* Odete Santos
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A história reporta-se ao século XVI numa aldeia perto de Florença onde um homem se pôs a tocar os sinos a finados, num dia em que ninguém morrera.
Perguntado sobre os motivos que o tinham levado a tão insólita atitude, teria respondido:
«Toco pela Justiça e pelo Direito que morreram.»
Não seremos tão radicais.
Contribuição para a reflexão realizada no passado dia 3 de Outubro, no teatro, promovida pela Associação para a Defesa dos Direitos e Liberdades Democráticas – Fronteiras – que teve lugar na Barraca, em Lisboa. A iniciativa debruçou-se especialmente sobre os problemas originados para a liberdade e segurança dos cidadãos com a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal e a limitação crescente do acesso pela generalidade dos cidadãos ao direito e à justiça.
Aliás o lema com que iniciámos a apresentação da nossa Associação, contém palavras de esperança que Nazim Hikmet tão bem sintetizou num poema:
«Mas é para a frente que vamos, não é verdade? É para a frente que vamos.»
Contudo, o que se passa na área da Justiça, é motivo para sérias preocupações.
A reforma do Código do Processo Penal desencadeou um toque a rebate, que bem prova que os cidadãos não abdicam do seu sentido crítico apesar de uma bem urdida teia que lhes é reservada, neste caso, pelo Pacto da Justiça que teve como protagonistas o PS e o PSD.
Enquanto o PS se aprimora em medidas arbitrárias contra a propaganda política, reprimindo sobretudo jovens, preparou à moda da Santa da Ladeira milagrosas receitas, para poupar ainda mais na área da Justiça e para a colocar sob a sombra benfazeja do poder político.
E sempre que alguém avança com alguma bem fundada crítica é certo e sabido que das bandas do Governo e da sua maioria, um ruído ensurdecedor faz lembrar que «ninguém dá lições ao PS».
A reforma do processo penal
Afirma-se que a mesma foi congeminada há muito tempo.
Pasma-se então com o produto de tão profundas congeminações.
É que, desde evidentes e clamorosos erros de palmatória, até à fundamentação em falsas asserções e às consequências já sofridas pela máquina judiciária (e ainda os embates que estão para vir) de tudo se compõe esta reforma do processo penal.
Com efeito, a respeito da prisão preventiva, o Governo propôs à Assembleia, induzindo-a em erro, um regime especial e mais grave de prisão preventiva para algumas espécies de crimes. Mencionando expressamente os referidos nos artigos 312.º n.º1 e 315.º n.º 2 do Código Penal, sendo certo que estes artigos já foram revogados em 2003. De resto na republicação do Código resultante das alterações aprovadas apenas uma semana antes da aprovação do Código do Processo Penal consta expressamente que tais artigos foram revogados pela Lei 100/2003. Qual Fénix renasceram das cinzas uma semana depois, e ninguém sabe como ou porquê.
Mas ainda de acordo com o estudo da procuradora Odete Maria de Oliveira a que nos estamos a reportar, outros crimes expressamente referidos como elevando para o dobro o prazo da prisão preventiva, não admitem essa medida de coacção e outros nem sempre a admitem.
A isto conduz a arrogância de quem se julga detentor da verdade absoluta por exercer o poder absoluto.
Aliás, desconformidades semelhantes encontramo-las na proposta de lei para constituição de Bancos de ADN, onde se refere que constará expressamente desses bancos o ADN dos condenados a uma pena concreta de 3 ou mais anos de prisão ainda que esta tenha sido substituída. Ora, compulsando o Código Penal, verificamos que apenas num caso (crime cometido no exercício de profissão, função ou actividade, públicas ou privadas) pode ser substituída uma pena de prisão concreta de 3 anos. Todas as outras penas só podem ser substituídas nuns casos quando a pena concreta for de 1 ano, e noutros de 2 anos. Ou será que não é erro, e o que o Governo quer «fichar» são os trabalhadores, ainda que o crime não tenha a ver com as funções?
Mas não param aqui as imperfeições do legislador Governo e do legislador da maioria.
Se recorrermos à lei de política criminal veremos que esses legisladores nem sequer sabem que a prisão por dias livres é uma pena privativa da liberdade.
Acresce ainda que os últimos indeferimentos dos pedidos de habeas corpus requeridos por condenados que ainda não tinham sido notificados do último acórdão, no dia 14 de Setembro, provam que não havia necessidade de arrostar com mais pedidos de habeas corpus se se tivesse cuidado da redacção de alguns artigos (ou, já agora, se a vacatio legis do Código fosse como a do Código do Processo Penal de 1987- cerca de 1 ano.
A prisão preventiva
Durante anos e anos quiseram convencer a opinião pública de que Portugal era o país com maior número de presos preventivos.
Contudo, a bota nunca bateu bem com a perdigota.
É que, se por um lado, essa era a voz corrente nos meios políticos, por outro lado, as forças policiais queixavam-se de que os Tribunais libertavam os presos por elas detidos.
E sem prejuízo de melhorias que eram necessárias, a verdade é que a vozearia do Governo e do legislador da maioria (a vozearia foi sempre o estratagema usado para que não se ouvisse a razão das críticas) essa vozearia não quis deixar ouvir os dados concretos sobre o número de presos preventivos em Portugal
E assim, dúvidas não parecem restar, de que na base das proclamadas «boas intenções» do legislador da maioria estão propósitos meramente economicistas.
O direito à liberdade e à segurança
A Constituição de Abril proclama no seu artigo 27.º:
Todos têm direito à liberdade e segurança
E estes todos são não só aqueles injustamente perseguidos penalmente, como aqueles a que não pode ser aplicada prisão preventiva por desproporcionada relativamente ao crime cometido, como os milhões de cidadãos que não cometeram qualquer crime.
É justo que estes se alarmem porque são restituídos à liberdade pessoas que, na vigência da lei antiga, cometeram crimes graves. Sentem em perigo a sua liberdade e segurança.
Mas a segurança dos cidadãos também se faz através da reinserção social dos reclusos.
A reinserção social é aliás proclamada no Código Penal como uma finalidade das penas.
E é tanto do interesse dos reclusos essa reinserção, como do interesse dos milhões de cidadãos titulares do direito constitucional atrás referido.
Porque com a reinserção social se previne a recidiva no crime.
1 - Ou através da mediação penal permitida para crimes graves;
2 - Ou através da imposição ao Ministério Público por via da lei de política criminal do dever de pedir a aplicação de penas não privativas da liberdade, mesmo quando o arguido tenha cometido vários crimes, por exemplo de furto, e da imposição ao Ministério Público do dever de recorrer em favor do arguido, quando o Juiz não tenha aceite o requerimento para aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Ou quando se proíbe o Ministério Público de recorrer quando o Juiz não decretar a prisão preventiva
3 - Ou através da aplicação do novo Código do Processo Penal a pessoas já condenadas por decisão transitada em julgado, sempre que o regime daquele seja mais favorável. É isto que consta de dois novos artigos, um incerto no Código Penal e outro no Código do processo Penal..E isto para quê?
Para que pessoas condenadas a uma pena concreta não superior a 5 anos, e em cumprimento da mesma possam requerer novo julgamento para que a pena seja suspensa.
Este é um facto inaudito que nunca sucedeu no ordenamento jurídico português.
4 - Ou através da flexibilização do regime de liberdade condicional, para que os reclusos saíam mais depressa das prisões, ainda que se não possa garantir a sua ressocialização.Poupar o mais possível, ainda que à custa da liberdade e segurança dos cidadãos, e arrecadar o mais possível, o que o Governo faz com maestria ao elevar o quantitativo diário da pena de multa em 500%.
Perguntar-se-á, e com razão, por que é que foi gasto uma parte do Orçamento do Estado com 2 estudos sobre a reforma das prisões (um promovido no tempo do Governo PS) e outro no tempo do Governo PSD/CDS, se o resultado pretendido era, afinal, o que agora transparece de vários diplomas?
Argumentos de régua e esquadro
O legislador da maioria pôs-se a fazer contas de cabeça, e como haveria uma diferença para menos, no tempo da prisão preventiva, concluiu que os presos libertos se não fossem soltos no dia 15 de Setembro, seriam soltos daí a dois meses.
E até afirmou, sem esclarecer, que até tinham aumentado, nalguns casos, o tempo da prisão preventiva.
Ora, pergunta-se: Que provas concretas nos fornecem de que isso iria acontecer? O Supremo Tribunal de Justiça poderia em dois meses inscrever na Tabela para Julgamento, o recurso dos arguidos que cometeram crimes graves contra o casal inglês.
O Ministério Público deduziu acusação contra um arguido que detinha em sua casa um arsenal de armamento, impedindo a sua libertação. Se calhar à custa da promoção de diligências de prova, o que pode repercutir-se no julgamento.
Quanto ao endurecimento da prisão preventiva em certos casos, está já esclarecido que não se aplica aos processos anteriores, por ser o Código velho o mais favorável. Mas é também o Código Velho que não permitiu a libertação de arguidos, pois que o aumento da prisão preventiva apenas se aplica aos casos de confirmação da sentença em sede de recurso. E não ao período anterior.
A marca de classe
Não se deixará de referir que os poderosos precisavam, como do pão para a boca da alteração que conseguiram relativamente ao segredo de justiça. Para, mais facilmente, inutilizarem uma investigação na área da criminalidade económico.
Sendo parcos os meios para a investigação deste tipo de crimes, é óbvio que estão em risco investigações dos chamados crimes de colarinho branco.
Mas a marca do passado perpassa ainda pelo regime da publicidade das escutas telefónicas, que cerceia o direito à informação e a ser informado, que é o mesmo que dizer, que cerceia direitos dos jornalistas.
O Governo deitou-se no divã do psicanalista, e confessou-se através deste Código.
E o mais que adiante se ouvirá…
Estão na forja outros diplomas que contêm aspectos de extraordinária gravidade, e que desferem ataques à autonomia do Ministério Público e aos Tribunais.
A Lei da organização criminal que atrás se refere atinge com as primeiras saraivadas aquela autonomia e a independência dos Tribunais.
A proposta de Lei Orgânica da Polícia Judiciária omite a fiscalização processual da Polícia Judiciária pelo Ministério Público.
A Lei de organização da investigação criminal introduz uma nova eminência parda no mecanismo, o Secretário Geral da Segurança Interna, da confiança e na dependência do Primeiro Ministro, com funções nada transparentes, entre as quais a de repartir os meios destinados à investigação criminal.
E a Justiça sem meios, ou sem meios suficientes, pode justificar um toque a rebate.
E depois de tudo isto, não haverá quem proceda à recolha do ADN do Governo, e de quem com ele pactua, para que conste de um Banco, onde armazenemos os nossos pesadelos?
(1) Extracto de um editorial do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que relata uma parte da intervenção (uma história) proferida pelo prémio Nobel José Saramago no Congresso do organismo espanhol que congrega os magistrados do Ministério de Espanha.
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