Internacional
Duarte Pereira
O jornalista francês Hubert Beuve-Mery, fundador do Le Monde, costumava insistir
que “a missão do jornalista é saber e dizer o máximo possível”. Ainda há jornais
e jornalistas que seguem esse preceito. Mas cresce o número dos que substituem
qualquer esforço investigador pela reprodução acomodada de versões unilaterais e
distorcidas dos acontecimentos.
A controvérsia sobre o Tibete é um bom exemplo. Livros, reportagens e
documentários repetem, monocordiamente, os relatos e as acusações difundidas
pelos separatistas tibetanos. Não entrevistam as autoridades atuais da região,
nem os monges patriotas que apoiam a unidade da China. Não recorrem às
informações e aos documentos oferecidos pelo governo central do país. Não
consultam especialistas independentes. Se o fizessem, seria obrigados a
reconhecer que a história da China, do Tibete e de suas relações mútuas é muito
diferente da propagada pelos separatistas.
A polêmica envolve três questões básicas. Primeira: o Tibete é um país
independente, invadido e ocupado pelos comunistas, à frente do Exército Popular,
ou faz parte da China há 700 anos, tendo os comunistas apenas cumprido o dever
de libertar e reunificar o conjunto do país? Segunda: antes de 1950, o Tibete
era uma terra pacífica e feliz, governada por monges sábios e desprendidos como
a mítica Shangri-la do novelista britânico James Hilton, ou penava sob um regime
teocrático-feudal, atrasado e cruel? Por último, o que é melhor para as
nacionalidades chinesas e para os povos do mundo nas vésperas do século XXI: a
divisão e o dilaceramento da China, ou a preservação de sua unidade estatal e o
progresso conjunto de suas nacionalidades?
O teto do mundo
A República Popular da China é um país enorme, formado por 23 províncias, cinco
regiões autônomas, uma região especial, Hong Kong, e três municipalidades
subordinadas diretamente ao governo central. O Tibete é uma das regiões
autônomas. Cobre uma superfície de 1 milhão e 200 mil quilômetros quadrados,
aproximadamente a oitava parte do território chinês, e abrange a capital, Lhasa,
seis prefeituras e 76 distritos.
Localizado no sudoeste da China, o Tibete limita-se ao norte com a Região
Autônoma de Xinjiang, ao nordeste com a província de Qinghai, ao leste com a de
Sichuan, ao sudeste com a de Yunnan, e ao sul e ao oeste com os seguintes
países, no sentido horário: Myanma ( antiga Birmânia), Butão, Sikkim (
principado de origem tibetana, anexado pela Índia em 1974), Nepal e Índia.
O Tibete ocupa a maior parte do planalto que leva seu nome, o mais alto de
Terra, com uma elevação média de 4 mil metros. É, por isso, apelidado de Teto do
Mundo. É praticamente cercado por cordilheiras: ao norte, a de Kunlun; ao leste,
a de Tangula; ao sul e ao oeste, a do Himalaia. Nesta última, na fronteira entre
o Tibete, na China, e o Nepal, ergue-se a montanha mais alta do planeta, com
8.848 metros, a Qomolangma Feng, ou “mãe sagrada das águas”, conhecida no
Ocidente como monte Everest. No único intervalo entre as cordilheiras, no limite
com a província de Sichuan, o Tibete é separado pelo rio Jinsha.
Aliás, os rios mais importantes da Ásia nascem no planalto tibetano: para o
leste, os rios Amarelo ( Huang-ho) e Azul ( Yangtze Kiang), os principais da
China; para o sul, o Mekong, que desemboca na costa do Vietnã, e o Yarlung
Zangbo, que passa a chamar-se Brahmaputra na Índia e deságua no golfo de
Bengala; para o oeste, o Indo e o Ganges, os principais da Índia.
É uma região rica em recursos naturais. Conta com enorme variedade de aves e
animais e com mais de 5.700 espécies vegetais, inclusive plantas medicinais de
grande renome, base da medicina tibetana tradicional. Já foram localizadas
jazidas de 70 tipos de minerais e os recursos geotérmicos são abundantes,
chegando a temperatura da água em alguns poços a 92 graus C.
Por sua diversidade, o Tibete pode ser dividido em três zonas naturais. A parte
norte, onde se concentra a criação extensiva de iaques e ovelhas, tem altitude
média de 4.500 metros, clima frio e seco, extensas pradarias e numerosos lagos,
como o famoso Nam Co, o segundo maior lago salgado da China. A área oriental é
constituída por uma série de montanhas elevadas e vales profundos, com a
altitude variando entre 2 mil e 6 mil metros. É a zona mais inóspita. A neve
perpétua nos cumes de suas montanhas é responsável pelo outro apelido, atribuído
ao Tibete, de Terra das Neves. Nos vales do sul, cortados pelos rios Yarlung
Zangbo e afluentes, a altitude média é inferior a 4 mil metros, o clima é
temperado, a precipitação pluvial é copiosa e a vegetação arbórea, exuberante.
Nessa área é que se concentram a população e as atividades agrícolas. É, por
isso, conhecida como o celeiro do planalto.
Apesar da altitude, do ar rarefeito e do clima severo, o planalto tibetano
começou a ser povoado no período neolítico. Por essa época, uma população já
considerável se espalhava nas planícies centrais da China, entre os rios Amarelo
e Yangtze.
China, um país milenar e multinacional
Para deslindar a controvérsia sobre o Tibete, é preciso entender a formação
histórica da China. Trata-se de um país milenar, o único com aproximadamente 4
mil anos de história contínua, e também multinacional, integrado por 56
nacionalidades. A China não é, portanto, uma construção exclusiva da
nacionalidade han, a majoritária. É um produto histórico da luta e do trabalho
conjunto de todas as nacionalidades que a integram. Com uma trajetória tão
longa, a China não podia escapar aos conflitos entre suas dinastias,
nacionalidades e classes. Por mais de uma vez, foi unificada, dividida e
reunificada. Se a convergência prevaleceu e se as nacionalidades chinesas
estreitaram seus vínculos ao longo dos séculos, é porque perceberam, diante das
ameaças exteriores, que só garantiriam sua independência comum e o
desenvolvimento de suas economias e de suas culturas se aprofundassem as
relações de unidade e cooperação.
Os vínculos entre as nacionalidades han e tibetana, por exemplo, remontam a
tempos muito antigos. Uma prova indelével se encontra no idioma das duas
nacionalidades: pertencem à mesma família lingüística, significativamente
classificada como sino-tibetana. O próprio budismo, que iria marcar tão
profundamente a cultura tibetana, foi introduzido na região pelo norte da Índia
e pelo Nepal, mas também pela Mongólia e pela China central. No século VII,
quando as tribos do planalto tibetano formaram seu primeiro Estado unificado, o
reino de Tubo, dois de seus soberanos casaram-se com princesas de origem han,
firmaram uma aliança política com a dinastia Tang, das planícies centrais da
China, e intensificaram o intercâmbio econômico e cultural entre as duas
nacionalidades.
O reino de Tubo desapareceu em meados do século IX, quando o rei Langdama foi
assassinado por fanáticos religiosos. Durante 400 anos, o planalto tibetano foi
sacudido por separatismos e por guerras, com principados e mosteiros lutando
entre si. Por coincidência, na mesma época, as planícies centrais e o sul da
China eram conflagrados por disputas dinásticas intermináveis. Ainda assim, o
intercâmbio entre as duas nacionalidades não se interrompeu, desenvolvendo-se
inclusive uma nova modalidade de comércio, a troca de chá chinês por cavalos
tibetanos. E quando, no século XIII, o mongol Kublai Khan reunificou a China e
fundou a nova e poderosa dinastia Yuan, o Tibete foi incorporado ao Império do
Meio como uma de suas províncias. O italiano Marco Polo, que visitou a corte de
Kublai Khan e registrou as observações de sua viagem, descreve o Tibete como uma
das 12 províncias do império.
O Tibete, parte da China
Desde então, há 700 anos, o Tibete faz parte da China. Assim permaneceu nas
dinastias Ming e Qing, que se seguiram. Quando a República foi proclamada, seu
primeiro presidente Sun Yat-sen, declarou no discurso de posse em primeiro de
janeiro de 1912: “O fundamento desta República baseia-se no povo, que integra
todas as zonas hans, manchus, mongóis, huis e tibetanas num único Estado”. A
República Popular, proclamada em 1949, estendeu o reconhecimento às demais
nacionalidades.
A subordinação do Tibete aos sucessivos governos da China, desde o século XIII,
evidencia-se na presença de representantes do poder central em Lhasa; na
nomeação e julgamento de funcionários locais; no envio de tropas para defender
as fronteiras e manter a ordem interna; na condução centralizada das relações
exteriores; na imposição de leis, decretos e regulamentos; na realização de
censos demográficos; na cobrança de tributos; na redefinição de órgãos e
divisões administrativas internas. É importante ressaltar também que, desde o
século XIII, nenhum país reconhece o Tibete como um Estado separado da China.
Outra prova da incorporação do Tibete à China é a participação de delegados
tibetanos em órgãos executivos e legislativos do poder central, desde a dinastia
Yuan. O próprio entrelaçamento entre o poder político e o poder religioso no
Tibete nasceu com sua integração na China, quando Kublai Khan, para facilitar a
pacificação do planalto tibetano, aliou-se com a influente seita budista de
Sagya, tendo o cuidado, no entanto, de repartir cargos e títulos equitativamente
entre lamas e nobres leigos. Durante a dinastia Ming, cresceu a influência da
seita Kargyu, ou Branca, sobrepujada durante a dinastia Qing pela seita Gelug,
ou Amarela, quando os abades dos mosteiros de Drepung, em Lhasa, e de
Trashilhunpo, em Xigaze, desta seita, tiveram seus títulos e atribuições de
Dalai-Lama e de Panchen-Erdeni confirmados pela corte imperial. Finalmente, em
meados do século XVIII, a corte Qing determinou que o sétimo Dalai-Lama
assumisse a liderança do governo local do Tibete. Porque o Dalai-Lama e o
Panchen-Erdeni acumulam funções religiosas e políticas, a escolha de seus
sucessores passou a depender de confirmação final pelo governo central da China.
A escolha e a entronização do atual Dalai-Lama foram confirmadas pelo governo
nacionalista da República da China em 1940.
É sabido que a China passou por fases de divisão e enfraquecimento do poder
central, quando os governos locais, não só o do Tibete, adquiriam grande
autonomia, muitas vezes estimulados por potências estrangeiras, interessadas em
arrebatar fatias do território chinês. Foi assim que a Rússia czarista ocupou
uma parte da Mongólia e a dividiu em Mongólia Exterior e Mongólia Interior. Ou
que o Japão invadiu a Mandchúria e tentou restabelecer, sob seu controle, a
dinastia Manchu dos Qing, derrubada pelo movimento republicano. Da mesma forma,
a Grã-Bretanha, já senhora da Índia, do Butão do Sikkim e do Nepal, combinou
seus ataques ao litoral chinês com a invasão do Tibete em 1888 e 1903 e com as
tentativas de impor à China o Tratado de Lhasa e a Convenção de Simla. A
propaganda separatista, tão estridente contra a China, silencia sobre essas
agressões britânicas e os saques perpetrados pelas tropas de Sua Majestade,
assim como não menciona a tentativa indiana de invocar a Convenção de Simla para
arrebatar da soberania chinesa uma parcela do planalto tibetano, o que levou em
1962 a um conflito fronteiriço entre os dois países.
A ocupação britânica do Tibete não vingou, mas a grande potência imperialista
arrancou concessões e passou a estimular, entre lamas e nobres tibetanos, um
movimento pela independência, isto é, pela separação do Tibete, para colocá-lo
sob controle ocidental. Após a Segunda Guerra Mundial e com a avanço da
revolução popular na China, os Estados Unidos aderiram aos intentos britânicos,
reforçando o movimento separatista com agentes, armas, treinamento, propaganda e
apoio diplomático. O Partido Comunista e o governo popular, instalado em Pequim
em primeiro de outubro de 1949, tinham o dever, portanto de concluir a
libertação e a reunificação da China, defendendo, como no passado, as fronteiras
históricas do país.
Ainda assim, não se pode acusá-los de agir precipitadamente. Entre outubro de
1949 e outubro de 1950, fizeram repetidas gestões para que o governo local
negociasse as condições de libertação pacífica do Tibete. Mas o governo
tibetano, dominado pela facção pró-ocidental, preferiu concentrar tropas na
margem do rio Jingsha. Diante da intransigência, o governo central determinou
que o exército popular transpusesse o rio e entrasse no Tibete, travando-se a
batalha de Qamdo entre 6 e 24 de outubro de 1950, a única na libertação do
Tibete. Derrotadas as tropas locais, o Exército Popular interrompeu seu avanço,
enquanto o governo de Pequim insistia nas negociações.
O confronto, no governo e na classe dominate do Tibete, entre a facção
pró-ocidental e o setor favorável à negociação se aprofundou, o regente foi
afastado, o décimo quarto Dalai-Lama, ainda menor de idade, assumiu a liderança
e nomeou negociadores. Em contrapartida, retirou-se para Yadong, na fronteira
com a Índia. Alguns meses depois, em 23 de maio de 1951, em Pequim, os delegados
do governo central e local assinaram o Acordo dos 17 Artigos, que reconhecia a
unidade da China e a autoridade do governo popular sobre todo o território
nacional, mantendo temporariamente os governantes e as instituições do Tibete
até que fosse negociada a reforma democrática pacífica da região. Em 24 de
outubro de 1951, o décimo quarto Dalai-Lama telegrafou ao presidente Mao Zedong,
aprovando pessoalmente o acordo, e retornou a Lhasa. O Exército Popular entrou
na capital tibetana em 26 de outubro de 1951, após o regresso do Dalai-Lama e
com seu consentimento. O montanhista austríaco e militante nazista Heinrich
Harrer, autor de Sete anos no Tibete, geralmente muito tendencioso em seus
relatos, reconhece: “Deve-se dizer que durante essa guerra as tropas chinesas se
mostraram disciplinadas e tolerantes e os tibetanso que foram capturados e
depois libertados diziam que haviam sido bem tratados.”
Em 1954, o décimo quarto Dalai-Lama participou da primeira Assembléia Nacional
Popular da China, que elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido
eleitos um dos vice-presidentes do Comitê Permanente dessa Assembléia. Na
ocasião, pronunciou um discurso afirmando: “Os rumores de que o Partido
Comunista da China e o governo popular central arruinariam a religião do Tibete,
foram refutados. O povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças
religiosas.” Em 1956, assumiu a presidência do comitê provisório encarregado de
organizar a região autônoma do Tibete. As relações entre os governos central e
local estavam, portanto, normalizadas.
O levante contra a reforma democrática
O conflito ressurgiu quando se cogitou em promover a reforma democrática do
Tibete, separando a religião do Estado, abolindo a servidão rural e a escravidão
doméstica e redistribuindo a propriedade das terras e dos rebanhos, monopolizada
pela aristocracia civil e pelos mosteiros. A facção pró-ocidental,
aproveitando-se da insatisfação entre lamas e nobres, retomou a ofensiva.
Agitando as bandeiras separatista e religiosa, e apoiada pela CIA cada vez mais
desinibidamente, como hoje se reconhece, essa facção fundou uma organização
política, a “Quatro Rios e Seis Montanhas”, e uma organização militar, o
“Exército de Defesa da Religião”, e iniciou em 1956 ataques armados a
funcionários e prédios públicos, a obras de infra-estrutura e até mesmo a
tibetanos que apoiassem o movimento democratizador.
Reagindo com prudência, o goverrno central propôs adiar a reforma democrática,
até que se chegasse a um acordo satisfatório sobre prazos e requisitos para sua
implementação. Mas a facção contra-revolucionária intensificou os ataques e,
aproveitando-se de um festival religioso em Lhasa, desfechou uma insurreição na
capital em 10 de março de 1959, retirou o Dalai-Lama para a Índia e generalizou
os conflitos. O governo central considerou, então, rompido o acordo de 1951,
destituiu o governo teocrático, transferiu suas atribuições para o Comitê
Organizador da Região Autônoma e determinou ao Exército Popular que
restabelecesse a ordem no planalto.
A guerra que se seguiu, entre 1959 e 1961, não se travou entre dois países, mas
entre duas coalisões sociais. De um lado, as forças imperialistas, interessadas
na divisão da China, e a facção de lamas e nobres empenhados na preservação do
regime teocrático-feudal; de outro lado, o governo popular central e os monges,
nobres, servos e escravos comprometidos com a unidade nacional da China e com a
reforma democrática do Tibete. Não foi uma guerra nacional, nem religiosa, mas
um conflito semelhante à guerra civil que opôs, nos Estados Unidos, o norte
abolicionista ao Sul escravocrata. Ninguém recusa ao governo de Washington o
direito de ter recorrido às armas para salvaguardar a unidade nacional e
garantir o fim da escravidão.
Muitos têm dificuldade para entender a natureza social do conflito, porque não
prestam atenção no regime político-econômico que vigorava no Tibete e nas áreas
tibetanas das províncias vizinhas. Aliás, o décimo quarto Dalai-Lama e seus
adeptos falam o menos possível do regime antigo. O feudalismo se generalizou
após o colapso do reino de Tubo, em meados do século IX; a teoria budista se
consolidou em meados do século XVIII. Mas, ainda em 1959, os lamas da camada
superior, os nobres leigos e seus agentes representavam 5% da população; os
servos e os escravos correspondiam a 95%. Os primeiros, especialmente os membros
das 400 famílias mais importantes, viviam no fausto; a maioria dos lavradores,
pastores e serviçais sobrevivia em extrema penúria. O contraste entre ricos e
pobres penetrava nos próprios mosteiros, conforme descreve uma testemunha
insuspeita, o décimo quarto Dalai-Lama, em sua autobiografia.
Das terras agriculturáveis, segundo levantamento de junho de 1959, o governo
local detinha e administrava diretamente 38,9%; os mosteiros, 36,8%; os
aristocratas leigos, 24%. A pequenos camponeses cabiam os 0,3% restantes. Os
nobres e os mosteiros possuiam também a maior parte dos rebanhos. Para lavrar as
terras e cuidar dos rebanhos, nobres, mosteiros e funcionários recorriam ao
trabalho de servos.
Para ter acesso à terra arável e às pastagens, os servos, 90% da população, eram
forçados a pagar aos nobres e mosteiros uma renda, principalmente sob a forma de
corvéia ou renda em trabalho, secundariamente sob a forma de renda em produtos,
e às vezes em dinheiro. Arcavam também com pesados tributos e taxas, pagos em
serviços e em dinheiro. Sem recursos suficientes, endividavam-se com os nobres
e, principalmente, com os mosteiros, pagando elevados juros. Se morriam sem
saldar a dívida, ela passava aos descendentes ou aos vizinhos.
Para os escravos, 5% da população, provavelmente uma sobrevivência do passado
pré-feudal, ficavam os serviços domésticos e públicos mais pesados, como a
limpeza, o despejo de fezes, o transporte de carga e o transporte de nobres e
funcionários, em liteiras ou nas próprias costas. Os filhos de servos e escravos
não eram registrados em cartórios públicos, mas nos livros de seus senhores, a
quem competia também autorizar os casamentos. Servos e escravos podiam ser
trocados, doados, emprestados ou mesmo vendidos. Para os pobres, não havia
hospitais, nem escolas. As guerras e epidemias dizimaram a população.
As leis confirmavam essa estrutura desigual, dividindo a população em três
estratos e nove graus, com direitos e deveres distintos. Não havia, portanto,
igualdade jurídica, nem mesmo para as mulheres do estrato dominante. Se um nobre
matava um servo ou um escravo, pagava uma indenização. Mas, para servos e
escravos que agredissem um nobre ou furtassem um bem, os códigos previam penas
cruéis, como espancamentos brutais, mutilação de mãos ou pés, extração dos
olhos. Até entre os monges, a disciplina era mantida à custa de chicotes e
surras, como relata o Dalai-Lama em sua autobiografia. Além de uma prisão
pública e precária em Lhasa, havia guardas, tribunais e cárceres privados nos
mosteiros e nas grandes propriedades.
Os monges da camada superior e os nobres mais influentes monopolizavam os
direitos políticos. O Dalai-Lama encabeçava o governo desde meados do século
XVIII. Os demais cargos eram repartidos entre lamas e nobres leigos. A Seita
Amarela, do Dalai-Lama, era privilegiada em relação às demais seitas e o budismo
tibetano, em relação às demais religiões.
O Tibete antigo não tinha nada de idílico, portanto. É espantoso que se invoquem
os “direitos humanos” para defender esse regime opressivo e cruel, em que a
maioria da população, formada por servos e escravos, não gozava de liberdade
pessoal, nem dispunha de qualquer direito político.
A unidade, garantia do avanço
Rompido o acordo de 1951 pelo décimo quarto Dalai-Lama e seus adeptos
separatistas, o governo central aboliu o regime teocrático, revogou as leis e
códigos desiguais, fechou os tribunais e cárceres privados, emancipou os servos
e os escravos, cancelou as dívidas que os sufocavam e procedeu à redistribuição
gradativa e cuidadosa das terras e dos rebanhos, indenizando os proprietários
que apoiassem a reforma democrática. Restabelecida a ordem e concluída a reforma
agrária, foi iniciada a implantação do sistema de assembléias e comitês
populares, com a eleição das assembléias distritais em 1964. Estas elegeram as
assembléias municipais, que por sua vez escolheram a Assembléia Regional Popular
em 1965, instituindo-se a Região Autônoma do Tibete. Dos 301 delegados à
primeira assembléia, 226 eram tibetanos, a maioria servos e escravos
emancipados, mas havia também monges, ex-nobres patriotas e, pela primeira vez
em cargos públicos, mulheres. Desde então, a Região Autônoma do Tibete já teve
quatro presidentes leigos, todos tibetanos.
Os erros cometidos pela chamada Revolução Cultural entre 1966 e 1976, no Tibete
como em toda a China, suscitaram novos atritos, de que se aproveitaram os
separatistas para promover distúrbios violentos em Lhasa, entre 1987 e 1989,
numa iniciativa orquestrada com as manifestações antigovernamentais em Pequim e
com a crise dos países socialistas na Europa Oriental. Mas o Partido Comunista e
o governo popular da China venceram essas duras provas, preservando as
conquistas revolucionárias, corrigindo os erros e restabelecendo as políticas de
liberdade religiosa, de frente única com todos os setores patrióticos e de
respeito mútuo entre as nacionalidades. É claro que a China ainda é um país
pobre e que o Tibete é uma de suas regiões menos desenvolvidas. É indiscutível
também que ainda existe muito que aprender no aprimoramento das democracias
socialistas e no desafio de conjugar a preservação das culturas tradicionais com
o desenvolvimento de culturas novas e progressistas. Contudo, quem investiga com
isenção, não pode deixar de reconhecer os avanços políticos, econômicos e
culturais obtidos com a libertação e a reforma do Tibete nas últimas décadas.
Essa experiência positiva, contraposta ao colapso da União Soviética e ao
dilaceramento da Iugoslávia, confirma que a união, não a divisão, é que pode
assegurar o desenvolvimento conjunto das nacionalidades integrantes de países
como a China. Rompida a unidade, abandonado o caminho socialista, na União
Soviética e na Iugoslávia, perderam-se também as conquistas democráticas,
reacenderam-se as chamas de conflitos étnicos e religiosos, reabriu-se o perigo
de propagação de guerras devastadoras.
Certo estava o nono Panchen Erdeni, o segundo lama na hierarquia do budismo
tibetano, quando escreveu em 1929: “Por suas relações históricas e geográficas,
nem o Tibete pode ser independente da China, nem a China do Tibete. Assim, ambos
serão beneficiados se permanecerem unidos, enquanto a separação prejudicará a
ambos.”
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Duarte Pereira é jornalista.
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