Um comentário a um post no blog Kontratempos que defende o carácter não-fascista do Estado Novo.
«o salazarismo afastou-se do tipo ideal fascista que emergiu no âmago da modernidade europeia»
Quererá você afirmar que o fascismo que varreu a Europa dos anos 20 a 40 foi um factor de modernidade e de modernização?
«ainda que globalmente identificado no campo político-ideológico do movimento fascista europeu, o salazarismo diferencia-se daquele pelas suas causalidades sociais mas também pela sua própria natureza política e ideológica.»
Isso está longe de ser verdade. Os fascismos surgem sempre derivados do estado de desorganização política das classes dominantes. Ou seja, quando a instabilidade política das ditas elites é colossal, quando não há uma fracção dominante capaz de legitimar um programa político que unifique o conjunto das classes dominantes, afigura-se óbvia a possibilidade de se implantar uma forma de Estado fascista. Este apresenta-se como um Estado acima das classes e dos indivíduos procurando a unidade nacional o que é o mesmo que dizer: 1) que consegue unificar e organizar politicamente as classes dominantes. Salazar e o Estado Novo representaram a pacificação das enormes fricções entre a burguesia industrial (e comercial) e a camada latifundiária (com laivos semi-feudais) que estiveram na base de grande parte da instabilidade política da I República; 2) o fascismo desempenha não só um papel de organização política (de uma parte – restrita – da população) como igualmente desorganiza politicamente a restante maioria. Em Portugal isso é perfeitamente visível na repressão do movimento operário e dos sindicatos e partidos que rejeitavam o novo regime. Em termos de desenvolvimento processual histórico o mesmo se passou na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. Ambos solidificaram o que Gramsci e Poulantzas chamaram de bloco no poder. Na Itália entre a burguesia industrial e financeira e a burguesia agrária do Sul. Na Alemanha entre os Junkers que controlavam as terras, a burguesia industrial do Ruhr e a burguesia financeira (Krupp, etc.). Ao mesmo tempo, ambos reprimiram o movimento operário nos mesmos moldes. Se Salazar matou e reprimiu menos tal não invalida a sua profunda semelhança relativamente ao que se passou na Itália e Alemanha. Há diferenças mas de grau e não de natureza.
«Só isso explica a sobrevivência do Estado Novo depois da derrota do Eixo em 1945, num conflito mundial em que se manteve virtualmente neutro.»
E que dizer do Japão imperial? Ele manteve-se mesmo com a ocupação norte-americana do seu território… Salazar não criou animosidades com os Aliados ocidentais é certo, mas é notória a sua política de apoio ao Eixo nazi-fascista. Basta lembrar que quando Hitler se suicida, Salazar decreta 3 dias de luto nacional ou o caso do ouro nazi que teve a colaboração estreita e próxima de Salazar. Ou que dizer do volfrâmio enviado directamente para a Alemanha nazi?
«A hibridez constitucional, num regime que rejeita a democracia e formula o autoritarismo de Estado mas dota-o de princípios de representação democrática. Reprime a oposição, mas não a suprime tal como a sociologia política entende a concentração patológica autoritária.»
Mas quem lhe disse a si que a Alemanha nazi ou a Itália de Mussolini não tinham parlamento, pelo menos inicialmente? Aliás a Itália fascista tem um parlamento pelo menos de 21 a 25 e com “liberdades” parlamentares e eleitorais bem superiores ao que alguma vez foi proporcionado pelo fascismo português. A representação política é uma fantochada mas ela, em termos formais, está presente. No plano concreto e material a verdade é que a Assembleia Nacional de Salazar não tinha qualquer poder no aparelho de Estado e era um mero órgão decorativo. Existir ou não existir ia dar no mesmo.
Por outro lado, você fala que o salazarismo não suprimiu a oposição e apenas a reprimiu. Uma coisa está liga à outra se bem que seja verdade que uma – a repressão – não desemboque na outra – a supressão. Contudo, você parece esquecer que tal eliminação da oposição não aconteceu não porque esse não fosse o objectivo do Estado Novo mas porque não o conseguiu o que é algo bem distinto. Lembre-se que no período correspondente à Guerra Civil de Espanha passaram cerca de 10 mil pessoas pela prisão o que já é um padrão muito elevado de repressão e que no Campo de Concentração do Tarrafal (aliás, é este o termo que vem inscrito na própria documentação do Estado na época) morreram quase 10% dos presos políticos aí colocados. Se houve resistência ao fascismo tal ficou-se a dever à capacidade que os democratas portugueses (MUD, MUNAF, etc.) e o PCP tiveram em resistir à repressão da polícia política e não com uma pretensa tolerância do Estado fascista como você quer fazer crer. Bastaria o PCP – e mesmo outras organizações antifascistas, se bem que num grau menor – não ter adoptado medidas de defesa relativamente à repressão (as chamadas medidas conspirativas) e nenhuma resistência teria existido.
Mesmo o conceito de “concentração patológica autoritária” é muito pouco heurístico. Na realidade, mesmo na Alemanha nazi existiu sempre resistência organizada contra o regime. O Partido Comunista Alemão resistiu sempre, apesar dos milhares de presos e assassinados. Fora do território alemão, os movimentos de resistência tiveram sempre uma forte capacidade organizativa e nunca foram completamente suprimidos mas foram, a todo o momento, fortes pólos de luta armada e de paralisia da máquina de guerra nazi (Jugoslávia, Checoslováquia, Bulgária, França). Em Itália o PCI foi o partido dos “partisani” e apesar dos milhares de fuzilados nunca foi completamente suprimido, facto perfeitamente evidenciado na sua enorme força eleitoral e social a seguir à Grande Guerra. Por conseguinte, nunca há vitória absoluta por parte das ditaduras, na medida em que o povo e suas organizações políticas (e militares se for caso disso) nunca desaparecem totalmente e mantêm sempre níveis de resistência. Variáveis consoante o contexto mas iniludíveis.
«A consagração de propósitos contraditórios na Constituição. O salazarismo não abole a representação eleitoral, mas perverte-a. Não rejeita a separação de poderes, mas hierarquiza-os.»
Todas as ditaduras fascistas ou militares tinham Constituições e afirmavam-se Estados de direito. Não de direito democrático evidentemente, mas toda a cadeia de comando do Estado regia-se por normas burocráticas e legais regulamentadas e bem definidas. As ditaduras não diferem neste ponto dos chamados Estados democráticos. A lei tem é outra substância, isto é, legisla sobre a repressão e a arbitrariedade, autorizando-a e defendendo-a, mas ela existe. O discurso fantasista de que os Estados fascistas reprimiriam fora de um contexto normativo e legislativo não tem qualquer cabimento, porque é exactamente a lei que legitima a repressão.
Sobre a representação eleitoral. Como se pode dizer que não é abolida se só temos um único partido erigido à condição de Partido Único? Não há perversão da representação eleitoral mas sua pura e simples omissão e proibição.
Relativamente à hierarquização dos poderes e sua separação. Mesmo hoje o aparelho executivo é muito mais determinante do que o legislativo. Portanto, nunca há igualdade real entre eles mas apenas formal. Os tribunais no fascismo português eram correias de transmissão do poder executivo salazarista. O exemplo dos presos políticos que depois de cumprida a sua pena, eram mantidos cativos por via das “recomendações” do governo de Salazar aos tribunais é uma ilustração inegável.
«A matriz católica, que restaurou as forças tradicionalistas e permitiu a neutralização das veleidades totalitárias do regime»
Pois, e em Itália o que se passou? E na Espanha de Franco onde o apoio tácito e expresso da Igreja Católica contribuiu decisivamente para acusar, prender e assassinar milhares e milhares de militantes antifascistas? Isso não conta?
«Não foi o partido que tomou em mãos o poder nem o partido existiu como estrutura clássica de enquadramento. O Estado Novo foi mais um Estado com partido único do que um Estado de partido único.»
Mas nenhum partido fascista tomou alguma vez o poder por si mesmo. Só as forças armadas permitiram aos fascistas o acesso ao poder (Portugal com o golpe de 28 de Maio, Itália com a marcha até Roma, Espanha com o pronunciamento de Ceuta e a subsequente guerra civil, Chile com o golpe de Pinochet) ou a sua solidificação (incêndio do Reichstag pelos nazis e posterior repressão). A tendência de todos os fascismos é sempre de serem engolidos pelo Estado, funcionando como instrumento, como veículo de ascender na hierarquia do Estado (o que aconteceu em todos os casos). Em paralelo, importa referir que não é o partido que manda no Estado mas o contrário é verdade. A partir do momento em que o movimento fascista se torna em poder fascista, o partido deixa de ser o núcleo central de actuação dos fascistas. O partido passa a ser uma instituição anexa e apêndice ao Estado e não o centro de poder. O partido passa a ser o crivo de selecção e seriação dos quadros estatais e o espaço de competição entre os dirigentes fascistas pelo acesso aos mais altos cargos de Estado mas não é o centro do poder. Este, pelo contrário, concentra-se no aparelho executivo a partir de uma firme coesão entre as altas patentes militares e o (chefe de) governo.
Se é verdade que o fascismo português nunca teve a expressão de massas dos seus congéneres, tal não significa a sua semelhança fundamental em termos de relação partido/Estado: o recrutamento dos altos funcionários do Estado implicava, na sua esmagadora maioria, a pertença ao partido fascista. Este é um elemento decisivo em termos da relação partido/Estado e que você esquece.
«A militarização e o milicianismo foram um valor formativo do Estado Novo, mas a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa nunca accionaram princípios de violência paramilitar como as brutais Secções de Segurança alemãs ou a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional em Itália. O exército português também nunca se aproximou do fascínio militarista que era exercido pelo poderio da Wehrmacht nazi»
Mais uma vez você faz uma distinção de grau e não de natureza pelo que é escusado voltar ao assunto.
«enquanto o Estado Novo continuar cativo de salazaristas e «antifascistas» é que não saímos de onde estamos»
Você advoga aqui uma releitura da História que é gravíssima. O que você propõe é a omissão e branqueamento puro e simples do que foi a resistência ao fascismo em Portugal. Homens como Álvaro Cunhal, Dias Lourenço, Bento Gonçalves, Dias Coelho, Militão Ribeiro, Domingos Abrantes, etc. deram o melhor das suas vidas – quando não a própria vida – na luta e resistência contra um regime iníquo e torcionário. Seria você capaz de lutar desta forma contra o fascismo? Mesmo estando nos antípodas dos ideais comunistas que a esmagadora maioria dos resistentes antifascistas portugueses (e não só) professavam, seria você capaz de em nome da democracia e da liberdade ter coragem de afrontar o regime fascista? A mim parece-me que você não teria tal estatura moral e humana.
Fonte:
Blog As Vinhas da Ira (João Aguiar)
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