Histórias com o Caló
* Victor Nogueira
Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.
Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui e para as quais me vem chamar a atenção com frequência. (MMA - 1993.08.15)
Bem daqui a pouco vou interromper para ver um filme policial na televisão. Entretanto apareceu o Caló, o miúdo de quem falei em tempos, para visitar o grande amigo dele, que sou eu. Abancou ali numa cadeira a ver fotografias, comentando-as em voz alta, com perguntas e grandes exclamações. Agora fez uma interrogação enorme por causa dum bicho que nunca tinha visto: um perú. Entretanto viu umas fotografias de esculturas feitas pelo meu irmão e diz que não acredita que ele as tenha feito, respondendo que não, que não me estava a chamar mentiroso, mas lá que não acreditava, não acreditava, acrescentando Mas o meu pai sabe desenhar. Vai daí, disse-lhe: Eu não sei desenhar nem cuidar de ovelhas como o teu pai mas escrevo melhor que ele. Não acreditou. Que escrevesse Fernando ali num papel. Disse-lhe, apontando para o meu volumoso livro de poemas: Então não vês que escrevi aquele livro?. Respondeu-me: Ah! mas isso não é escrever, isso foi feito no computador. Claro que para o Caló não saberei escrever, tanto mais quanto ele não será capaz de ler os meus hieroglifos. Depois perguntou-me onde é que eu trabalhava e respondi-lhe que na Câmara. Exclamou ele: Ah! Apanhas o lixo! No prédio dele mora um cantoneiro de limpeza do Município, o Ramiro. Respondi-lhe que não, que trabalhava num escritório, o que nada lhe terá dito pois não deve conhecer a palavra e muito menos o que faz um sociólogo. Enfim! (MMA - 1993.09.10/11)
Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA - 1993.09.20)
Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu à tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo. (MMA - 1993.09.25/26)
Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram à porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça. (MMA - 1993.09.26)
Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. (MMA - 1994.01.01)
Victor Nogueira in RETRATOS
Nunca mais soube do Caló: desapareceu, simplesmente.
Sobre o Caló (falar cigano)
Sobre o povo cigano no Brasil ver:
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