Apresentado na Conferência «The transition to democracy in Spain, Portugal and Greece : Thirty years after», organizada pela Konstantinos G. Karamanlis Foundation, Grécia, 22|Maio|2005 | |
A teoria da transição dos regimes políticos começou por ser uma teoria da democratização, inseparável da deposição sucessiva dos regimes autoritários na Grécia, em Portugal e na Espanha, durante os anos setenta.
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Essa viragem surpreendeu e dividiu os analistas políticos, nomeadamente os especialistas dos autoritarismos ibero-americanos, incluindo os regimes autoritários de Portugal e da Espanha, formados antes da II Guerra mundial | Schmitter (1973), Wiarda (1977) |. As mudanças de regime reclamavam uma reflexão sobre as razões profundas que tinham tornado possível ultrapassar o paradigma patrimonialista, reproduzido por uma cultura politica autoritária católica, onde a resistência arcaica à modernização capitalista se completava com a rejeição tradicional do liberalismo político. Nesse contexto, as primeiras teorias da transição, que estudam, primeiro, os três países da Europa do Sul - por vezes também a transição post-fascista na Itália - e, mais tarde, um número crescente de casos latino-americanos, concentram-se, no essencial, na análise das dimensões internas da mudança : as transições resultam de processos endógenos, os factores exógenos são secundários | O'Donnell, Schmitter, Whitehead (1986) |. De certa maneira, é preciso esperar pela revolução de 1989 e pelas transições post-comunistas na Europa de Leste, onde a importância decisiva da dimensão internacional é demasiado óbvia, para rever e alargar o quadro das modernas teorias da transição.
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Laurence Whithead foi pioneiro dos estudos sobre a dimensão internacional das transições politicas | Whithead (1986) | e continua a ser a principal referência nesse domínio, não obstante a importância das contribuições de Geoffrey Pridham e de Philippe Schmitter | Pridham (1991), Schmitter (2001) |. O seu modelo | Whitehead (2001) | assenta em três categorias de factores - o contágio, o controlo e o consentimento. O primeiro refere-se às vagas de democratização, que se seguiram às guerras hegemónicas do século XX; o segundo aos processos de descolonização comandados pelas potências coloniais, em que foi possível assegurar a reprodução do modelo politico e institucional da antiga metrópole; o terceiro inclui a contiguidade e os limites territoriais das democratizações sucessivas, além de sublinhar a importância das estruturas internacionais na produção do consentimento, bem como a relevância dos efeitos internacionais de demonstração para estimular uma transição democrática.
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Essas categorias não são mutuamente exclusivas e quase todas são relevantes para as primeiras transições democráticas da série - ou da vaga - que se iniciou em 1974.
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É importante sublinhar a importância das dinâmicas de convergência europeia, nomeadamente nos casos português e espanhol, onde um domínio autoritário persistente não pôde impedir os efeitos, directos e indirectos, das dinâmicas centrípetas de integração regional. Os mais importantes resultam da aceleração do desenvolvimento económico, com um período prolongado de crescimento sustentado, desde os anos sessenta, da rapidez dos processos de urbanização, que desfazem a velha sociedade rural, e do sentido da emigração, que se dirige, maciçamente, para os países da Europa Ocidental | Linz, Barreto (2005) |. Essa evolução acentua, paralelamente, uma convergência económica e social e uma crescente interdependência dos dois países da Península Ibérica em relação à Europa Ocidental e às Comunidades Europeias. A ligação entre modernização, convergência e interdependência joga a favor de uma mudança politica interna. Na sequência do primeiro alargamento e da entrada da Grã-Bretanha, as elites funcionais e as elites empresariais em Portugal e na Espanha reconhecem as Comunidades Europeias como o centro do ordenamento institucional da Europa Ocidental, e a adesão dos dois Estados peninsulares, tida como indispensável, exige a prévia democratização - que se presume possa ser uma adaptação lenta e gradual - dos velhos regimes autoritários.
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Sem prejuízo de os factores internos terem sido decisivos para o fim do regime autoritário em Portugal, pode reconhecer-se nesses processo a importância da contiguidade territorial, das regras das instituições multilaterais e dos efeitos internacionais de demonstração, bem como, sobretudo para as gerações mais novas, a força de atracção de uma Europa Ocidental onde a modernização e o mercado se combinam com o Estado de direito e a democracia pluralista.
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Há um factor adicional que vai condicionar fortemente as transições - o contexto europeu e internacional da Guerra Fria | Pridham (1991), Tovias (1984) |. Fora desse contexto, é difícil compreender o que estava em jogo na revolução portuguesa e a importância dos factores externos para a decisão democrática na crise de transição.
As variações da détente
O golpe de Estado do 25 de Abril foi uma surpresa completa, nomeadamente para os Estados Unidos e os aliados ocidentais de Portugal | Maxwell (1995) |, e ocorre num momento de mudança internacional, que não foi tido em conta pelos responsáveis do movimento das Forças Armadas.
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Os sinais mais emblemáticos são, do lado norte-americano, a crise do Watergate, que vai provocar a demissão do presidente dos Estados Unidos e, do lado europeu, o caso Guillaume, que vai provocar a demissão do chanceler Willy Brandt, no dia 24 de Abril, quando o golpe militar português já está em marcha.
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Num quadro mais largo, a revolução portuguesa tem inicio num período ainda dominado pela estratégia norte-americana de détente e quando chega ao seu fim, em 25 de Novembro de 1975 ou em 25 de Abril de 1976, a politica internacional já está condicionada pela estratégia soviética de détente, que inclui uma linha ofensiva e de expansão cujo sentido se decide, pelo menos em parte, entre Lisboa e Luanda, as duas faces da transição portuguesa.
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A estratégia norte-americana de détente começa com o estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a República Popular da China - a cimeira entre Richard Nixon e Mao Tsetung - que marca o reconhecimento da importância estratégica da cisão sino-soviética e o fim do isolamento internacional do regime maoista. A oposição radical entre as duas grandes potências comunistas torna possível que os Estados Unidos ocupem uma posição equilibradora entre a União Soviética e a China. O domínio norte-americano do jogo triangular condiciona a competição bipolar e força o recuo soviético para uma linha de aproximação com os Estados Unidos, paralela à linha chinesa. Essa estratégia defensiva traduz-se numa sucessão de acordos sobre os armamentos estratégicos, na normalização das relações económicas entre os dois países e no regresso das cimeiras regulares entre os dirigentes das duas principais potências internacionais, que simbolizam uma détente propriamente dita nas relações Leste-Oeste e na politica internacional, à qual só escapam, ironicamente, as relações entre a China e a União Soviética.
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O sentido da détente norte-americana é ultrapassar os riscos excessivos do estado de confrontação permanente entre as grandes potências nucleares e tentar integrar as potências revolucionárias, a União Soviética e a China, num modelo de ordenamento multipolar, que reconhece também a recuperação gradual da autonomia da Europa Ocidental e do Japão. O método é a equilibração triangular que garante aos Estados Unidos uma vantagem relativa na relação bipolar central, a benefício da divisão entre os rivais comunistas. O objectivo imediato é criar as condições para um acordo sobre o Vietnam que torne possível a retirada das forças militares norte-americanas.
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Porém, as consequências da détente depressa excedem os propósitos e as previsões da administração norte-americana. Desde logo, depois da vitória social-democrata nas eleições de 1969, a détente bipolar torna possível a Ostpolitik de Willy Brandt e Egon Bahr, a primeira demonstração de uma certa autonomia alemã na politica internacional, que leva à normalização das relações da República Federal com a União Soviética e os países do bloco soviético, incluindo a República Democrática alemã : essa outra détente europeia torna-se um factor de crescente tensão entre os dois principais aliados ocidentais. Por outro lado, os esforços dos Estados Unidos para consolidar as suas relações com os seus aliados europeus, na sequência da entrada da Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias e na linha da multipolaridade, vão provocar uma crise aberta entre os Estados Unidos e a França, em torno da iniciativa norte-americana que proclama o ano de 1973 como o Ano da Europa. Por último, a diminuição das tensões internacionais, nomeadamente na Europa, abre a possibilidade quer para se admitir uma mudança fundamental na politica europeia ocidental, quer para alterar as regras do jogo da Guerra Fria, que impunham, desde 1947, a exclusão dos partidos comunistas dos governos democráticos | Legvold (1977), Tokkes (1978), Hassner (1978), Middlemas |. Em França, o Partido Socialista consolida a sua aliança com o Partido Comunista, assente num Programa Comum da Esquerda, na Itália, onde o Partido Comunista cresce de eleição para eleição e está praticamente a par da Democracia-Cristã, uma parte dos dirigentes democratas-cristãos admite um "compromisso histórico" entre os dois grandes partidos e, em Espanha, se e quando começar a transição democrática, as previsões apontam o Partido Comunista como uma das grandes forças politicas com a qual tem de se contar. A crise económica, desencadeada pela Guerra do Yom Kippur e pelo aumento dos preços do petróleo, pode acelerar as mudanças eleitorais e a viragem à esquerda em França e na Itália.
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Estes sinais de mudança nas relações transatlânticas e na política europeia chegam para provocar uma crise na estratégia norte-americana de détente, mas esta é sobretudo prejudicada pela crise presidencial interna. Essa crise paralisa a capacidade de acção internacional dos Estados Unidos, não só por condicionar fortemente a decisão presidencial, antes e depois da demissão de Richard Nixon e da sua sucessão pelo Vice-Presidente Gerald Ford, mas também porque permite uma intervenção crescente do Congresso norte-americano nas politicas externas, que vão prejudicar as relações com a União Soviética.
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Em finais de 1974, a demonstração dos efeitos externos da demissão de Richard Nixon, a saliência das tensões transatlânticas e a crise nas relações entre as duas grandes potências - com a denúncia pela União Soviética dos acordos de normalização das relações económicas bilaterais, na sequência das exigências do Congresso dos Estados Unidos sobre a politica de emigração dos judeus soviéticos - levam a uma re-avaliação da "correlação de forças" e a uma revisão da estratégia soviética num sentido ofensivo. A estratégia soviética de détente procura articular os acquis da détente bipolar e europeia, nomeadamente no quadro da preparação da Conferência de Cooperação e Segurança Europeia, com a sua capacidade para explorar novas oportunidades estratégicas de expansão. Essas oportunidades incluem o fortalecimento dos partidos comunistas europeus, mau grado as tensões entre o centro soviético e os "eurocomunistas", a unificação do Vietnam, a emergência de uma "situação revolucionária" em Portugal | Bovin (1974) | e os seus resultados na descolonização africana, nomeadamente em Angola. A ofensiva comunista no Vietnam começa no principio de 1975 e a unificação militar está completada em Abril desse ano e, depois dessa dupla vitória soviética contra os Estados Unidos e a China, há uma escalada paralela nas frentes europeia e africana da transição portuguesa, que não impede a realização da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia, nem a aprovação da espectiva Acta Final, nem a marcação, nessa altura, de uma cimeira bilateral entre o novo Presidente dos Estados Unidos e o Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, prevista para finais de 1975 | Dobrynin (1995)
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A crise portuguesa decorre na transição entre a estratégia norte-americana de détente e a estratégia soviética de détente e é parte integrante dessa viragem internacional.
A revolução portuguesa
A transição portuguesa é, como todas as crises europeias da Guerra Fria, simultaneamente uma crise interna e uma crise internacional.
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Essa última qualidade não resulta apenas do facto óbvio de qualquer mudança de regime politico na Europa e num Estado membro e fundador da Aliança Atlântica ter implicações potenciais para os equilíbrios no eixo Leste-Oeste, em função da natureza especifica da competição bipolar, onde as dimensões ideológicas, politicas, económicas e estratégicas eram inseparáveis e onde não existia uma fronteira rigorosa entre as questões internas e as questões externas.
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Resulta principalmente do facto de os responsáveis norte-americanos considerarem estar em causa, pela primeira vez desde o principio da Guerra Fria, a possibilidade séria de instalação de um regime pró-soviético num país da Europa Ocidental | Kissinger (2000) | e de, simetricamente, os responsáveis soviéticos reconhecerem na mudança portuguesa a primeira "situação revolucionária" na Europa capitalista desde o fim do seu ciclo de expansão na sequência da II Guerra mundial | Zarodov (1975) |
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Nesse contexto, a luta sobre o sentido da revolução portuguesa é um enjeu internacional e regional, que envolve os principais agentes estratégicos da Guerra Fria, cujas estratégias são decisivas para o resultado final da crise, embora esta tenha sido resolvida internamente, sem recurso a qualquer forma de coacção militar externa.
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Tal como nas lutas cruciais no principio da Guerra Fria, em França, na Itália ou na Grécia, o confronto interno na crise portuguesa opõe um partido americano e um partido soviético, enquanto as suas origens acrescentam a essa clivagem uma segunda divisão que opõe um partido pretoriano e um partido civilista | Ferreira (1985), Lucena, Maxwell (1995), Schmitter |. Naturalmente, quer o partido americano, quer o partido soviético têm ambos alas militares e alas civis, assim como o partido pretoriano e o partido civilista têm ambos alas americanas e alas soviéticas. É na conjunção dessas duas frentes que a luta se trava e é nesse contcxto interno que os agentes externos têm de encontrar os seus aliados portugueses e construir as suas estratégias de intervenção politica. Que fazer?
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Logo no inicio da crise portuguesa surgem duas linhas opostas na estratégia ocidental, uma linha radical que defende o isolamento da revolução portuguesa - a "teoria da vacina" - e uma linha mais arriscada que se quer empenhar na democratização do regime post-autoritário, contra o partido soviético e a maioria do partido pretoriano.
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A estratégia do isolamento está resumida na frase célebre e deselegante de Henry Kissinger a Mário Soares, em Outubro de 1974, quando o Secretário de Estado norte-americano diz ao ministro português que ele vai ser o Kerensky da revolução portuguesa, sem prestar a atenção devida à resposta do seu homólogo: Mário Soares - Não quero ser um Kerensky ! Henry Kissinger - Kerensky também não queria. | Szulc (1976) |. A previsão de Henry Kissinger de que os socialistas iam ser desfeitos pelos comunistas na revolução portuguesa de 1974, tal como os menchéviks o tinham sido pelos bolchéviks na revolução russa de 1917, tinha implicita uma estratégia. O sentido da "vacina portuguesa", como explicou o Primeiro Ministro britânico, James Callaghan | Callaghan (1988) | era imunizar a França e a Itália - e a Espanha - contra a contaminação eurocomunista (Henry Kissinger, nas suas memórias, não perde tempo a distinguir entre comunistas pró-soviéticos e "eurocomunistas") | Kissinger (2000) |. A entrada dos comunistas nos governos democráticos ocidentais, sem qualquer contrapartida simétrica do lado do bloco soviético, era um sério perturbador dos equilíbrios bipolares na Europa e da própria détente entre os Estados Unidos e a União Soviética, que assentava na estabilidade das linhas internas e externas que definiam a divisão entre os dois "campos" no eixo Leste-Oeste | Sonnenfeldt (1976) |. O isolamento de Portugal, incluindo a sua expulsão da Aliança Atlântica, devia poder ser um caso exemplar e servir de lição aos socialistas franceses e aos democratas-cristãos italianos que estavam tentados a mudar as regras da Guerra Fria.
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| O único problema era preservar o controlo sobre as instalações militares norte-americanas no arquipélago dos Açores. Nesse sentido, parece ter havido um esforço norte-americano - atribuído por Frank Carlucci à "ala direita" da administração | Carlucci (1987) |, por outros a Richard Allen, futuro Conselheiro de segurança nacional do Presidente Ronald Reagan - para estimular movimentos separatistas locais, que garantiriam, em último caso, a secessão açoriana. Essa manobra mereceu um reparo de Helmut Schmidt a Gerald Ford, quando o chanceler alemão disse ao presidente norte-americano que os Açores eram "uma fronteira da Europa". |
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Os problemas aos quais a estratégia do isolamento pretendia responder eram reais. A détente, pela sua natureza, tendia a diminuir não só as tensões estratégicas na relação entre as grandes potências nucleares, mas também as tensões politicas e ideológicas na Guerra Fria : se os Estados Unidos e a União Soviética se podiam entender sobre o modelo e as regras da política internacional, os socialistas ou os democratas-cristãos também se deviam poder entender com os comunistas franceses ou italianos sobre as questões da politica interna dos seus países. Porém, desde logo, a assimetria previsível na evolução da politica interna na aliança ocidental e no bloco soviético falsificava esse argumento - não estava prevista nenhuma aliança correspondente entre os partidos comunistas e os partidos socialistas na Europa de Leste, uma vez que o pluralismo partidário de facto não existia do outro lado do muro de Berlim. Por outro lado, na estratégia norte-americana, a détente bipolar representava uma forma de institucionalizar o status quo europeu e internacional, que corria o risco de ser alterado pela participação dos comunistas nos governos ocidentais.
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A posição inicial norte-americana é contrariada pela estratégia alemã, que defende a democratização dos dois Estados da Península Ibérica, como o demonstra o empenho do governo social-democrata na formação e no fortalecimento dos partidos socialistas de Mário Soares e de Felipe Gonzalez, respectivamente em Portugal e em Espanha, desde antes do golpe de Estado de 1974. O sucesso dessa linha é rudemente posto à prova na revolução portuguesa, onde os alemães opõem à estratégia do isolamento uma estratégia de empenhamento na defesa da democracia. As fundações partidárias, nomeadamente a Fundação Ebert e a Fundação Konrad Adenauer, são decisivas para a sobrevivência dos três partidos democráticos portugueses, para a sua organização, para o seu financiamento e para as campanhas eleitorais, bem como para a formação das correntes sindicais de oposição ao partido soviético. Paralelamente, a intervenção externa é preparada em articulação com a Internacional Socialista e com os governos europeus de esquerda - os trabalhistas e os sociais-democratas estão no poder na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Austria, na Suécia, na Finlândia - e em Israel - e têm condições para mobilizar, quando necessário a EFTA e as Comunidades Europeias | Bruneau (1982) |. No momento crítico, em Agosto de 1975, nas vésperas da cimeira de Helsinquia, Willy Brandt surge à frente de um Comité de Estocolmo de apoio à democracia portuguesa, onde participam vários chefes de Governo ocidentais.
Essa iniciativa crucial não serve só para demonstrar às forças portuguesas os riscos de isolamento externo que correm com a radicalização do processo de transição, como para assinalar face à União Soviética os limites da tolerância da Internacional Socialista | Brandt (1976) |.
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Nessa altura, já os Estados Unidos tinham decidido seguir - a beneficio de inventário - a estratégia de empenhamento na democratização da revolução portuguesa onde, pela primeira vez, o partido americano, pelo menos na sua ala civil, é comandado pela linha alemã. A viragem norte-americana coincide com a nomeação de Frank Carlucci como Embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, que não só adopta a estratégia de apoio às forças democráticas, como se concentra na divisão do partido pretoriano e no isolamento da ala soviética respectiva, ao mesmo tempo que neutraliza, ou suspende, as manipulações separatistas nos Açores. Donald Rumsfeld, chefe de gabinete de Gerald Ford, garante ao Embaixador o apoio indispensável do Presidente norte-americano, mesmo quando surgem dificuldades do lado de Henry Kissinger | Szulc (1975), Kissinger (2000), Carlucci (1987), Tovias (1991) |.
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A conjunção das estratégias ocidentais é decisiva para garantir o resultado democrático da transição portuguesa, em que o partido americano acaba por prevalecer quer no partido civilista, quer no partido pretoriano, cuja divisão é a chave da vitória da estratégia de democratização | Maxwell (1980) |.
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Do lado soviético, incluindo os partidos eurocomunistas, também existem divisões que, ao contrário do que se passa do lado ocidental, em vez de diminuir se acentuam, até ao limite da ruptura, nas fases finais da revolução portuguesa.
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Enquanto, do lado ocidental, o que está em jogo é a melhor maneira de assegurar o status quo - a divisão entre a estratégia do isolamento e a estratégia do empenhamento diz respeito aos meios de alcançar o mesmo objectivo final de estabilidade europeia e ocidental - do lado soviético está em causa a natureza dadétente e a sua articulação com a mudança fundamental do status quo politico nos países da Europa Ocidental.
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Logo à partida, o próprio golpe de Estado do 25 de Abril é descrito pelos comunistas portugueses como uma demonstração de que a détente bipolar não só não limita a marcha natural da história e da luta de classes, como cria novas condições para o avanço da revolução comunista na Europa | Story (1976) |.
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A posição dominante, mais enfaticamente a partir da viragem ofensiva na estratégia internacional da União Soviética, em Janeiro de 1975, defende uma linha de tomada de poder, assente no peso excepcional do partido soviético no partido pretoriano, que inclui o Primeiro Ministro, general Vasco Gonçalves e, na sequência do golpe de Estado de 11 de Março de 1975, uma maioria dos membros do Conselho da Revolução, no qual se integram os principais comandos militares operacionais. Essa ofensiva é paralela em Portugal e em Angola, onde a aceleração do processo de descolonização abre caminho para o avanço decisivo do Movimento Popular de Libertação de Angola, fortemente apoiado pela União Soviética, pelos comunistas portugueses e pela maioria do partido pretoriano no poder | Maxwell (2003) |.
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Porém, essa orientação revolucionária é contestada, desde logo, pelos partidos comunistas italiano e espanhol, que representam dois-terços da linha eurocomunista e, sobretudo, uma linha reformista que tem apoios dentro do bloco soviético. | Há, por um lado, indicações mais ou menos claras sobre asnuances que separam, por um lado, os comunistas polacos, húngaros e romenos dos comunistas alemães-orientais, checos e cubanos; os comunistas chineses já não têm nenhuma ligação com o bloco soviético e as suas extensões locais pertencem ao partido americano, enquanto os comunistas albaneses se começam a separar da sua filiação chinesa e tendem a cair para o lado do partido soviético. Por outro lado, a especificidade do regime comunista soviético torna possível jogar com a distinção entre a diplomacia oficial do ministro dos Negócios Estrangeiros, Andrei Gromyko, e as relações entre os partidos, comandadas pelo Departamento Internacional de Boris Ponomarev e Mikhail Suslov |. Os dirigentes comunistas italianos e espanhóis percebem rapidamente o sentido da estratégia de tomada de poder do partido comunista português e concluem, como é evidente, que essa linha destrói a frágil credibilidade democrática dos euro-comunistas e que o seu sucesso não só significaria o fim da détente europeia, como uma derrota séria para a linha reformista no movimento comunista internacional.
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Essa divisão tem consequências importantes para a revolução portuguesa. Para começar, e para salvar as suas credenciais democráticas, os partidos comunistas italiano e espanhol apoiam, abertamente, o Partido Socialista - e movimentos da esquerda radical portuguesa, pequenos mas com bastante peso no partido pretoriano - contra o Partido Comunista Português : Santiago Carrillo (e não Felipe Gonzalez) é o herói espanhol do Congresso do PS em 1974.
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Por esse caminho, separam-se do partido comunista português e - pelo menos - do Departamento Internacional do Partido Comunista da União Soviética, com cujos representantes travam um debate ideológico público, embora, por vezes, hermético, acerca dos Estados Unidos da Europa, das etapas da revolução e da natureza das maiorias. Para os ortodoxos, como demonstrou a experiência russa, não há uma "muralha da China" entre uma etapa democrática e uma etapa socialista na revolução, as "maiorias politicas" devem prevalecer sobre as "maiorias aritméticas" e os Estados Unidos da Europa só podem ser socialistas | Zarodov (1975) | ; para os reformistas, a repetição da revolução bolchévik de Outubro de 1917 é um pesadelo, os resultados de eleições livres - as "maiorias aritméticas" - merecem sempre ser respeitados, mesmo quando impõem a alternância com os partidos burgueses, e os Estados Unidos da Europa devem ser uma união das democracias europeias, para lá da divisão entre dois blocos, e não um prolongamento do império soviético.
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No fim, a vitória, contra todas as expectativas, da democracia na revolução portuguesa pode ter evitado piores problemas para as relações Leste-Oeste. A détente bipolar, bem entendido, sobrevive mal depois da intervenção soviética e cubana em Angola, mas a escalada nas tensões periféricas entre os Estados Unidos e a União Soviética não constitui uma alteração significativa dos equilibrios estratégicos centrais da Guerra Fria | Bell (1977) |, ao contrário do que podia acontecer se Portugal mudasse de campo.
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O fim do regime autoritário decorre, no essencial, de factores internos, mas a vitória democrática na transição não teria sido possivel sem a estratégia de empenhamento das potências ocidentais. Por sua vez, o significado da transição democrática é relevante também para lá das fronteiras portuguesas.
A vaga democrática
A crise portuguesa é uma crise peninsular, europeia e internacional e tem consequências em todos esses diferentes níveis.
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A consequência mais directa e reconhecida são os efeitos da revolução portuguesa para a transição espanhola, onde a "ruptura pactada" é o contrário da "ruptura por golpe" | Linz | e onde a moderação de todas as partes, bem como a determinação do Rei Juan Carlos, podem ter sido estimuladas pela demonstração dos riscos do afrontamento interno, nomeadamente os riscos de divisão dentro das Forças Armadas | Cervelló (1993), Powell (2001) |. Nesse sentido, sem querer exagerar a importância do contágio peninsular, a "vacina portuguesa" parece ter funcionado, pelo menos no quadro ibérico, embora se deva referir também que Portugal, muito provavelmente, teria seguido uma estratégia pactuada e controlada de transição, como a da Espanha, e só não seguiu esse caminho porque a guerra colonial impedia o sucesso de uma linha reformista moderada.
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A consequência mais forte é partilhada com a Grécia e a Espanha : as três transições asseguram a homogeneização democrática da Europa Ocidental, onde, pela primeira vez desde o principio da Guerra Fria, todos os Estados têm regimes democráticos. Esse resultado é igualmente importante para a Europa e para a aliança ocidental e é uma vitória para a estratégia alemã de defesa da democratização, que se revelou decisiva, nomeadamente em Portugal e em Espanha. A democratização da Europa do Sul torna possível um segundo alargamento das Comunidades Europeias, que se vai desencadear rapidamente e contribuir para a consolidação de regimes estáveis de democracia pluralista na Grécia, em Portugal e em Espanha. Além disso, completa a definição da identidade democrática da Europa Ocidental perante uma Europa de Leste que, por contraposição, se reduz a uma extensão da autocracia imperial soviética : nessa clivagem, do lado europeu ocidental estão a liberdade, o direito e a economia de mercado - o outro nome da Europa - e do outro lado a opressão, a repressão e as economias planificadas que perdem a sua capacidade de atracção. | Pelo menos, é essa a tendência que se define depois de um período de "europessimismo", acentuado pela crise económica de 1979, em que Giscard d'Estaing não exclui um regresso do pesadelo antidemocrático dos anos trinta. |
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A consequência mais saliente é a crise angolana, onde uma intervenção militar soviética e cubana assegura a tomada do poder do Movimento Popular de Libertação de Angola e provoca uma escalada nas tensões bilaterais entre os Estados Unidos e a União Soviética, que marca o fim do período de détente bipolar na Guerra Fria | e, de certa maneira, imprime carácter ao último ciclo de expansão soviética, que confirma o seu sentido inicial e se mantém sempre nas periferias, do Vietnam a Angola, da Etiópia à Nicarágua, de Grenada ao Afeganistão. |
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Uma última consequência excede o quadro estrito da Guerra Fria. Henry Kissinger enganou-se, em Outubro de 1974: Mário Soares não queria ser e não foi um novo Kerensky, por mérito próprio, naturalmente, e com uma pequena ajuda dos seus amigos. André Malraux pronunciou o veredicto histórico: na revolução portuguesa, pela primeira vez, os menchéviks venceram os bolchéviks. Essa vitória inédita perturbou os mitos dominantes sobre a revolução e a liberalização, discutidos num debate célebre entre Raymond Aron e Ernest Gellner, que incluía a antecipação de uma mudança de regime na Europa de Leste | Gellner (1976), Aron (1977) | onde, quinze anos mais tarde, se confirmou o regresso das revoluções liberais.
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As transições democráticas na Europa do Sul demonstraram que o fim dos regimes autoritários não abria necessariamente caminho para a revolução comunista e, mesmo no caso português, onde esse risco foi mais forte, ganhou a democracia pluralista. Nesse sentido, marcam o principio de uma nova vaga de democratização | Huntington (1991) | que, dessa vez, não foi a consequência de uma guerra hegemónica, como em 1918 ou em 1945 e, pelo contrário, pôs fim à Guerra Fria e encerrou o século terrível das guerras totais e das revoluções totalitárias.
http://www.ipri.pt/investigadores/artigo.php?idi=3&ida=115
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