A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

sábado, março 03, 2007

Silves no contexto poético do Ândalus*



Regressar à História de Silves

1. Preâmbulo

Se me é permitido é meu desejo, antes de abordar o tema que me proponho tratar, evocar aqui a figura desse silvense e arabista que foi o Dr. José Domingos Garcia Domingues, infatigável perseguidor da história luso-árabe e, sem dúvida alguma, o maior especialista algarvio desta temática. O seu labor, em domínios tão diversos como foram os da geografia, história, literatura e filosofia dos nossos antepassados muçulmanos, merece ser apontado pelo que teve de infatigável dedicação e de apurado rigor científico. Não duvido que o seu nome ficará com o relevo que merece na história da cultura de Silves, e como um dos filhos mais ilustres da cidade. Desejo que o seu exemplo frutifique e abra o caminho ao aparecimento de futuros arabistas.

Também não queria deixar de evocar aqui uma figura - Natália Correia - que tanto amou a cultura árabe, e que aqui estaria presente, por certo, se a morte a não tivesse surpreendido tão prematuramente. Lembro-me que já este ano, no Encontro Luso-Marroquino de Cooperação, que teve lugar em Rabat, ela avançou ao Sr. Presidente da Câmara a ideia de um festival anual de Poesia em Silves, celebrando a capital poética do Ândalus. Espero que as entidades oficiais e os filhos da cidade não deixem morrer a ideia, a bem da cultura portuguesa.

2. As Origens

Dito isto, importa salientar que Silves cedo se tornou muçulmana, após a instituição do poder árabe na Península, e logo no séc. IX se começam a ter notícias sobre o seu papel no Ândalus. Não é por isso de estranhar que um número considerável de historiadores árabes tenha deixado nos seus trabalhos apontamentos frequentes sobre a geografia, a cultura e o protagonismo da Silves muçulmana.

Citaremos, sem pretender esgotar a lista, al-Razi, Idrisi, Ibn al-Atir, Yaqut, Abu-l-Fida, al-Himyari, Ibn al-Abbar, al-Qazwini, al-Dimashqui e al-Maqqari. A crónica árabe anónima intitulada "Dhikr Bitad al-Andalus" refere que "Silves avantaja-se a todas as demais cidades de al-Andalus... Conseguiu um prestígio notável e uma glória excelsa".

Por sua vez, al-Himyari diz-nos o seguinte:
"... Os seus habitantes, assim como os dos povoados vizinhos são árabes originários do Iémen e de outras regiões da Arábia; falam árabe muito puro, exprimem-se de forma eloquente e recitam espontaneamente versos; todos, gente do campo e citadinos, são notavelmente dotados. As gentes das terras em redor de Silves são extremamente generosas e ninguém, nesse aspecto pode excedê-las".

Al-Qazwimi, citando al-Udhri, diz o seguinte:
"Entre as suas maravilhas está o facto de que nela mora muita gente; é raro que entre os habitantes de Silves se encontre alguém que não saiba fazer poesia ou não saiba de literatura.
Se se passa junto a um lavrador que esteja ocupado com a junta e lhe pedires um poema, recitá-lo-á no momento; qualquer significado que lhe perguntes ou qualquer explicação que lhe solicites, explicá-los-á com toda a perfeição".

A descrição de Idrisi é a seguinte:
"Silves é uma linda cidade. Está situada numa colina. Tem um castelo com fortes muralhas e belos edifícios e fartos mercados. Habitam-na árabes do Iémen e de outras partes que falam uma língua muito pura e, com eloquência, sabem improvisar em verso, quer os homens da cidade quer os camponeses".

Deste talento versejador e repentista das gentes da Silves muçulmana dão-nos testemunho ainda autores árabes, sendo de referir o que relata al-Maqqari a propósito do próspero Ibn-Munakhkhal, poeta, que tinha um filho que, apenas com 9 anos, versejava ao desafio mantendo o mote e a métrica.

Al-Udhri confirma que, de facto, na Silves desse tempo, todos eram improvisadores em verso e que ninguém se faria rogado, ao ser interpelado, em responder de pronto e a propósito, em rimas adequadas.

Al-Dimashqi diz mesmo que o talento poético dos silvenses era tal que ficou proverbial.

É conhecido o célebre episódio do passeio do então ainda príncipe al-Mu'tamid com o seu vizir e grande poeta Ibn 'Ammar. Costumavam ir até um lugar de recreio conhecido como Pradaria de Prata. Uma tarde em que aí estavam, levantou-se uma brisa que eriçou a superfície das águas. Al-Mu'tamid de imediato fez o verso:

"O vento faz a água uma loriga"

dizendo ao seu amigo que o completasse. O facto é que Ibn 'Ammar não o fez. Mas uma rapariga que estava por perto respondeu rimando em árabe:

"Que cota de malha seria se gelasse!"

Deste talento poético nasceu uma relação que transformaria a jovem escrava na esposa favorita do rei-poeta e uma paixão que duraria até à morte.

O interessante desta história, para o tema em causa, é que, até certa altura julgou-se que ela se teria passado em Sevilha, junto ao Guadalquivir.

Hoje, todavia, em face dos dados disponíveis, a historiografia é levada a crer que a cena com a escrava Rumaykiyya se terá passado antes em Silves, nas margens do rio Arade. Isto parece ser confirmado pela cronologia dos factos históricos.

A segunda conquista de Silves pelas forças abádidas de Sevilha, sob o comando nominal de al-Mu'tamid, que fica como governador, dá-se em 444 da Hégira. Dois anos depois, em 446, é que o príncipe desposa Rumaykiyya. Em 448, al-Mu'tadid, pai de al-Mu'tamid, tendo ouvido falar da fama e do ascendente sobre seu filho da ex-escrava, ordena-lhe que a leve à sua presença na corte de Sevilha, o que de facto vem a acontecer em 448.

Este encadeamento de factos, em meados do séc. XI da era cristã, inculca a ideia de que tudo se terá passado durante os anos silvenses de al-Mu'tamid. ( Veja, em Web de al-Ándalus, em versão castelhana, um poema de Boabdil, último rei de Granada (séc. XV), que se refere a al-Mu'tamid e Rumaykiyya em Silves, junto ao rio Arade. )

Podemos, pois, concluir que a rainha-poetisa Rumaykiyya não era senão mais uma dessas filhas da cidade a possuir o singular estro poético das gentes de Silves e do qual são herdeiros os inúmeros poetas populares de Portugal, cujo símbolo máximo foi o grande António Aleixo.

3. Os Poetas

Dito isto, importa que nos interroguemos se a fama poética de que Silves e a sua região gozam na história árabe tiveram de facto uma produção literária à altura dessa mesma fama.

A lista dos poetas e homens de letras, naturais de Silves ou que em Silves viveram, e cujo nome até nós chegou, é de tal forma extensa que seria fastidiosos estar aqui a inumerá-la.

Referiremos, até por questão de tempo, apenas os mais importantes e respeitantes aos períodos dos reinos taifas, ou seja, séculos XI a XIII, e que, no estado actual dos nossos conhecimentos, parecem ter sido, sem dúvida, dos mais fecundos.

A lista de poetas que o Dr. Adalberto Alves cita atrás está situada num outro local deste "site" e a ela poderá ter acesso "clicando" a frase abaixo, em caractéres árabes (O meu coração é árabe).

4. A Descendência

Não quereria terminar sem deixar bem acentuado que cinco séculos de soberania árabe, em territórios que depois haveriam de vir a ser Portugal, ou seja, mais de metade da sua história: não poderiam deixar de se traduzir numa profunda influência no génio lírico dos Portugueses.

A ode da poesia árabe clássica, a já referida "qasida", que já vem da Arábia ante-Islâmica, e que os poetas luso-árabes tanto cultivaram, era, se é permitido empregar uma linguagem musical, uma espécie de "suite" com três temas principais:

- Lamento do acampamento abandonado e evvocação da amada (nasib)
- Descrição da travessia ddo deserto e respectivas atribulações (rahil)
- Panegírico do patrono a quem o poema é dedicado (madih)

Ora o "nasib" é precisamente uma canção de saudade onde o sentimento da ausência amada nos lugares queridos é exacerbado até às últimas consequências face à desamparada solidão do deserto.

No "nasib" o poeta, ao voltar de uma excursão guerreira ou de uma errância nomádica pelo deserto, encontra apenas os restos do acampamento abandonado. A amada partira, entretanto, e ele evoca-a lembrando a sua beleza, os dias felizes que haviam passado, como diria Camões. "naquele engano de alma ledo e cego que a Fortuna não deixa durar muito".

Este sentimento de saudade do "nasib" foi transposto e amplamente glosado na lírica luso-árabe.

Al-Mu'tamid, o maior poeta luso-árabe, pergunta na sua célebre Evocação de Silves:

"Saúda, por mim, Abu Bakr,
Os queridos lugares de Silves
E diz-me se deles a saudade
É tão grande quanto a minha..."

Ou neste trecho:

"Porque deixas minh'alma abandonada?
Se a tua ausência é uma longa noite
Seja nosso abraço d'amor a alvorada"
.

Ou ainda:

"Abandonaste-me.
Que te fará voltar um dia?
O tempo que estamos separados é a noite
Os momentos de estarmos juntos, uma lua cheia"
.

Porém, não é apenas o tema da saudade que sugere a aproximação entre a poesia árabe do Ândalus e a primitiva lírica portuguesa. A estrutura paralelística das Cantigas, a existência do leixa-prem ou a referência ao amigo (habib em árabe) são outras tantas coincidências com a poesia estrófica do Ândalus.

Nas cantigas de amor, de inspiração provençal como o próprio D. Diniz confessa, o conceito do amor cortês, em que a paixão pela mulher desejada é sublimada numa atitude de contemplação, no amor pelo amor, revisita-se o ideal arábico do amor "udri" enriquecido pela mística sufi. Talvez isso justifique os versos que Garcia de Resende fez inserir no seu Cancioneiro Geral:

"Que quem sua trova fez
não em França, mas em Fez
aprendeu tal invenção"
.

O tema da saudade na lírica portuguesa não é, pois, a nosso ver, mais do que a continuação de um remoto "leit-motiv" introduzido pelos filhos do crescente e que, percorrendo as cantigas trovadorescas, desemboca em Bernardim Ribeiro, Camões e todos os seus continuadores, até aos nossos dias.

A célebre canção de Camões, de ambiência desértica,

"Junto de um seco, fero e estéril monte
Inútil e despido, calvo, informe
Da Natureza em tudo aborrecido
Onde nem ave voa ou fera dorme
Nem rio claro corre ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruído..."

talvez o mais formidável momento saudosista da literatura portuguesa, é pela essência da sua expressão fatalista, e pela elevação do seu nobre sentimento estoico, um "nasib" de superior transfiguração que al-Mutanabi, o príncipe dos poetas árabes não desdenharia subscrever.

Os árabes gozam da fama de serem o mais poético dos povos. Penso que os portugueses ombreiam com eles precisamente porque deles são parentes na família poética.

A poesia sempre foi e continua a ser a mais alta expressão da cultura portuguesa e foi o próprio Fernando Pessoa a afirmar no seu ensaio "Da Ibéria e do Iberismo":

"Nós Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações - a romana e a árabe.
Somos, por isso, mais complexos e fecundos...
Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores.
Expiemos o crime que cometemos, ao expulsar da Península os árabes que a civilizaram"
.

O sentimento da saudade percorre o território da nossa poesia, como um luminoso rio, do minhoto Teixeira de Pascoaes ao algarvio Cândido Guerreiro e à açoriana Natália Correia.

E porque estamos no Algarve e em Silves, eu queria terminar a minha intervenção com a voz de um dos maiores líricos da literatura portuguesa, o poeta de S. Bartolomeu de Messines, João de Deus, que foi um "trovador" romântico, no que a palavra "trovador" tem de mais literal, pois que muitos dos nossos versos ele próprio os acompanhava à guitarra.

Falei há pouco da "Qasida Abdunia" que o silvense Ibn Badrun havia comentado. Ode essa de sentido elegíaco comentando a força do destino que não poupa nem os poderosos.

Ibn 'Abdun fá-lo de maneira superior em 75 versos de 2 hemistíquios cada. João Deus mantém firme a corda da tradição e canta o destino e a saudade do que ainda é, que, por transitório, está prestes a deixar de ser, em apenas 22 curtos e admiráveis versos.

Acabaremos, pois, cotejando um excerto da ode de Ibn 'Abdun e um fragmento do poema "A vida" de João de Deus:

BEM CEDO o destino nos fustiga...
E para trás rastos vão ficando.
Esconjuro-te! Deixa que te diga:
Não chores por sombras, tudo é ilusão.
Ai de quem com quimeras vai sonhando
Entre as garras e os dentes do leão!
Que a vida não te iluda e entorpeça já.
Para a vigília são teus olhos feitos.
Ó noite, que do teu ócio nos afaste Alá.
E dos que ao teu feitiço estão sujeitos!
Teu prazer engana, víbora escondida
Detrás da flor: morde quem a quer colher.
Quanta geração foi de Alá querida!
O que ficou? - Poderá a memória responder?
Quem pode a menor coisa pretender.
E talentoso ou bom, deveras, ser?
Quem pode dar recompensa ou castigar?
Quem põe fim ao sopro da desgraça?
Quem é que a Danação pode afastar
Ou a tragédia que o Destino traça?
Ó vã generosidade, ó vão valor!
Quem me defenderá do opressor
- Calamidade em noite sem aurora -
Quem? Se já não há regra a respeitar
E o que resta é um silêncio imposto?
Quem é que apagará o amargo gosto
Que nunca ninguém pode apagar?

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!

VIVA A POESIA LUSO-ÁRABE!

Adalberto Alves
*in Actas das "II Jornadas de Silves", Setembro de 1992

FONTE:
http://www.geocities.com/baetaoliveira/mira1.html

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