(...) Num ápice o [Café] Arcada [Évora] enche‑se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Aqui à minha direita, muito ternos, uma moça conversa com o namorado e deixa entrever um grande pedaço da pele das costas, entre as calças e a blusa. Questões de posição! à esquerda, um marinheiro com familiares (?) exibe a sua condecoração de fresca data. Além o senhor Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já caminhando para a meia‑idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de ler o "Diário de Notícias" (fraco gosto) e ela dá‑lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta‑se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam‑se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta‑moedas (agora é incómodo trazê‑lo no bolso). (...) ( MCG - 1973.06.10)
Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira‑me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente.
O barulho invade‑me e cansa‑me. Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em crescendo, gradual. Gente levantando‑se, esticando o pescoço. Continuo a escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem‑se e leio "Desculpe‑me" a mão passada pela testa como quem tem suores ou tonturas. Sai pela porta giratória (há pouco atrás de mim) e perde‑se na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)
Gravuras:
cartoon - autor não identificado
engraxador de Luanda - Hipóllto de Andrade
recruta zero (Beetle Bailey) - Mort Walker
Para saber mais sobre o Recruta Zero ver:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Recruta_Zero
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