Olho a tela do meu televisor e mais uma vez sinto-me sufocado por um sentimento misto de indignação e impotência. Pergunto-me, muito mais que inquieto, o que esta televisão está a fazer do meu País, da gente que o habita, deste nosso tempo comum.
Por Correia da Fonseca*, em odiario.info
Lembro a TV do fascismo, ao serviço de uma ditadura infame, colaborante com uma guerra injusta, repugnante a quem a olhava com olhos de ver e cabeça de pensar, mas que, contudo, de quando em quando, se sentia obrigada a contemporizar um pouco com valores culturais e civilizacionais que efetiva ou supostamente sobreviviam no resto da Europa, do mundo.
Seria então uma televisão consciente de que era infratora de regras ainda consensuais e por isso não poucas vezes invocava com algum descaro o tríptico a que em princípio devia obedecer o seu trabalho: informar, cultivar, divertir.
Hoje é manifestamente diferente. E pior. E mais nociva. Multiplicada por quatro canais generalistas e abertos, sem o mínimo indício da má consciência que antes de 74 transportava, injeta nos cidadãos telespectadores o hábito do mau gosto e dos subprodutos mais reles, a avidez pelo consumo, a habituação às diversas formas de brutalidade, o sobranceiro desprezo pela cultura.
Para além, é claro, da empenhada e militante submissão ao sobrecapitalismo imperante que a cada passo propagandeia por caminhos diretos e indiretos.Não surpreenderá, assim, que por vezes me pareça que não suporto muito mais e aproveite uma oportunidade para me escapar em busca de diferentes horizontes televisivos, o que aliás não é fácil, e com frequência peça refúgio ou pelo menos alívio em telefilmes policiais em que se especializa um dos canais do grupo Fox, acessível por cabo.
Não, porém, nos telefilmes que são cozinhados mediante o cruzamento de brutezas com as novas tecnologias utilizadas pela polícia para detecção e posterior castigo dos maus. Vou antes ao encontro de uma série de feitura já não muito recente, «Murder, she wrote», «Crime, disse ela» no título português, onde encontro o uso da inteligência e não da robustez física ou do revólver em punho para a solução dos mistérios.
Para mais, a figura central da série não é um detective musculado mas sim uma escritora, inventora de enredos policiais, que por opção delierada rejeitou viver numa grande metrópole USA, dessas que fascinam os europeus com queda para basbaques, mas sim numa pequena cidade marítima que de algum modo me lembra as povoações ainda piscatórias do litoral português. E tudo isto me agrada e ameniza os meus furores.
Mas a tal escritora precisa, por uma razão ou por outra, de se deslocar por vezes a uma das grandes cidades, Nova Iorque, São Francisco ou qualquer outra, onde fervilham os poderes e os esplendores dos Estados Unidos atuais. É aí que geralmente ocorrem os crimes cuja misteriosa autoria a argúcia, o poder de observação e a experiência decorrente da sua especialidade literária, ela haverá de decifrar.
E, então, a série evidencia, episódio após episódio ainda com relativa discrição, o uso generalizado de diversas formas da corrupção ativa ou passiva que caracteriza grandes empresários, autoridades judiciais, políticos destacados, membros das polícias, todos eles impregnados pela febril avidez por dólares, muitos dólares, num grande pântano onde o recurso ao homicídio floresce como uma consequência natural. Dir-se-ia que a série apostou em fazer a denúncia, ainda que cautelosa, do verdadeiro e dominante perfil daquela América.
E eu, cansado das quotidianas imposturas que pretendem impingir-nos a imagem de uns Estados Unidos como grande casa da liberdade, da democracia e da justiça, olho aquilo e parece-me reconhecer ali um honesto retrato sumário de qualquer coisa que será uma espécie de quartel-general de certas forças.
Das forças que, num outro plano, fazem daquele país indiscutivelmente grande e poderoso o exportador para os quatro cantos do mundo do seu mais característico produto de exportação: o crime sob diversas formas.
E é como se, ingenuamente, sentisse um pouco o sabor reconfortante da desforra.
* Correia da Fonseca é amigo e colaborador de odiario.info.
Seria então uma televisão consciente de que era infratora de regras ainda consensuais e por isso não poucas vezes invocava com algum descaro o tríptico a que em princípio devia obedecer o seu trabalho: informar, cultivar, divertir.
Hoje é manifestamente diferente. E pior. E mais nociva. Multiplicada por quatro canais generalistas e abertos, sem o mínimo indício da má consciência que antes de 74 transportava, injeta nos cidadãos telespectadores o hábito do mau gosto e dos subprodutos mais reles, a avidez pelo consumo, a habituação às diversas formas de brutalidade, o sobranceiro desprezo pela cultura.
Para além, é claro, da empenhada e militante submissão ao sobrecapitalismo imperante que a cada passo propagandeia por caminhos diretos e indiretos.Não surpreenderá, assim, que por vezes me pareça que não suporto muito mais e aproveite uma oportunidade para me escapar em busca de diferentes horizontes televisivos, o que aliás não é fácil, e com frequência peça refúgio ou pelo menos alívio em telefilmes policiais em que se especializa um dos canais do grupo Fox, acessível por cabo.
Não, porém, nos telefilmes que são cozinhados mediante o cruzamento de brutezas com as novas tecnologias utilizadas pela polícia para detecção e posterior castigo dos maus. Vou antes ao encontro de uma série de feitura já não muito recente, «Murder, she wrote», «Crime, disse ela» no título português, onde encontro o uso da inteligência e não da robustez física ou do revólver em punho para a solução dos mistérios.
Para mais, a figura central da série não é um detective musculado mas sim uma escritora, inventora de enredos policiais, que por opção delierada rejeitou viver numa grande metrópole USA, dessas que fascinam os europeus com queda para basbaques, mas sim numa pequena cidade marítima que de algum modo me lembra as povoações ainda piscatórias do litoral português. E tudo isto me agrada e ameniza os meus furores.
Mas a tal escritora precisa, por uma razão ou por outra, de se deslocar por vezes a uma das grandes cidades, Nova Iorque, São Francisco ou qualquer outra, onde fervilham os poderes e os esplendores dos Estados Unidos atuais. É aí que geralmente ocorrem os crimes cuja misteriosa autoria a argúcia, o poder de observação e a experiência decorrente da sua especialidade literária, ela haverá de decifrar.
E, então, a série evidencia, episódio após episódio ainda com relativa discrição, o uso generalizado de diversas formas da corrupção ativa ou passiva que caracteriza grandes empresários, autoridades judiciais, políticos destacados, membros das polícias, todos eles impregnados pela febril avidez por dólares, muitos dólares, num grande pântano onde o recurso ao homicídio floresce como uma consequência natural. Dir-se-ia que a série apostou em fazer a denúncia, ainda que cautelosa, do verdadeiro e dominante perfil daquela América.
E eu, cansado das quotidianas imposturas que pretendem impingir-nos a imagem de uns Estados Unidos como grande casa da liberdade, da democracia e da justiça, olho aquilo e parece-me reconhecer ali um honesto retrato sumário de qualquer coisa que será uma espécie de quartel-general de certas forças.
Das forças que, num outro plano, fazem daquele país indiscutivelmente grande e poderoso o exportador para os quatro cantos do mundo do seu mais característico produto de exportação: o crime sob diversas formas.
E é como se, ingenuamente, sentisse um pouco o sabor reconfortante da desforra.
* Correia da Fonseca é amigo e colaborador de odiario.info.
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