9 DE FEVEREIRO DE 2012 - 12H17
Recebi a informação de que um jornalista, o senhor João Pereira Coutinho, acusou-me de falar do conflito palestino como um turista que vai a campo e deslumbra-se com o que vê rapidamente. Um "turista ocidental", como diz o referido jornalista com sua impressionante ironia.
No entanto, se este senhor conhecesse ao menos um pouco da imprensa brasileira saberia que escrevo sobre este assunto e sobre questões ligadas à política no mundo árabe há mais de dez anos nos principais jornais do Brasil (Folha, "Valor Econômico", "Correio Braziliense").
Podem-se criticar frontalmente minhas interpretações, mas desqualificá-las como exercício de diletantismo é um expediente fácil de quem sabe apenas se isolar em uma visão de mundo preconcebida e imune a qualquer confrontação com os fatos.
Não por outra razão, suas colocações beiram a comédia involuntária. Primeiro, tenta apagar o muro que Israel levantou na Cisjordânia dizendo que não se trata exatamente de um muro mas de uma: "barreira de segurança".
Ok, talvez em Portugal "muro" deva significar outra coisa. Por isso, gostaria de lembrá-lo que, no Brasil, chamamos de "muro" um muro, o que talvez este senhor não saiba. Este é um exercício saudável que alguns deveriam fazer: chamar as coisas pelos seus nomes.
Por exemplo, ninguém que eu saiba procurou apagar o Muro de Berlim chamando-o de "barreira de segurança de Berlim". Talvez o senhor Coutinho gostasse de iniciar esta modalidade de novilíngua. Bem, a princípio, posso garantir que vi um muro, por sinal muito parecido com o que vi em Berlin quando este ainda existia.
Mas sei que há pessoas que, mesmo diante de um muro, continuarão a dizer que ele não existe. Os psiquiatras costumam chamar isto de "alucinação negativa".
Como se não bastasse, ao falar de sua "barreira de segurança", o senhor Coutinho afirma que ela foi erguida para proteger Israel de ataques terrorista, o que justificaria tudo. De maneira desonesta, ele "esquece" que Israel foi condenado por tribunais internacionais por levantar um Muro que anexava de facto áreas internacionalmente reconhecidas como pertencentes ao futuro Estado da Palestina.
Ou seja, o governo de Israel poderia construir quantas "barreiras de segurança" quisesse, desde que em seu território. O problema não diz respeito apenas a sua segurança, mas também a sua inaceitável conquista territorial.
Depois, este senhor afirma (isto eu tenho que citar na íntegra senão alguns acharão que inventei): "a existência de um estado autônomo e respeitoso das fronteiras de 1967 tem sido sucessivamente proposto pelas lideranças israelenses desde 1967".
Mas, se este é o caso, alguém poderia me explicar por que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse claramente, no próprio Congresso norte-americano sob aplausos dos republicanos, que nunca aceitaria a proposta enunciada por Obama de criar um Estado palestino nas fronteiras de 67?
Por sinal, em minha tosca ingenuidade, quem propõe respeitar as fronteiras de 67, não coloca, como fez o governo de Israel nos últimos vinte anos, centenas de milhares de colonos na área que procura "respeitar".
Se este senhor realmente se interessa pelo conflito palestino sugiro, inclusive, que leia a carta programa do Likud, partido do atual primeiro-ministro.
Lá ele descobrirá que sua carta de 1999 diz com todas as letras : "O governo de Israel rejeita o estabelecimento de um estado árabe palestino a oeste do Rio Jordão". Mas talvez, assim como o Muro que não existe, o senhor Coutinho baterá o pé e dirá que tais palavras nunca foram escritas, que o que vemos diante de nossos olhos é uma ilusão resultante de algum complô maquiavélico de esquerdistas amigos de terroristas e defensores da destruição dos valores ocidentais de liberdade e democracia.
Sobre a questão dos refugiados, creio ter deixado claro que a posição de Arafat na negociação com o antigo primeiro-ministro de Israel Ehud Barak foi, a meu ver, um equívoco. Apenas lembrei que não há nada "perverso" em exigir o reconhecimento de um direito internacionalmente aceito e aplicado em vários outros casos.
Ninguém imagina que 4 milhões de refugiados voltariam, mas nada impedia que uma solução de compromisso fosse encontrada, como absorção de uma parte e compensação financeira para os demais. Se os israelenses tem dúvida a respeito palestino do desejo de negociação, sugiro que recoloquem a mesma proposta na mesa. Vejamos o que acontecerá.
Por fim, da mesma forma como o senhor Coutinho faz questão de não ver certas coisas, ele consegue ver o que não existe. Em momento algum afirmei que "existe um apartheid de facto no interior de Israel entre israelenses e árabes-israelenses". Mas ler atentamente o que se critica talvez seja pedir demais.
Toda esta discussão lamentável apenas demonstra o nível raso do debate que temos sobre um assunto tão importante.
Em momento algum, o jornalista em questão reconheceu minimamente o sofrimento do povo palestino. Para ele, isto não conta, disto nem vale a pena falar. Melhor tratá-los como uma horda de terroristas potenciais que merecem o tratamento que tem. Mostrar indignação com o sofrimento palestino é capitular, deve pensar o referido jornalista.
Como se fosse impossível afirmar, ao mesmo tempo: "não aceitamos ataques terroristas contra o povo israelense" e "não aceitamos a humilhação cotidiana, a destruição moral do povo palestino, assim como a anexação de seu território". Pois se Israel quer se livrar do fantasma do Hamas, nada melhor do que mostrar aos palestinos que a via da diplomacia traz frutos concretos. Que tal começar parando de bloquear o reconhecimento do Estado da Palestina no Conselho de Segurança do ONU?
A criação do Estado de Israel foi uma necessidade histórica inquestionável. Tratava-se de procurar terminar com um dos processos mais vergonhosos de perseguição e destruição ao qual um povo foi submetido (diga-se de passagem, principalmente na Europa esclarecida, com seus pogroms, campos, numerus clausus para a admissão de judeus no sistema escolar).
Hoje, a criação do Estado da Palestina (e não um conjunto medonho de bantustãs) é uma necessidade histórica da mesma ordem. Quem não tem coragem de afirmar isto com todas as letras, mente quando diz preocupar-se com direitos humanos.
Melhor seria se estes aprendessem algo a respeito de juízos universais e incondicionais. Pois há situações inaceitáveis sob quaisquer circunstâncias. Ataques terroristas a população civil é um dos casos. Destruição moral de populações inteiras é outro.
Fonte: Folha.com
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