Correio da Manhã
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A moda veio para ficar. Na ausência de uma política responsável e eficaz de melhoramento do serviço público da justiça, com medidas acertivas que ousem atacar, de vez, a morosidade no funcionamento da justiça, o que temos é o recurso sistemático à sua privatização.
O processo de desjudicialização da justiça, ou melhor da sua privatização, constitui um perigo para os fundamentos de uma justiça democrática, para os direitos das pessoas e representa a completa falência de uma das funções vitais do Estado. Ir neste caminho é reconhecer a incompetência do Estado, que assim se desobriga desta tarefa, é atirar a toalha ao tapete.
A justiça privada já teve a sua vida na história dos povos e com resultados muito pouco abonatórios. A inoperância do Estado em debelar a morosidade da justiça não pode levar à sua desjudicialização, sacrificando os direitos e garantias do cidadão. Sendo a justiça um valor superior do Estado de Direito só pode ser garantida através dos tribunais. Porém, o que hoje está a acontecer é a recusa do Estado em fazer justiça nos tribunais, substituindo o tribunal por instâncias não soberanas ou privadas, que não são isentas, imparciais e independentes.
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A desjudicialização da acção executiva (não esquecer que a acção executiva é um processo muito intrusivo na privacidade das pessoas: veja-se a penhora com remoção dos bens) tem impedido que o cidadão possa executar o seu direito e receber o seu crédito. São milhares as acções executivas que estão paradas nas mãos dos solicitadores de execução ou nas secretarias. A privatização do processo de inventário, para os cartórios notariais, é das medidas mais insanas de que há memória. Veremos o que acontece com a partilha de heranças fora dos tribunais entre herdeiros desavindos. A privatização do direito de família e a prática de muitos actos que contendem com direitos fundamentais dos cidadãos, praticados em conservatórias, são tudo medidas que contrariam a existência de um Estado civilizado.
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O recurso a instâncias não formais de resolução de conflitos é perigoso. Como não se conseguem resolver os problemas no interior do sistema, entrega-se nas mãos de privados actos jurisdicionais da competência do juiz.
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Mas tão grave quanto a desjudicialização formal é a desjudicialização substancial, pautada por um discurso de permanente desligitimação do Poder Judicial.
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O Estado deve procurar fazer mais e melhor justiça e não apenas preocupar-se em "aliviar" e "descongestionar" os tribunais. Como Antígona: "A justiça não escrita, mas "inscrita" na alma humana contra a legalidade prescritiva do despotismo de Creonte".
Rui Rangel, Juiz Desembargador
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