- Guilherme da Fonseca (*)
Num tempo político, como o actual, em que se vai viver uma previsível revisão constitucional, que será, então, a oitava, o risco de a Assembleia da República (AR), com poderes de revisão constitucional ordinária, mexer de novo no texto da Lei Fundamental, já tantas vezes alterado, é um risco real e até se ouve falar em «refundação» desse texto.
Por isso, é altura de defender vigorosamente a Constituição da República Portuguesa (CRP) e oferecer resistência a essa tal «refundação», tomando todo o tipo de iniciativas junto da AR, mesmo iniciativas isoladas dos cidadãos, para prevenir o risco e, a começar, há que chamar a atenção para alguns aspectos positivos da CRP, que deverão considerar-se irredutivelmente intocáveis.
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Atrevo-me a optar – e é uma opção parcelar – pelos seguintes aspectos:
1. O primeiro é a própria existência da CRP escrita, nascida com o 25 de Abril de 1974, na senda de tradição constitucional do nosso País de quase 200 anos (a primeira Constituição é da era monárquica, do ano 1822, quando se impôs o liberalismo).
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Mal seria, aliás, que não resultasse da Revolução do 25 de Abril uma assembleia constituinte, eleita com voto livre, directo, secreto e universal do Povo, correspondendo aos anseios dos cidadãos, para substituir a Constituição Política de 1933, de má memória, que vigorou mais de quarenta anos, o tempo da ditadura fascista de Salazar e Marcelo Caetano, sem liberdades e com polícia e tribunais políticos.
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E, em boa hora, menos de dois anos sobre o 25 de Abril, os deputados constituintes elaboraram a Constituição da República Portuguesa de 1976. E dela fizeram constar um Preâmbulo, que é um registo histórico que tem merecido larga aceitação, devendo, por isso mesmo, manter-se.
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Foi um período, o da feitura da Constituição, cheio de peripécias, com largo e louvável esforço de todos os deputados. Houve, aliás, nesse processo, o pormenor singular de chegarem à AR inúmeros papéis/documentos, provindos de vários quadrantes e até de simples cidadãos, com propostas, sugestões, críticas, atinentes à Constituição que estava sob feitura.
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Se tais materiais ainda existem, eventualmente, nos arquivos da AR, seria interessante a sua publicação, para serem divulgados.
2. O segundo aspecto tem a ver com a vertente dos direitos fundamentais, no sentido mais abrangente possível, com particular incidência na Parte I da CRP, destacando-se o núcleo dos direitos pessoais, dos direitos de participação política e dos direitos dos trabalhadores, preenchendo o Título II dessa Parte I. Sem esquecer o universo dos direitos económicos, sociais e culturais, dispersos pelo Título III da mesma Parte I, e que são também direitos fundamentais.
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Mas não só, pois direitos fundamentais e direitos de natureza análoga – uns e outros com a mesma força jurídica, nos termos da norma do art.º 18.º da CRP – estão espalhados por outras partes da CRP. Basta pensar no direito à justiça (art.º 20.º); no direito de resistência (art.º 21.º); no direito à justa indemnização, incluindo a indemnização por danos decorrentes do exercício dos poderes públicos (art.ºs 22.º, 62.º, n.º 2, e 83.º); no direito a não pagar impostos, por exemplo, se não forem criados por lei ou tiverem carácter retroactivo (art.º 103.º), e nos direitos dos administrados (art.º 268.º).
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E pode ainda acrescentar-se a elegibilidade para Presidente da República e para deputado à Assembleia da República (art.ºs 122.º e 150.º), para falar só destes cargos electivos para órgãos de soberania.
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É este sentido abrangente que leva a descobrir na CRP distintas sub-constituições, como sejam, e sem querer ser expositivo, a constituição penal, a constituição laboral, a constituição económica, a constituição financeira, a constituição administrativa.
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Tudo isto me leva a afirmar, de modo positivo, que a CRP, aliás, iluminada pelas proclamações solenes que se extraem das normas dos seus art.ºs 1.º e 2.º – verdadeiros pilares da nossa República – é um texto modelar na vertente dos direitos fundamentais, em especial os direitos fundamentais de liberdade.
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São pilares no sentido de uma «República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana», com empenhamento «na construção de uma sociedade livre, justa e solidária» (art.º 1.º), uma República com um modelo de Estado de direito democrático, visando, sobretudo, o «pluralismo de expressão e organização política democráticos», a garantia de «efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», a «separação e interdependência de poderes» e «a realização da democracia económica, social e cultural», com «aprofundamento da democracia participativa» (art.º 2.º).
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É claro que a prática, no dia a dia do cidadão, pode ser outra, acontecendo, como é conhecido, os desvios, subversões, senão mesmo aniquilamentos dos direitos fundamentais, mas isto é tema para ser tratado noutra sede, a da operatividade/concretização desses direitos, conjuntamente com o fenómeno corrente da intimidação, vinda de muitos lados, com o efeito de desmotivar os cidadãos a exercer direitos. É com um alcance e uma intensidade tais que pode afirmar-se, sem receio, não ter paralelo em termos de direito constitucional comparado, significando um enorme avanço relativamente aos anteriores textos constitucionais portugueses.
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Enfim, um texto constitucional progressista, que todos nós temos o dever de defender, compreendendo nessa luta a defesa do Estado Social, que pode ficar muito ameaçado com os projectos de revisão constitucional apresentados ou a apresentar.
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Devem, pois, ser constantemente lembrados princípios tão fundamentais que se colhem da CRP, como sejam, entre outros, o princípio da universalidade (art.º 12.º), o princípio da igualdade (art.º 13.º), o princípio da aplicabilidade directa e da vinculação das entidades públicas e privadas (art.º 18.º, n.º 1) e o princípio da proporcionalidade (art.º 18.º, n.º 2, e 272.º, n.º 2).
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Depois, não podem esquecer-se normas tão fundamentais, como sejam, num breve e reduzido apontamento, as dos art.ºs 24.º e 25.º (direito à vida e integridade pessoal), as da constituição penal, começando pelo art.º 27.º, as dos art.ºs 37.º e 38.º (liberdade de expressão e liberdade de imprensa), a par com as dos art.ºs 41.º e 45.º (direito de reunião e manifestação), as da constituição laboral. Tudo significando uma aquisição histórica, que devemos ao 25 de Abril, no patamar constitucional, e que não queremos acreditar que saia beliscada com a próxima revisão constitucional e, muito menos, eliminada.
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É todo este mundo ou universo de direitos fundamentais e de direitos de natureza análoga que tem de ser preservado. Ou até melhorado, se se quiser aproveitar a revisão constitucional, que, aliás, não é irremediável.
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Enfim, toda a luta em defesa da CRP, em especial em época como é a época presente, com ameaças veladas dos sectores da direita, tem de ter presente a preocupação de preservar a tal aquisição histórica do reduto dos direitos fundamentais e dos direitos de natureza análoga.
3. Por último, há também outras vertentes da CRP que podem olhar-se como soluções positivas.
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É, desde logo, o caso dos sectores de propriedade dos meios de produção (art.º 82.º), da definição dos objectivos da política agrícola (art.º 93.º) e dos sistema fiscal e dos impostos (art.ºs 103.º e 104.º).
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É também o caso da justiça constitucional, implementada com a revisão constitucional de 1982, embora com antecedentes na Comissão Constitucional, como órgão que funcionou junto do Conselho da Revolução.
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É um modelo da nossa justiça que, embora já figurasse, com diferente perspectiva, nos anteriores constituições (a de 1911 e a de 1933), passou sempre, na prática, ao lado dos tribunais, pois os operadores judiciários nunca foram sensíveis ao controlo das normas jurídicas face à CRP.
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E, depois, também não havia um Tribunal Constitucional, como órgão concentrado de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas. Foi um tempo de um controlo difuso da constitucionalidade que, na prática, verdadeiramente não chegou a funcionar.
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Também há que destacar o caso da extinção dos tribunais militares, que passaram a ser só reconhecidos em tempo de guerra (art.º 213.º).
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Outro sinal positivo da CRP tem a ver com o estatuto de independência e irresponsabilidade dos juízes (art.º 216.º), com o sistema de auto-governo das magistraturas, por via do Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (art.º 217.º), e com o quadro de autonomia do Ministério Público, que inclui um Conselho Superior do Ministério Público (art.ºs 219.º e 220.º).
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Por fim, e não querendo ser exaustivo, há que apontar o quadro constitucional do regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, ocupando o título da CRP dedicado às Regiões Autónomas (o Título VII), com um sentido vincadamente autonómico, a bem das populações insulares, que assenta na cooperação dos órgãos de soberania com os órgãos de governo próprio daquelas Regiões.
* Juiz-Conselheiro do TC jubilado
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Avante 2010.11.02
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