12.02.2008
Por Gustavo Barreto – gustavo@fazendomedia.com
Relatório do International Rescue Committee aponta a situação na República Democrática do Congo como a “pior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial”, com 5,4 milhões de vítimas desde 1998. Conflito é provocado pela espoliação dos recursos naturais por parte de corporações multinacionais e instituições multilaterais. Enquanto exploração de minérios rende lucros privados estratosféricos, 80% da população sobrevive com 30 centavos de dólares ou menos por dia. Primeiro artigo de dois. Fotos de Marcus Bleasdale (*).
No dia 1º de fevereiro de 2006, este Fazendo Media publicou uma dramática reportagem sobre a República Democrática do Congo, denunciando que o país passava por uma crise humanitária negligenciada pela mídia e sustentada por corporações multinacionais e governos de países desenvolvidos. O título da reportagem: “38 mil mortos. Todo mês” [1]. As estimativas vieram de um artigo publicado na revista de medicina Lancet e davam conta de que, desde 1998, quase 4 milhões de pessoas haviam morrido.
Exatos dois anos depois, as notícias não são boas. Relatório do International Rescue Committee (IRC), grupo que reúne pesquisadores e ativistas de diversos países, afirma que já passam de 45 mil as mortes todos os meses, totalizando 5,4 milhões de vítimas desde 1998 – a maior tragédia humanitária desde a Segunda Guerra Mundial, com 1.500 mortos por dia [2].
A exploração de recursos naturais por multinacionais está no centro do conflito na RDC
Ao mesmo tempo, centenas de corporações internacionais obtiveram lucros extraordinários por meio da extração e processamento de minerais congoleses. O número de vítimas é superior à população da Dinamarca e semelhante ao total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro.
O IRC documenta desde 2000 o impacto humanitário da guerra no Congo por meio de análises e pesquisas acerca da mortalidade no país. Este é o quinto estudo realizado pelo grupo sobre a RDC. Os primeiros quatro, conduzidos entre 2000 e 2004, estimaram que 3,9 milhões de pessoas morreram desde 1998, reconhecendo desde então a República Democrática do Congo (não confundir com a República do Congo, país vizinho) como a mais fatal crise planetária desde a Segunda Guerra Mundial.
O relatório afirma que menos de 10% do total de vítimas morreram devido à violência direta, em conflito. A maior parte é atribuída a males facilmente evitáveis e tratáveis, tais como malária, diarréia, pneumonia e má nutrição. O relatório aponta que recentes avanços políticos nas áreas de segurança e o aumento dos fundos humanitários para o país poderiam trazer esperança para a RDC finalmente deixar a crise pela qual atravessa. “Um grande número de agências internacionais expressaram otimismo em relação a tal progresso, que poderia render frutos em um futuro próximo”, destaca o relatório. “No entanto, a República Democrática do Congo enftrenta muitos desafios em sua caminhada rumo à reconstrução e desenvolvimento”, alerta.
Na foto, uma das vítimas da espoliação internacional. 90% dos mortos sofrem com a falta mais básica de acesso à saúde
O relatório cobre o período de janeiro de 2006 a abril de 2007. A província de Kivu Norte experimentou uma particlar escalada de violência ao final de 2006, resultando em um aumento na mortalidade local e 400 mil refugiados. O IRC aponta que a melhoria em apenas uma região em relação à taxa de mortalidade não conseguiu fazer frente ao aumento das mortes em Kivu Norte. “O aumento da mortalidade ao longo da República Democrática do Congo indica que o país permanece em meio a uma enorme crise humanitária”, conclui o relatório, cobrando engajamento da comunidade internacional.
Violência em cadeia
A cadeia de produção capitalista é, muitas vezes, esquecida pelos principais analistas internacionais. Uma exceção é a reportagem da edição de abril de 2006 da revista americana Fortune, do grupo CNN. Em matéria assinada pelo colaborador da revista Anjan Sundaram, destaca-se que a demanda pelo estanho vem principalmente da indústria global de eletrônicos [3]. Na reportagem, Sundaram conta a história de Pascal Kasereka, um garoto de 16 anos que havia caminhado durante dois dias desde uma mina em Walikale, a oeste do Congo, para vender a mercadoria – ou commodity, como gostam de chamar os operadores do mercado internacional e analistas da imprensa internacional. “Ouvi dizer que os americanos gostam dela”, avisa o menino.
Soldados compram a mercadoria por 14 centavos de libra – por volta de 15 dólares por todas as pedras nas costas de Kasereka. O preço, dentro do cenário de “livre mercado” idealizado pelos americanos e ingleses, é determinado pelas armas apontadas para o garoto. Assim como Kasereka, outros garotos caem no chão exaustos, enquanto a poucos passos dali aqueles mesmos sacos serão vendidos por cinco vezes mais que o preço inicial. Os 15 dólares viram 350 no mercado mundial. Deixarão o país em aviões enferrujados, produzidos por grandes potências como Estados Unidos, Rússia e China, e partirão para rotas conhecidas, como Ruanda e Uganda, até chegaram ao consumidor final – cidadãos de países desenvolvidos.
A cassiterita, um mineral de estanho, é uma commodity disputada agora que as regulações ambientais forçaram a indústria global eletrônica a usar estanho em vez do tradicional chumbo nas placas de circuito e em outros componentes de informática. De 2002 a 2006, o preço do estanho praticamente dobrou – foi para aproximadamente 7 mil dólares a tonelada.
O mercado internacional ignora que por trás de uma commodity lucrativa pode estar o trabalho infantil e a guerra civil
Grandes empresas não admitem o uso de recursos naturais da República Democrática do Congo e de outros países em guerra, porque não compram diretamente do governos locais. No entanto, acabam por consumir indiretamente a maior parte destes minerais, extraídos em condições ilegais, imorais e servindo de base de sustentação para o mais importante genocídio desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, é conhecida a estratégia de muitas multinacionais de abrir fábricas em países onde as condições financeiras oferecem vantagens – incluindo países para onde os recursos do Congo são exportados, a exemplo de algumas nações e territórios asiáticos.
“Quando se olha para a República Democrática do Congo (RDC), é preciso notar a importância das corporações internacionais atuando no país”, alerta Maurice Carney, da organização Amigos do Congo (Friends of Congo), ao comentar o relatório do International Rescue Committee para o programa de TV Democracy Now!, integrante da imprensa alternativa nos Estados Unidos.
“Estupro” de uma Nação
“Normalmente, quando falam deste país, as pessoas costumam falar dos estupros, que ocorrem em uma escala assustadora. Basicamente, há dois tipos de estupros ocorrendo no país. Um é o estupro de mulheres e crianças. O outro é o estupro da terra, dos recursos naturais”, denuncia Carney.
“O Congo tem uma grande quantidade de recursos naturais. Estamos falando aqui de 30% das reservas de cobalto do planeta, 10% das reservas de cobre, 15% das reservas de estanho e 80% das reservas de coltan [composto combinado contendo columbita e tantalita]. As multinacionais no Congo estão aumentando cada vez mais seus lucros, enquanto o povo está sofrendo enormemente”, completa. O composto coltan, por exemplo, é amplamente utilizado na fabricação de telefones celulares.
O integrante da Amigos do Congo informou que a Organização das Nações Unidas (ONU) fez um relatório com dados de 2001 a 2003 sobre as exportações ilegais de recursos naturais do Congo e apontou os nomes das empresas e detalhes das transações.
“Há um número grande de corporações norte-americanas, todas nomeadas no relatório. Uma das empresas está ligada a um secretário da área de energia da administração Bush. Há também uma grande atuação de corporações canadenses. Nos últimos anos quase todo primeiro-ministro canadense esteve envolvido na exploração das minas no Congo”, exemplificou, citando nominalmente chefes de Estado canadenses como os primeiro-ministros Joe Clark (1979-1980), Brian Mulroney (1984-1993) e Jean Chrétien (1993-2003). “Todos lucrando a partir dos recursos naturais do Congo, enquanto 80% da população sobrevive com 30 centavos de dólares ou menos por dia”, aponta Carney.
Exploradores a serviço das mineradoras internacionais. Deste "ramo" da economia surgiu o atual presidente, Joseph Kabila
Ele completa afirmando que o atual presidente da RDC, Joseph Kabila (por vezes aparece com dois “L”s), e seu pai, Laurent Kabila, foram colocados no poder em 1997 pelas forças do ocidente, com o objetivo de facilitar o acesso aos recursos naturais (leia o contexto histórico, mais adiante). “Essa é a principal razão para Kabila estar no poder”, ressalta.
O International Crisis Group [5], organização independente que faz relatórios sobre crises humanitárias, realizou um estudo em 2007 em que documenta o apoio de diversos embaixadores à vitória de Kabila nas eleições de janeiro deste ano. Carney credita este apoio ao fato de que eles sabiam que teriam, por meio de Kabila, acesso facilitado aos recursos naturais.
Desrespeito às convenções internacionais
Em um relatório datado de 5 de julho de 2007 [6], o International Crisis Group recomenda que os doadores do processo democrático de 2007 – França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Béligca, África do Sul, União Européia e China, entre outros – apóiem os esforços do governo para administrar os recursos naturais, “incluindo solicitar às empresas destes países que cumpram as leis nacionais e as leis do Congo”, bem como “convenções internacionais de boas práticas econômicas”.
Conforme pontua a jornalista Colette Braeckman, do periódico francês Le Monde Diplomatique, os acordos assinados em 2003 na cidade sul-africana de Sun City para o fim oficial das hostilidades não tinham como objetivo principal democratizar a gestão de recursos – “mas sim acabar com a guerra, incitar as tropas estrangeiras a deixarem o território e permitir a substituição dos circuitos mafiosos, que operavam no curto prazo, por operadores econômicos mais estáveis, mas não necessariamente menos ávidos”. Neste contexto se encaixa como uma luva a administração do Fundo Monetário Internacional, há décadas atuando no país (leia análise de relatório da entidade mais adiante).
Com este arranjo político de 2003, assinala Braeckman, alguns dos líderes mais desprezíveis chegaram ao poder na RDC, pois Kabila (filho) teve de aceitar ceder poder para manter sua autoridade.
Foi criado então um “governo transitório”. Participou dele, por exemplo, Jean-Pierre Bemba, um ex-homem de negócios corrupto que passou a ocupar a Comissão de Economia e Finanças. É milionário, possuindo negócios em aviação civil e comunicações, entre outros. Seu pai, de quem herdou uma fortuna incalculável, ficou rico durante o governo corrupto do ditador Mobuto, que se sustentou no poder de forma surpreendente por 32 anos (1965-1997). Uma das irmãs de Bemba é casada com um dos filhos de Mobuto, que também foi candidato nas eleições presidenciais de 2006, a exemplo de Bemba [7].
Outro integrante deste governo foi Azarias Ruberwa, um ex-rebelde aliado do exército ruandês e responsável por distintos massacres. Ruberwa ocupou o cargo de chefe de Defesa e da Segurança. Em 2006 concorreu às eleições e perdeu.Na República Democrática do Congo, as eleições isoladas se demonstraram uma farsa na tentativa de resolver problemas locais
Uma Assembléia Nacional não-eleita foi formada e seus membros redigiram um Código Mineiro e um Código Florestal, com termos ditados pelo Banco Mundial, que havia injetado uma grande quantidade de recursos no país (leia mais adiante). “Os textos oferecem muitas vantagens aos operadores privados, ao mesmo tempo em que reduzem ao máximo suas obrigações. Foi assim, por exemplo, que o Banco Mundial comandou a reestruturação da Gécamines”, apontou Braeckman.
A jornalista do Le Monde Diplomatique cita um exemplo, que lembra os casos da era das privatizações durante os governos do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso e de outros líderes neoliberais na América Latina: “Antes que a empresa fosse ‘vendida por compartimentos’, os 10,5 mil trabalhadores foram demitidos e receberam indenizações que variaram entre 1,9 mil e 30 mil dólares. Mas essas quantias foram destinadas ao reembolso das dívidas, ou absorvidas pelas despesas de curto prazo [pagas pelo Estado]. Esses trabalhadores, agora privados de qualquer proteção da seguridade social, trabalham no setor informal. As firmas procuram substituí-los por máquinas, contratando apenas um mínimo de trabalhadores qualificados.” É o modelo econômico seguido por empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, para citar um exemplo mais próximo.
Outras armas do capitalismo foram utilizadas: grandes isenções fiscais a sociedades mistas, por exemplo, por períodos de 15 a 30 anos. Estima-se que a soma dos impostos ficou em média, no ano de 2004, em míseros 400 mil dólares. A MIBA, empresa então estatal de diamantes sediada em Kasai, foi saqueada em 45% de seus ativos, em benefício de uma empresa mista de Congo e Zimbábue (Sengamines).
Leia no segundo artigo da série
* Fotojornalista denuncia farsa das eleições
* População está sendo expulsa das terras
* Influência das instituições “multilaterais”
* Famílias e mulheres temem violência sexual diariamente
* Contexto histórico: exploração internacional e guerras
* Onde se informar sobre a crise
NOTAS
(*) O fotojornalista Marcus Bleasdale, autor das fotos, também é autor do documentário “Rape of a Nation” (Estupro de uma Nação), que será um dos temas do próximo artigo. Clique aqui para assistir.
[1] Gustavo Barreto, “38 mil mortos. Todo mês”, Fazendo Media. [Acessado em Fev. 6, 2008]
[2] International Rescue Committee, Mortality in the Democratic Republic of Congo – An Ongoing Crisis. Janeiro de 2008. [Acessado em Fev. 6, 2008]
[3] Anjan Sundaram, “Congo’s tin men” [Os homens de estanho do Congo], Fortune Magazine, April 27, 2006. [Acessado em Fev. 5, 2008]
[4] Democracy Now!, “Deadliest Conflict Since World War II” (YouTube), January 23, 2008. [Acessado em Fev. 3, 2008]. Vide também links relacionados nesta página, em “About This Video”.
[5] Ver www.crisisgroup.org
[6] International Crisis Group, Africa Report N°128. “Congo: Consolidating the Peace”, Kinshasa/Brussels, 5 July 2007. [Acessado em Fev. 5, 2008]
[7] Leia algumas notas e referências a Jean-Pierre Bemba clicando aqui.
Informe-Consciencia@googlegroups.com [mailto:Informe-Consciencia@googlegroups.com]
Enviada: terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008 23:45
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