Viagem à pobreza que explodiu como uma tempestade

Lanche para crianças necessitadas (leite com chocolate, pão com manteiga, fruta nem sempre) na associação Amigos da Costa Joao Gaspa
Costa da Caparica Há crianças que à segunda-feira chegam à creche com a mesma fralda que tinham na sexta. O número de famílias que pede ajuda à Igreja, classe média incluída, duplicou. Pede-se comida até no Facebook. As praias e o Verão não escondem a indignação do padre. Por Ana Henriques

Da sua mais recente casa Rosalina de Matos vê o prédio onde morou até Janeiro. "Como fazemos para nos lavarmos? Aqui também conseguimos andar limpos." São 58 anos de vida que a cara a atirar para o sardento não revela, 58 anos sem sinais de aflição perante estas torneiras de que nada brota. Nas Terras, uns pedaços de terreno baldio à beira da via rápida à entrada da Costa da Caparica, a água para a higiene e para cozinhar está no chafariz mais próximo.

Chega-se às barracas plantadas entre as ervas por um caminho de terra batida semeado de sacos com lixo. "Ai tanto que eu gostava de trabalhar..." No último biscate que Rosalina arranjou, ia sendo derrotada pelo cansaço: "Fui lavar as escadas de um prédio, eram dez andares e estava a ver que não conseguia. Eu, que dantes arrastava móveis... " No final entregaram-lhe uma nota de dez e outra de cinco.

Como porteira tinha casa de graça, mas não ordenado, e a reforma tarda em chegar. "Um dia destes fui à Igreja pedir uma coisinha para comer, mas disseram-me que como não estou no rendimento mínimo não tenho direito. Respondi que para ser acompanhante ainda não estou preparada."

Governado pelo padre António Luís Pires, o centro paroquial de Nossa Senhora da Conceição não tem mãos a medir. Peditórios, distribuição de comida vinda do Banco Alimentar contra a Fome e da boa vontade dos paroquianos, de roupa, encaminhamento dos beneficiários do rendimento social de inserção... "Faz um trabalho excepcional", avalia o vereador da Acção Social da Câmara de Almada, António Matos, numa opinião partilhada por todos quantos conhecem a actividade desta instituição.

O padre está indignado com a situação que lhe caiu nas mãos. Na passada semana resolveu dar conta dela ao resto do país, da "pobreza explosiva" que se vive lado a lado com o sol e com as alegrias dos meses de Verão, com as vivendas e os prédios a reluzir de novos. A miséria já não se restringe às suas habituais vítimas, os pescadores e respectivas famílias. António Luís Pires diz que se vive um momento sem precedentes, um retrocesso que está a atirar para a pobreza os filhos da classe média.

Mil famílias afundam-se

O centro paroquial presta neste momento assistência a mil famílias, quando há um ano acolhia pouco mais de 500. E a grande comunidade brasileira que habita na Costa - e que, aliás, está a aproveitar as fortes perspectivas de crescimento económico do Brasil para regressar ao seu país - nem sequer é a mais afectada. "As situações dos imigrantes não são as piores: a ilegalidade defendeu-os muitas vezes, porque lhes impediu o acesso ao crédito fácil", conta António Luís Pires.

Quando viu a vivenda, o televisor sofisticado, a carrinha cara e ouviu o pedido de ajuda para comer da família que ali morava, a assistente social Joana Esteves não acreditou: "No início pensei que estavam a brincar connosco." Mais tarde viu entrar porta adentro vizinhos e gente amiga que nunca pensou que vivesse numa situação de necessidade e habituou-se. Até a quem vai buscar as latas de conserva, o arroz e a massa ao centro paroquial de Mercedes. "Entram de cabeça erguida e só a baixam quando se sentam à minha frente. "Se alguém perguntar o que vim cá fazer, diga que vim tratar de um lar para um idoso.""

"Estamos a tentar tapar o buraco da fome. Mas não se consegue, porque todos os dias aparecem novas famílias", confirma o presidente da junta de freguesia, António Neves. Será pior que no resto do país? Provavelmente não, admitem quer o padre, quer o autarca. "A mendicidade provocada pelo desemprego e pelo endividamento atingiu a classe média", prossegue este último. "Conheço gente que ainda tem emprego, mas que a miséria dos 400 euros que ganha por mês não lhe chega para comer." A junta de freguesia também ajuda os mais necessitados. António Neves chega a recorrer ao Facebook não para brincar aos agricultores no Farmville, mas para conseguir que lhe arranjem alimentos reais.

De repente, o padre António Luís Pires endurece a sua voz de locutor de rádio, as palavras transformam-se quase numa ameaça: "Se porventura o centro paroquial deixar de ter capacidade de ajuda alimentar, em circunstância nenhuma haverá crianças ou adultos a pedir de porta em porta na Caparica. Se for necessário, irei eu pedir de porta em porta." Responsabilidades? "Esta gente está desempregada por desnorte dos indivíduos que estão à frente da coisa pública, que sairão impunes depois de lançarem milhares de famílias no ciclo de pobreza." O presidente da junta mostra-se igualmente revoltado: "Não acredito no país em que estou a viver. Quinze euros por lavar dez andares de escadas?! Alguém está a fazer pouco das pessoas." Depois o homenzarrão que está à frente da junta cala-se por longos minutos, para as lágrimas não lhe saltarem: "E às vezes sou eu que dou, da minha própria algibeira - arroz, massas, cereais, alguma carne..."

Enlatados em alta

À porta do Minipreço, Sara Alves sente que a sua vida está a entrar numa espiral descendente. Acabou de receber uma carta a exigir-lhe a devolução dos 189 euros que recebeu de rendimento social de inserção por conta do marido, entretanto falecido. À espera de uma pensão de invalidez vai para cinco meses, por causa da doença crónica de que sofre, deram-lhe duas semanas para acertar contas com o Estado - senão, fica em causa o seu próprio RSI. "Não sei como vou pagar a renda, a água, a luz..." Que o gás, esse já acabou. Cozinha como pode para si e para os dois filhos menores numa chapa ligada à corrente. A sopa demora mais de uma hora a fazer, os banhos são com panelas aquecidas. "À porca", reconhece.

Antes da doença trabalhava ao balcão de uma pastelaria. Como parou de estudar cedo de mais, mesmo que a saúde lhe permitisse ter um emprego normal, não seria fácil arranjá-lo. Ao centro paroquial costumavam chegar semanalmente algumas dezenas de ofertas de trabalho, mas esta semana só houve cinco pedidos, a maioria dos quais para ajudantes de lar - uma função que, por implicar trabalho por turnos, afasta muitas mães.

Por um T1 no centro da Costa, Sara Alves paga 400 euros mensais. Um luxo, numa altura em que há apartamentos deste tamanho aqui à venda por uns meros 70 mil euros? É o efeito da crise, explica João Sousa, da agência imobiliária Square: quem teve de pôr à venda a casa que estava a comprar ao banco ou voltou a morar com os pais, ou alugou apartamento. "Como passou a existir mais procura do que oferta de alugueres, os preços subiram." João Sousa diz que neste momento há situações dramáticas de casais que contraíram empréstimos superiores ao actual valor das habitações. Com 900 imóveis para venda, a loja atingiu o pico de angariações e tem recusado muitas mais.

"Conheço bastantes casos de pessoas que perderam tudo. Existe neste momento uma situação diabólica de desemprego", observa o vendedor. Às vezes vale o auxílio da família, dos amigos, até dos meros conhecidos. "Uma vizinha dá-me um pacote de arroz, outra um de açúcar...", descreve Sara Alves. "De há um ano para cá o consumo de carne de vaca quase desapareceu", regista o responsável pelo Minipreço do centro da Costa, Paulo Garcia. Em contrapartida, a venda das latas de atum e salsichas quase duplicou, o mesmo tendo acontecido com as massas. Outra coisa que mudou foi o aspecto de quem frequenta este supermercado habitualmente associado às classes baixas: "Passámos a ser procurados por clientes que aparentam ter poder de compra."

Sem dinheiro para a creche

As estatísticas da Escola Básica 2,3 também não mentem: 60 por cento dos alunos são carenciados. E agora, que fazer? "Penso que devia ser criada uma bolsa de apoio alimentar para a Costa da Caparica", atira o presidente da junta. À frente da Fundação Arcelina Victor Santos, uma instituição de solidariedade social da Costa, Francisco Valadas só pede ao Estado que não corte os apoios às organizações que dão de comer a quem dele precisa. "Quem já passou fome, como eu, conhece os olhos da fome nos outros", diz o ex-emigrante. Mais de um terço dos pais das crianças que frequentam o berçário e a creche têm mensalidades em atraso. "Há catraios que à segunda-feira aparecem com a mesma fralda com que daqui saíram à sexta", relata Francisco Valadas.

Ana Marques perdeu a conta às casas em que já habitou com o marido e os filhos. Aos 51 anos ninguém lhe dá trabalho - apesar de dotada para os trabalhos artesanais, como comprovam os tapetes de Arraiolos, caixas de madeira pintadas e colares da sua autoria. O dinheiro é que nem sempre chega para a renda, e nessa altura é ocasião de pôr os sacos outra vez às costas e mudar de poiso.

À entrada de casa está o saco que trouxe do centro paroquial: iogurtes, salsichas, pêras, maçãs... Quando os filhos se empregaram, perdeu direito ao apoio do Estado. O marido não arranca do táxi que guia um salário mínimo. "São os filhos que têm de me sustentar. Imagine o que é ter de lhes pedir dinheiro para um par de cuecas." Para Ana, como para muita gente criada na Costa, o grande afluxo de gentes do Brasil ajudou a rebentar com a economia de uma terra que sempre foi pobre. Na verdade, o eldorado acabou: nos tempos negros que se vivem na terra, há brasileiros a trabalhar na construção civil por 3,5 euros por hora.

No autocarro que segue para a Trafaria há um gemido que se sobrepõe à barulheira do motor. De gemido passa a soluços cada vez mais altos. Há uma mulher com fita azul na cabeça aos gritos: "Em cinco minutos fui despedida." Quando o veículo passa pelo mercado do Monte da Caparica, nas paredes do qual alguém escreveu "Se o voto mudasse algo, era proibido", já ela sossegou o choro. "Ninguém está seguro", conclui um psicólogo do centro paroquial, Carlos Spencer. "Desemprego? Pode acontecer-nos a todos", concorda um técnico de emergência médica de 56 anos à saída do Minipreço. No autocarro os passageiros fingem que não ouviram os soluços. Nem os gritos.
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Comentários 1 a 9 de 9

  1. ze0000 . 01.06.2010 23:12
    Via PÚBLICO

    Antes de criticar

    Leiam o texto de Pedro Hespanha "Individualização, fragmentação e risco social nas sociedades globalizadas". Basta por no google e ele aparece. Depois falamos!
  2. Inácio Lisboa , Laranjeiro Almada. 01.06.2010 19:05

    Desperdicio

    O Dinheiro que a Câmara de Almada gastou em foguetes a festejar 0 25 de Abril e o final de Ano em cacilhas, dava para por essa gente a trabalhar e a ganhar dinheiro durante meio ano. Pode-se festejar mas não a esbanjar o dinheiro que é dos outros e que faz falta para pão.
  3. Branquinho , Asia Pacífico. 01.06.2010 18:10

    Pobreza

    A pobreza e a ignorancia são o ópio dos governantes, são o rastilho das guerras, são o poder da massa informe e sem cabeça que devido à falta de conhecimento deposita num Rasputine (Sócrates em Portugal) toda a responsabilidade de uma incapacidade genética para corrigir defeitos que "dão trabalho", moem, mexem com interesses, "o tempo vai resolver" , etc...não há no nosso país uma verdadeira democracia inteligente, honesta e sem "agenda pessoal", já lá vai o tempo do Viriato e Sertório que tentaram resolver pelo seu carisma e grande visão estratégica um problema que sempre esteve nos lusitanos (a falta de honestidade e de fidelidade a causas nacionais). Foi sempre possível vencer os invasores, mas nunca se conseguiu por ordem na casa!!
    • Rui , Germany. 01.06.2010

      RE: Pobreza

      Enfim....sensacionalismo barato dos jornalistas e dos comentários. Em vez de explorar, comentar ou queixarmo-nos...que tal ler livros e preparar o futuro? Não..... é mais fácil e sabe-nos bem aprofundar a razão e os porquês da desgraça alheia. Deixa-nos mais optimistas ?. Ai Portugal...O que é que estás á espera !!!
  4. Julio Silva , Londres, UK. 01.06.2010 17:59

    confucio

    Já dizia um antigo ditado atribuido a Confucio, (não há provas sequer que tenha existido este homem) sábio chines, "Não dês um peixe ao homem, mas sim ensina-o a pescar". O Estado Portugues através da politica de esquerda fascista do destruir a iniciativa privada e dar subsídios iniciada pelo Guterres produzio a massa votante, inculta que constituí os 35% dos portugueses com mais de 18 anos de idade que votam sempre PS (0,1% destes são amigos, enteados, presidentes de junta, politicos profissionais que vivem à custa de todos os outros). Assim, a situação actual dos 10,8 % de desemprego declarado vai crescer ainda mais. Nestes valores não entram os emigrantes que são às centenas por dia, não contando para as estatísticas do desemprego. Em Portugal o sonho é ainda ser empregado do Estado e receber depois uma boa reforma..quem vai pagar isto????
  5. Alexz , Aua. 01.06.2010 16:01

    A igreja

    A igreja vive feliz na miséria! Apoia os politicos que levaram o país a esta situação, sempre esteve do lado dos mais poderosos e agora vem oferecer a sua migalha. A solução não é remendar, a solução é mudar as politicas e os governantes. Este bloco central já deu o que tinha a dar: miséria e obscurantismo.
  6. abilio , País falido mas com casamento homo!. 01.06.2010 15:15

    Obrigado PS...

    ... como dizem os socialistas, não vale de nada ser um catastrofista...
  7. Anónimo , Lisboa. 01.06.2010 14:18

    Coitadinhos...

    "Até a quem vai buscar as latas de conserva, o arroz e a massa ao centro paroquial de Mercedes." Não há nada que vos chame a atenção nesta frase? Além do erro ortográfico claro está. Depois de ler isto é suposto ter pena destas pessoas? A cultura de endividamento além das possibilidades infelizmente tornou-se normal, e em vez de termos pena destas pessoas coitadinhas que preferem ter um Mercedes na garagem a ter um estilo de vida sustentável, devíamos sensibilizar a população para o que representa realmente o crédito.
  8. Cátia , Lisboa. 01.06.2010 11:22

    Pobreza2

    E quem pode acabar com o ciclo de mau endividamento do Estado e reconduzir o dinheiro público para o que é mais necessário (desenvolvimento económico, redução da pobreza, melhoria da educação e do sistema de saúde....)? A sociedade tem de deixar de olhas apenas para o seu umbigo e começar a pensar e reagir como um todo. Só assim se podem vergar os políticos às necessidades sociais. As greves por melhoria de ordenados superiores ao mínimo nesta altura de dificuldades e aumento da pobreza, sobretudo em famílais com crianças, são imorais e de um individualismo extremista.
  9. Cátia , Lisboa. 01.06.2010 11:19

    Pobreza

    Os relatos da pobreza são sempre arrepiantes. Mais ainda quando num país em que a classe média tinha subido substancialmente a a pobreza sido reduzida ao mínimo. A situação está a inverter-se por todo o país. Um artigo do Público que li há umas semanas explica como é que isso aconteceu. Uma grande evolução económica repentina aliada a uma fraca evolução social e uma educação fraca tiveram consequências muito más. E estas associações que dão apoio alimentar, alguma roupa e por vezes, algum apoio à saúde, não têm meios para acabar com estes problemas, apenas os podem aligeirar, permitindo que estas pessoas tenham o mínimo necessário à sobrevivência. Actualmente apenas o Estado tem capacidade para parar o ciclo que se iniciou recentemente, é urgente que o faça. Sob pena de as crianças e jovens que vivem na pobreza juntamente com as suas famílias virem a tornar-se adultos pobres e marginais. Mas os anos de sobreendividamento também se fizeram sentir nas contas do Estado, está como muitas famílias, à beira da pobreza. E quem pode acabar com o ciclo de mau endividamento do Estado e reconduzir o dinheiro público para o que é mais necessário (desenvolvimento económico, redução da pobreza, ...
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