Economia
As fronteiras entre economia e política nas relações internacionais são tênues e parecem justificar a afirmação de Lênin de que a política é uma expressão concentrada da economia. Presenciamos hoje pelo mundo, conforme notou o ministro Guido Mantega, uma “guerra cambial”. Parece que é um conflito econômico. E é. Mas é também, principalmente, uma guerra política envolvendo várias nações e protagonizada por dois grandes rivais: os Estados Unidos e a China.
Por Umberto Martins
O dólar declina em todo o mundo. E o Brasil não é o único país a sentir os efeitos contraditórios e deletérios deste fenômeno. Bem ou mal, a moeda estadunidense ainda desempenha o papel de dinheiro mundial. É a referência internacional dos preços das mercadorias e também dos valores relativos das moedas nacionais e regionais, como o euro.
Por esta razão, a queda do dólar tem como contrapartida a valorização das moedas de inúmeros outros países. Isto, como se vê no Brasil, encarece e desestimula as exportações e desperta sérias preocupações acerca do futuro da indústria. Em nome ou em defesa dos interesses nacionais, os governos adotam medidas para impedir a valorização de suas moedas e preservar a competitividade das empresas.
Dois exemplos recentes
No Brasil, o Ministério da Fazenda anunciou recentemente o aumento para 4% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) incidente sobre o capital estrangeiro especulativo investido na aquisição de títulos de renda fixa. No Japão, o Estado deixou de lado o excesso de liberalismo e passou a intervir no mercado de moedas para conter a valorização do iene, percebida como um obstáculo ao crescimento das exportações.
Reações como estas vão configurando o cenário que o ministro Guido Mantega classificou de guerra cambial, com todo mundo agindo para manter o valor de suas moedas num patamar competitivo, o que pode se revelar o primeiro passo para uma guerra comercial de consequências mais sérias, hoje imponderáveis. As divergências pululam quando se trata de identificar os culpados ou o culpado pelos conflitos.
Responsabilidades
Os Estados Unidos aproveitam a oportunidade para apontar a China como principal responsável pela instabilidade e volatilidade das cotações em função da política cambial do país, que destoa do catecismo neoliberal e não contempla a livre flutuação do iuan, embora admita uma valorização em doses homeopáticas. A União Europeia faz coro com o império e as pressões contra a próspera nação asiática crescem.
Mas a versão do governo estadunidense para os fatos não convence todo o mundo. O Brasil, por exemplo, diverge. Para o ministro Mantega, a culpa maior deve ser atribuída aos EUA. "O Federal Reserve (Fed, banco central americano) promete uma expansão quantitativa da moeda, despejando recursos na economia. Outras nações avançadas estão fazendo o mesmo. Mas isso não vai reativar as economias. Na verdade, vai apenas desvalorizar o dólar e outras moedas, incluindo a chinesa, que está atrelada à americana", disse o ministro brasileiro em apresentação no Council of the Americas, em Nova York, nesta quarta (13). Ele defendeu o câmbio flutuante, mas não quis fazer o jogo dos EUA e evitou críticas à China.
A reação do Estado norte-americano à recessão iniciada em dezembro de 2007 levou a uma expansão inédita da base monetária e inundou o mundo de dólar. Estima-se que foram despejados 14,9 trilhões de dólares na economia para resgatar o sistema financeiro, um valor superior ao PIB. Com a taxa de juros fixada em 0 a 0,25%, os investidores pegam o dinheiro de Tio Sam a custo zero e aplicam em “emergentes” como o Brasil, onde os títulos públicos remuneram pela taxa básica de juros (Selic), que está em 10,75%. Apesar do IOF de 4% a operação ainda é altamente lucrativa e este é um dos motivos do ingresso excessivo de dólares na economia brasileira e da valorização do real. Não é sem razão que o economista Josefh Stiglitz, que recebeu o Prêmio Nobel em 2001, acusa os EUA de manipular artificialmente o câmbio e forçar uma desvalorização do dólar para obter vantagens comerciais.
Diversidade
O impacto da queda do dólar não é igual para todo o mundo e a diversidade de efeitos tem a ver com o fato de que não há um regime cambial único para as diferentes nações. Algo parecido chegou a prevalecer precariamente no passado. Após a Segunda Guerra, e nos marcos dos acordos de Bretton Woods, vigoraram o padrão dólar-ouro e o câmbio fixo. Viveu-se um período de certa estabilidade e prosperidade no mundo capitalista, mas o sistema monetário de Bretton Woods entrou em colapso após a decisão unilateral dos EUA, em 1971, de acabar com o lastro do dólar em ouro.
Aos poucos, o câmbio fixo, que era a regra, foi cedendo lugar ao câmbio flutuante, que o Brasil adota hoje. Convém notar que por aqui o câmbio flutuante é bem recente. No início do Plano Real, e como condição dele, o câmbio fixo era norma. O real foi cotado a 1 dólar, com uma sobrevalorização sustentada por alguns anos pelo ingresso de investimentos externos. A liberalização veio na sequencia da crise cambial de 1999, embora hoje o câmbio flutuante seja apresentado como um dogma atemporal.
Cada Estado nacional adota a política cambial que julgar mais conveniente aos seus interesses, ressalvando aqui os países europeus da zona do euro, que abriram mão das soberanias sobre as políticas monetárias e cambiais. E, a julgar pelos resultados revelados no comportamento do PIB e do comércio exterior, quem pratica a política cambial mais sábia é a China, que nunca liberalizou o câmbio nem o fluxo de capitais, não pretende seguir os conselhos dos países ricos e considera o tema como uma questão de soberania nacional.
Ciúmes imperialistas
O fato é que os sucessos dos chineses despertam fortes ciúmes imperialistas no interior das chamadas potências ocidentais (que inclui EUA, União Europeia e inclusive o oriental Japão). As pressões lideradas pelo império miram o câmbio e alimentam a guerra cambial, mas têm um sentido mais amplo.
O pano de fundo das divergências é a liderança do poder econômico mundial, que se desloca rapidamente do Ocidente para o Oriente, onde o destaque é a poderosa economia chinesa, que cresce em torno de 10% ao ano. É a expansão da produção e das exportações (de mercadorias e capitais), ao transformar a economia socialista de mercado da China na principal locomotiva da economia mundial, que incomoda as potências capitalistas tradicionais.
A disputa, aparentemente econômica, ganha uma nítida dimensão política, envolve o Congresso dos EUA, políticos europeus e os guardiões da atual ordem imperialista (FMI e Banco Mundial). Não é difícil perceber que está em curso uma campanha orquestrada contra a China e em defesa de uma ordem que já caducou. O tema pode ser discutido na próxima reunião do G20, convocada para novembro em Seul.
Transição
As recentes declarações de Guido Mantega estão em linha com a nova política externa do Brasil, altiva e soberana em contraste com a era FHC e em harmonia com as mudanças objetivas que se verificam no mundo, impulsionadas pelo desenvolvimento desigual e o parasitismo do velho e decadente centro imperialista.
A fragilidade do dólar decorre dos enormes desequilíbrios da economia norte-americana, traduzidas nos déficit público e em conta corrente e no recurso parasitário ao capital estrangeiro e, agora, às emissões inflacionárias do Fed para fechar a conta. A resposta à crise ampliou o problema, exacerbando o rombo governamental e inundando o mundo de dólares baratos. Tudo isto revela a necessidade de um novo Sistema Monetário Internacional (SMI).
O dólar já não reúne as condições para exercer a função de papel-moeda mundial com relativa estabilidade e o bom senso recomenda sua substituição. Todavia, os EUA não advogam tal solução. Preferem apostar na guerra, hoje cambial, amanhã comercial, depois ninguém sabe. As consequências geopolíticas são imponderáveis, mas certamente indicam que a transição para uma nova ordem mundial não será pacífica.
Por esta razão, a queda do dólar tem como contrapartida a valorização das moedas de inúmeros outros países. Isto, como se vê no Brasil, encarece e desestimula as exportações e desperta sérias preocupações acerca do futuro da indústria. Em nome ou em defesa dos interesses nacionais, os governos adotam medidas para impedir a valorização de suas moedas e preservar a competitividade das empresas.
Dois exemplos recentes
No Brasil, o Ministério da Fazenda anunciou recentemente o aumento para 4% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) incidente sobre o capital estrangeiro especulativo investido na aquisição de títulos de renda fixa. No Japão, o Estado deixou de lado o excesso de liberalismo e passou a intervir no mercado de moedas para conter a valorização do iene, percebida como um obstáculo ao crescimento das exportações.
Reações como estas vão configurando o cenário que o ministro Guido Mantega classificou de guerra cambial, com todo mundo agindo para manter o valor de suas moedas num patamar competitivo, o que pode se revelar o primeiro passo para uma guerra comercial de consequências mais sérias, hoje imponderáveis. As divergências pululam quando se trata de identificar os culpados ou o culpado pelos conflitos.
Responsabilidades
Os Estados Unidos aproveitam a oportunidade para apontar a China como principal responsável pela instabilidade e volatilidade das cotações em função da política cambial do país, que destoa do catecismo neoliberal e não contempla a livre flutuação do iuan, embora admita uma valorização em doses homeopáticas. A União Europeia faz coro com o império e as pressões contra a próspera nação asiática crescem.
Mas a versão do governo estadunidense para os fatos não convence todo o mundo. O Brasil, por exemplo, diverge. Para o ministro Mantega, a culpa maior deve ser atribuída aos EUA. "O Federal Reserve (Fed, banco central americano) promete uma expansão quantitativa da moeda, despejando recursos na economia. Outras nações avançadas estão fazendo o mesmo. Mas isso não vai reativar as economias. Na verdade, vai apenas desvalorizar o dólar e outras moedas, incluindo a chinesa, que está atrelada à americana", disse o ministro brasileiro em apresentação no Council of the Americas, em Nova York, nesta quarta (13). Ele defendeu o câmbio flutuante, mas não quis fazer o jogo dos EUA e evitou críticas à China.
A reação do Estado norte-americano à recessão iniciada em dezembro de 2007 levou a uma expansão inédita da base monetária e inundou o mundo de dólar. Estima-se que foram despejados 14,9 trilhões de dólares na economia para resgatar o sistema financeiro, um valor superior ao PIB. Com a taxa de juros fixada em 0 a 0,25%, os investidores pegam o dinheiro de Tio Sam a custo zero e aplicam em “emergentes” como o Brasil, onde os títulos públicos remuneram pela taxa básica de juros (Selic), que está em 10,75%. Apesar do IOF de 4% a operação ainda é altamente lucrativa e este é um dos motivos do ingresso excessivo de dólares na economia brasileira e da valorização do real. Não é sem razão que o economista Josefh Stiglitz, que recebeu o Prêmio Nobel em 2001, acusa os EUA de manipular artificialmente o câmbio e forçar uma desvalorização do dólar para obter vantagens comerciais.
Diversidade
O impacto da queda do dólar não é igual para todo o mundo e a diversidade de efeitos tem a ver com o fato de que não há um regime cambial único para as diferentes nações. Algo parecido chegou a prevalecer precariamente no passado. Após a Segunda Guerra, e nos marcos dos acordos de Bretton Woods, vigoraram o padrão dólar-ouro e o câmbio fixo. Viveu-se um período de certa estabilidade e prosperidade no mundo capitalista, mas o sistema monetário de Bretton Woods entrou em colapso após a decisão unilateral dos EUA, em 1971, de acabar com o lastro do dólar em ouro.
Aos poucos, o câmbio fixo, que era a regra, foi cedendo lugar ao câmbio flutuante, que o Brasil adota hoje. Convém notar que por aqui o câmbio flutuante é bem recente. No início do Plano Real, e como condição dele, o câmbio fixo era norma. O real foi cotado a 1 dólar, com uma sobrevalorização sustentada por alguns anos pelo ingresso de investimentos externos. A liberalização veio na sequencia da crise cambial de 1999, embora hoje o câmbio flutuante seja apresentado como um dogma atemporal.
Cada Estado nacional adota a política cambial que julgar mais conveniente aos seus interesses, ressalvando aqui os países europeus da zona do euro, que abriram mão das soberanias sobre as políticas monetárias e cambiais. E, a julgar pelos resultados revelados no comportamento do PIB e do comércio exterior, quem pratica a política cambial mais sábia é a China, que nunca liberalizou o câmbio nem o fluxo de capitais, não pretende seguir os conselhos dos países ricos e considera o tema como uma questão de soberania nacional.
Ciúmes imperialistas
O fato é que os sucessos dos chineses despertam fortes ciúmes imperialistas no interior das chamadas potências ocidentais (que inclui EUA, União Europeia e inclusive o oriental Japão). As pressões lideradas pelo império miram o câmbio e alimentam a guerra cambial, mas têm um sentido mais amplo.
O pano de fundo das divergências é a liderança do poder econômico mundial, que se desloca rapidamente do Ocidente para o Oriente, onde o destaque é a poderosa economia chinesa, que cresce em torno de 10% ao ano. É a expansão da produção e das exportações (de mercadorias e capitais), ao transformar a economia socialista de mercado da China na principal locomotiva da economia mundial, que incomoda as potências capitalistas tradicionais.
A disputa, aparentemente econômica, ganha uma nítida dimensão política, envolve o Congresso dos EUA, políticos europeus e os guardiões da atual ordem imperialista (FMI e Banco Mundial). Não é difícil perceber que está em curso uma campanha orquestrada contra a China e em defesa de uma ordem que já caducou. O tema pode ser discutido na próxima reunião do G20, convocada para novembro em Seul.
Transição
As recentes declarações de Guido Mantega estão em linha com a nova política externa do Brasil, altiva e soberana em contraste com a era FHC e em harmonia com as mudanças objetivas que se verificam no mundo, impulsionadas pelo desenvolvimento desigual e o parasitismo do velho e decadente centro imperialista.
A fragilidade do dólar decorre dos enormes desequilíbrios da economia norte-americana, traduzidas nos déficit público e em conta corrente e no recurso parasitário ao capital estrangeiro e, agora, às emissões inflacionárias do Fed para fechar a conta. A resposta à crise ampliou o problema, exacerbando o rombo governamental e inundando o mundo de dólares baratos. Tudo isto revela a necessidade de um novo Sistema Monetário Internacional (SMI).
O dólar já não reúne as condições para exercer a função de papel-moeda mundial com relativa estabilidade e o bom senso recomenda sua substituição. Todavia, os EUA não advogam tal solução. Preferem apostar na guerra, hoje cambial, amanhã comercial, depois ninguém sabe. As consequências geopolíticas são imponderáveis, mas certamente indicam que a transição para uma nova ordem mundial não será pacífica.
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