A Internacional

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quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Reflexões sobre a China: (4) - O “marxismo vulgar” de I. Wallerstein



por Elias Jabbour*

Como ante-sala de uma análise de caso – a China – envolvendo a categoria de formação sócio-espacial, creditamos importante compará-la com outras perspectivas metodológicas, sobretudo as relacionadas a um certo “mundialismo metodológico” incorporado inicialmente pelos teóricos da dependência e atualmente amparada em investigações levadas a cabo por historiadores como Immanuel Wallerstein. A questão que levanto nesta parte 4 das “Reflexões...” pode ser sintetizada da seguinte forma: apesar do modismo em que navegam, até que ponto podemos levar em consideração a historicidade de tais tipos de enfoque metodológico (mundialismo metodológico) em contraposição a uma proposta centrada na categoria de formação sócio-espacial?


O marxismo, seja no Brasil, seja na América Latina, é marcado pela hegemonia de um determinado enfoque teórico-metodológico baseado na idéia central de dependência, que por sua vez, em âmbito mundial, tem na perspectiva do sistema-mundo sua mais bem acabada e difundida teoria. Seu principal teórico, Immanuel Wallerstein, parte da premissa da “externalidade”, o que em curtas palavras significa que o lugar ocupado por determinado país no mundo depende sobremaneira da dinâmica do “sistema-mundo”, que por sua vez (o “sistema-mundo”) tem grande impacto no desenvolvimento interno de cada nação, em detrimento do processo histórico em si, capaz de abarcar com essencialidade a categoria de modo de produção (1). Algo somente possível no âmbito da categoria de formação econômico-social.


Um problema – também – de ortodoxia marxista

Observando, de forma superficial, a lógica da ênfase no “externo” desloca a necessária concentração nas condições internas de cada unidade de análise (formação social) tendo conseqüência direta na impossibilidade de análise da transição e suas fases, análise esta que se constitui no principal objetivo do materialismo histórico (2). Isto por si só torna-se a perspectiva do “sistema-mundo” algo no mínimo tendente a uma síntese a-histórica do processo de reprodução tanto do capital, quanto da gênese e substituição de modos de produção.



Retornando, Wallerstein assenta sua hipótese no desenvolvimento de um sistema capitalista mundializado que nasce e se desenvolve entre os séculos 15 e 17 e se consolida após a revolução russa de 1917. O nível de integração que alcançou este “sistema capitalista mundial” levou o autor a designar o conjunto sistêmico não mais de “economia mundial” e sim “economia-mundo” (3). Isto tem relação direta (fases de desenvolvimento) com uma duvidosa base marxista praticada por Braudel, que em suas periodizações históricas (ciclos históricos) abstraiu, por exemplo os ciclos de curta (Juglar/Marx) e longa duração (Kondratiev). Tal negação dos “ciclos econômicos” pode redundar na própria negação do processo de acumulação ou na pior das hipóteses relacionar tal como fez Wallerstein: confundindo a acumulação capitalista em si com o processo de acumulação primitiva a partir do século 16.

A verdade marxiana elementar demonstra que o processo de acumulação capitalista opera segundo leis intrínsecas do modo de produção capitalista, sendo que o processo de acumulação primitiva, engendrado na Europa a partir do século 16, criou certas condições objetivas à transição ao capitalismo na Europa dominada pelo feudalismo. A diferença entre um caso de acumulação e outro reside no modo de produção em si, pois se a acumulação capitalista é possível somente pela via da apropriação privada do excedente econômico que é síntese de uma forma social de produção, na acumulação primitiva o excedente é via comércio ancorado em diferentes formas de estabelecimento de preços em diferentes modos de produção do mundo integrados pela rotas comerciais, então integradas.

Ao não apreender de forma séria o marxismo, Wallerstein deixa-se levar por uma definição de capitalismo muito genérica sintetizada na idéia de produção para a venda no mercado, em que o objetivo é o lucro máximo. Desta forma Wallerstein aproxima-se muito mais da Economia Política produzida por Adam Smith do que da crítica produzida a ela por Marx. Somente um deslocamento do marxismo – em sua forma radical – em detrimento de uma caduca Economia Política pode servir de base a uma falsa totalidade hegeliana (afinal pode-se vislumbrar o todo mesmo na parte) e da esquematização e estratificação (logo, não observando historicamente o processo de formação e desenvolvimento das nações) do mundo em centro, semi-periferia e periferia, creditando (como nossos teóricos da dependência) que processos autônomos de desenvolvimento só podem existir com “autorização” (ou “convite”) e a serviço dos interesses do centro.

Resumindo, tal perspectiva metodológica (que pressupõe a existência do capitalismo na Europa do século 15!!!) só pode evoluir devido a outro – mais um – deslocamento: o do eixo do capitalismo, da análise do processo produtivo à análise do processo de circulação. Aliás, algo muito conhecido entre nós no Brasil acostumados com as “hegemonias” cepalina, da teoria da dependência, das idéias de Caio Prado, das teorias do subdesenvolvimento e daqueles que não trabalham com a hipótese da existência histórica do feudalismo no Brasil. O que existe em comum em todas elas é a não explicação do dinamismo de países como o Brasil (que chegou a ser a 8° economia do mundo no início da década de 1980) e sim na busca cega por explicações de nosso atraso (4).


Modo de produção e processo

Sob outro campo de observação, ao não perceber (a perspectiva do “sistema mundo”) as especificidades de cada formação social (como o fez Sweezy no debate sobre a transição feudalismo-capitalismo na Europa, ao negar tanto o feudalismo quanto o capitalismo durante a transição), acaba-se por negar, inclusive a própria categoria de modo de produção, categoria central no arcabouço teórico/metodológico do marxismo (5). Eis a essência do circulacionismo e sua ramificação, a perspectiva do “sistema-mundo”.

Crendo na existência de um capitalismo consolidado na Europa pelo menos 200 anos antes da Revolução Puritana, Wallerstein, assim como Sweezy, credita ao capital comercial o principal elo à transição ao capitalismo. Wallerstein vai mais longe ao já perceber na forma comercial um estágio de capitalismo consolidado.

Sendo o processo histórico algo inerente às diferentes formações sociais e não algo que somente pode-se ocorrer no geral, a superficialidade da análise circulacionista e wallersteiniana fica facilmente perceptível ao compararmos com uma típica abordagem que parte da categoria de formação econômico-social (ou formação social ou formação sócio-espacial), como segue nas palavras de M. Dobb, para quem o capital comercial europeu, ao invés de promover o avanço do capitalismo, pode, inclusive retardar seu avanço (6): “Um traço dessa nova burguesia mercantil, que de início se mostra surpreendente e mundial, é a presteza com que tal classe entrou em acordo com a sociedade feudal (...). O grau em que o capital mercantil floresceu num país nesse período não nos proporcionou medida alguma da facilidade e rapidez com que a produção capitalista ia desenvolver-se e em muitos casos sucedeu exatamente o contrário. (...)”(7).

A passagem de Dobb demonstra que a negação da categoria de modo de produção – e em conseqüência do processo como categoria filosófica e angular à compreensão de uma formação social – levou Sweezy a escamotear que o desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental deve-se ao florescimento do modo de produção da pequena produção mercantil, responsável pela transformação de pequenos produtores em capitalistas. Essa forma de transição feudalismo-capitalismo (“via revolucionária”) fora exposta por Marx que a contrapôs a uma outra via, que Lênin denominou de “via prussiana” caracterizada por uma transição capitaneada por uma aliança entre o capital comercial e senhores feudais (Japão e Alemanha, p. ex.) que por sua vez de cima para baixo impõem novas relações sociais (8).

Tal elaboração marxiana, desenvolvida por Lênin é mais uma prova de que é no âmbito da formação social que se deve partir a análise do processo em si, pois sendo o modo de produção uma categoria axial do marxismo, somente é no âmbito da formação social que se pode ser detida na sua singularidade. Caso contrário poderemos chegar à conclusão de que o camponês na Europa ocidental ou na China não passa de um ser a-histórico, sem vida, sem passado nem presente, cujas nações e seu futuro dependem ou das decisões do “centro” do “sistema-mundo” ou de uma ruptura sistêmica em escala mundial...

Por fim e fazendo uma analogia histórica, na mesma medida em que Sweezy passa por cima da observação de processos históricos concretos, daí não observar o desenvolvimento do concreto e suas múltiplas determinações na homogeneidade restrita da Europa Ocidental, Wallerstein e seus discípulos do “sistema-mundo” nunca poderão perceber que a produção e distribuição em diferentes zonas do globo são determinadas pelo nível que se dão as relações homem-natureza, que por seu turno (e independente de variáveis externas) fez surgir de forma precoce modos de produção mediados por mecanismos como o planejamento econômico e territorial datados de mais de 2.000 anos, por exemplo na China. E não utilizar o passado da formação social no deciframento de determinado processo recente é, em última instância, jogar fora o menino junto com a água suja do banho.


O “sistema-mundo” e o socialismo

De um “marxismo sem dialética”, assim como Caio Prado denominou o Brasil como capitalista desde seu descobrimento, o desenrolar teórico de uma premissa circulacionista só pode desembocar na síntese segundo a qual considera-se capitalista qualquer Estado que mantenha relações comerciais na esteira do mercado mundial unificado capitalista, independente das formas de produção internas em cada país. É o supra-sumo da negação do processo como ente histórico/filosófico e, conseqüentemente, da categoria de modo de produção. Desta forma, Wallerstein caracterizou como “capitalistas” (por serem “componentes do sistema-mundo capitalista”), em sua essência, as experiências socialistas, remotas e presentes.

L. Fernandes (1999, p. 144) demonstra os limites teóricos e empíricos desta abordagem – de forma simplificada, porém categórica – a partir da seguinte constatação: “(...) a mais flagrante evidência das limitações das teses que caracterizaram os antigos regimes do Leste como foi (é) dada pela própria crise geral que se instalou nesses países com sua derrocada. Afinal, se essas sociedades já eram capitalistas, por que estão sendo necessárias rupturas políticas, econômicas, sociais e culturais tão profundas e traumáticas para adequar seu desenvolvimento à “normalidade” do mundo capitalista? (...) Basta lembrar que a superação dos regimes nazi-fascistas na Europa do pós-guerra não produziu crise semelhante. Enfim, nos termos da teoria marxista, fica evidente que os países do Leste estão passando por um processo de profunda ruptura sistêmica (grifo do autor), e não de mera transformação superestrutural.”

Segundo Wallerstein: “Assim como não há sistemas feudais, tampouco existem sistemas socialistas na economia-mundo hoje. Só existe um sistema mundial (...) com uma forma capitalista por definição. (...) o socialismo implica na criação de outro tipo de sistema-mundo que não é nem um império-mundo, nem uma economia-mundo capitalista, mas um governo-mundo socialista.” (9).

Mas o próprio autor analisado alerta para o surgimento, pós-1917 de “movimentos anti-sistêmicos” que inclusive chegaram ao poder nacional em muitos países. Porém, o limite deste tipo de movimento que alcança o poder reside em sua própria forma nacional cuja necessidade de desenvolvimento e reprodução acaba, necessariamente, tornando-se fatores de cooptação pelo “sistema-mundo”. Assim, em Wallerstein, assim como para Trotsky, vemos uma base teórica de negação da questão nacional, assim como da não-observância da evidência empírica de que há muito tempo o comércio internacional praticado pelos países socialistas, principalmente a China hoje, dá-se de forma planificada e não como no capitalismo onde também nesse aspecto ainda reina a anarquia da produção. Logo, também no aspecto do comércio internacional, o mesmo deve ser visto a partir de suas múltiplas determinações, inclusive a determinação política.

Obedecendo a uma visão de conjunto e não desprezando o fator “comércio externo” no âmbito do desenvolvimento interno de países como a China, a magnitude de seu mercado interno (ainda não explorado em sua potencialidade) torna aos poucos diminuto o papel estratégico do comércio exterior em seu já citado desenvolvimento interno. No estratégico, conforme o exemplo das relações comerciais chinesas com a periferia, o comércio exterior é variável central, tanto na derrocada da atual estrutura imperialista, quanto da transição capitalismo-socialismo em âmbito mundial.

Na toada do sistema-mundo de Wallerstein e em sua idéia de governo-mundo socialista, nos resta expor que para ele somente uma ruptura global poderá colocar o capitalismo em xeque. Desta forma aproxima-se da perspectiva do filósofo húngaro Istvan Meszáros da necessidade de um movimento social mundial como pré-requisito à derrubada do capitalismo.

O idealismo desta perspectiva de desenvolvimento histórico nos remete, novamente, à negação da centralidade da formação social no processo de transição no âmbito de diferentes modos de produção. Pois, inclusive para Marx, a vitória internacional do socialismo não prescindia da vitória inicial nas formações mais avançadas do mundo, França, Inglaterra e Alemanha. Ainda, desloca-se da lógica marxista, que nos mira a não investigar a forma de funcionamento de uma economia praticada na África Central partindo das mesmas leis que regem o funcionamento da Bolsa de Valores de Nova Iorque e os planos qüinqüenais chineses. A única similaridade nesses casos é o da existência de homens buscando sua reprodução social. Reforçando esta nota é valida a seguinte observação de Engels, para quem: “As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração para geração. Por isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para todas as épocas históricas” (10).

Da mesma maneira que a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países, a transição capitalismo-socialismo não é algo possível, cientificamente, fora dos marcos nacionais. Deve-se essa conclusão particular no fato de os ritmos e as transformações se condicionarem (também) à fatores internos de cada formação. Ao abstrairmos ao nível de uma totalidade verdadeira e exata, concluiremos, empiricamente, que na atual quadra histórica somente no “elo débil do imperialismo” é que as transformações qualitativas são possíveis. Transformações tais que devem estar em concorde com as com leis sociais e naturais. Leis estas que fogem da manipulação humana.

Assim poderemos nos sentar sobre teorias científicas – como a teoria do imperialismo de Lênin –, e não em “fórmulas” que estão mais próximas de “becos sem saída” que de necessárias luzes ao futuro do desenvolvimento da teoria revolucionária e da humanidade em conseqüência.


O “convite ao desenvolvimento” feito à China



A ênfase na externalidade em detrimento de um equilíbrio que contemple, na análise, o processo de desenvolvimento da formação social em si mesma, sua relação com o mundo exterior e a síntese do interno e o externo, acrescida de uma visão estratificadora – a até certo ponto despolitizada – das relações entre nações levou, por parte de Wallerstein a elaboração que relaciona desequilíbrios estruturais nas estruturas econômicas do “centro” e o respectivo reordenamento geográfico de cadeias produtivas na busca por uma harmonia entre rebaixamento de custos de produção e ampliação de demanda com o desenvolvimento econômico de países “semi-periféricos” (11), de forma que o ciclo da “economia-mundo” voltasse à sua fase de expansão.

Mas retornando, essa visão determinista do processo de desenvolvimento do capitalismo é que se convencionou nomear a via chinesa de desenvolvimento como um caso de “desenvolvimento à convite” (12), caracterizado pelo beneficiamento da potência dominante, os Estados Unidos, de uma realocação de suas empresas privadas em prol de novos mercados e menores custos de forma que o fantasma da inflação deixe de se tornar uma ameaça de contorno político no horizonte de um país onde a “democracia” é medida de acordo com a capacidade de consumo e endividamento de sua população.

A contestação a esta tese não pode ser feita pela via simplista de sua negação em favor de uma internalidade solitária inerente ao processo, o que redundaria cair na mesma receita reducionista da idéia que se busca refutar. Afinal, em perspectiva histórica, o comércio internacional passou de uma variável quase insignificante na Idade Média (comércio inter-feudal) para variável de alta relevância nos tempos atuais, de forma que a periferia sente os efeitos, em seu próprio processo de desenvolvimento, da atuação dos ciclos de média e larga duração do centro do sistema. Assim, como, por exemplo, com o Brasil (que, entre 1930 e 1980, reagiu ativamente às emissões cíclicas do centro), a forma como determinada nação periférica reagir (ativa ou passivamente) denotará em maior ou menor grau de desenvolvimento. Assim, o atraso ou dinamismo dependem, também, do fator externo. Não se guarda dúvidas disso.

Logo, deve-se reconhecer que geopoliticamente a China foi grande beneficiária da contenda EUA/URSS, num processo que se inicia em 1972 com a visita de Nixon ao país e passa por 1979, momento aquele em que a China obteve dos EUA o tratamento de “nação mais favorecida” e foi classificada como “nação em desenvolvimento” redundando em redução tarifas no âmbito do mercado americano para têxteis e vestuários chineses (13). Todo esse movimento foi de grande relevância ao sucesso de um programa de modernização que se assenta no busca por superávits comerciais que de um lado possibilite a modernização da manufatura do país e por outro uma política de juros atraente ao crédito interno. Enfim, negar tal movimento pode trazer o mesmo prejuízo ao conjunto necessário para se formar uma opinião justa, como, por exemplo, ocorre com muita freqüência no Brasil, onde se condena JK por ter internacionalizado a economia brasileira ao trazer as gigantes automobilísticas ao país, porém poucos se dão conta de que somente com a citada internacionalização é que foi possível a estruturação de uma ampla cadeia industrial nacional de autopeças, transformando o Brasil numa potência no setor. Raciocínio semelhante cabe à China e seu crescente adensamento produtivo nacional.

Sob um variado ângulo de análise, sabe-se que o marxismo só pode alcançar o status de ciência pela solidez de seu método. A máxima de que se é concreto, deve ser investigado sob suas múltiplas determinações serve para alçar ao seu devido lugar a geopolítica do desenvolvimento chinês: trata-se de uma, dentre as varias determinações que compõem o processo.

***

Independente do fator geopolítico e seu peso, ao observador mais atento da história chinesa – não somente do desenvolvimento recente, mas principalmente das partes que formam o conjunto desta nacionalidade – soa um tanto quanto estranho atribuir seu fantástico desempenho em variegados campos a uma conjuntura em que a potência hegemônica instaura um “convite” ao desenvolvimento. Da mesma forma, não é fácil acreditar que Bismarck tivesse “jogado” com o chefe de governo inglês, que de seu turno, “permitiu” que da Alemanha nascesse um novo paradigma tecnológico capaz de deslocar a Inglaterra da dianteira do desenvolvimento tecnológico da época. Ou então, num repente positivista, passaríamos a crer que imigrantes europeus no rumo do nordeste dos EUA ou do Planalto Paulista chegaram nas citadas regiões e ao encontrarem condições propícias para a reprodução do espírito empreendedor do self made man (e implantaram as raízes de clusters industriais competitivos na atualidade) tiveram que, amiúde as condições propícias, aguardar permissões externas à concretização de seus sonhos e anseios...

Nação com mais de 5.000 anos de história corrente, Estado Nacional surgido antes do instituto da propriedade privada, artífice milenar do planejamento econômico, de grandes obras hidráulicas, de grandiosas vilas mercantis e do concurso público como forma de selecionar quadros ao serviço público; lócus de onde surgiram propostas filosóficas de fôlego; vanguardeiros da maior rebelião social, não somente do século 20, mas também de todos os tempos e feita sem mesmo a “permissão” ou o “convite” da toda poderosa URSS e contra todas as premissas de lá importadas e impostas.

Mesmo que se sustente empiricamente a “virtuosidade” (nada mais antidialético do que essa variação semântica) das relações entre EUA e China, de um lado diagnostica-se propostas antagônicas de mundo, ao contrário da Inglaterra e Alemanha no século 19, vê-se formações sociais distintas em todos os aspectos, com exceção do dinamismo da pequena produção mercantil.

Além dos elementos constitutivos da formação chinesa, as Quatro Modernizações (agricultura, industria, ciência e tecnologia e defesa nacional) foram amplificadas por Zhou Enlai ainda no início da década de 1960, portanto muito antes do restabelecimento das relações entre China e EUA. Os contratos de responsabilidade entre o Estado e as famílias camponesas que servira de base à ampliação do mercado interno chinês – pós-1978 –, logo condição objetiva à uma demanda crescente de bens industriais já estavam no horizonte de Deng Xiaoping em 1962 (14) e, mesmo hoje, ao contrário do Japão na década de 1980, a China responde uma por uma das várias investidas norte-americanas, seja no campo da economia (câmbio e qualidade dos produtos) e da política interna (direitos humanos, democracia), política externa (Taiwan e influencia chinesa na África e América Latina).



Ora, antes de uma “virtuosidade” sem fundo histórico e teórico/metodológico, não estaríamos diante de um caso típico de um acúmulo de forças no sentido leninista do termo em que a China, no âmbito de organismos como a ONU e a OMC, deliberadamente busca o isolamento estratégico de seu inimigo estratégico? (15)

Acúmulo de forças este que inclui como instrumento, não espantosamente, o financiamento dos chamados déficits gêmeos do imperialismo, numa ousadia política, que no desenrolar dos acontecimentos será de grande proveito nesta contenda de dimensões históricas lubrificada pela política concreta e imediata, porém devidamente motorizada por uma contínua, longa e inescapável luta-de-classes, algo que ninguém está fora e muito menos passível de se abster. Principalmente os chineses.

Notas:

(1) Sobre as “hegemonias” no âmbito do marxismo brasileiro e na análise de sua formação social ler: VIEIRA, Graciana M. E. D. : Formação social brasileira e Geografia: reflexões sobre um debate interrompido. Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992. Florianópolis. 1992. .Sobre as premissas de Wallerstein sugerimos: WALLERSTEIN, I.: “The Capitalist World Economy”. In, Essays by Immanuel Wallerstein. Cambridge University Press, 1979

(2) VIEIRA, Graciana M. E. D. : Formação social brasileira e Geografia: reflexões sobre um debate interrompido. Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 94.

(3) WALLERSTEIN, I.: “Patterns and Prospectives of the Capitalist World-Economy”. In, The Politics of World Economy. Cambridge University Press, 1974.

(4) Wallerstein, Mauro Marini, Gunter Frank e outros se surpreenderiam caso percebessem o engendramento (no Brasil) de ciclos endógenos de curta duração ainda no seio da fazenda de escravos, prenunciando processos de substituição de importações com mais de um século de antecedência aos de tipo industriais iniciados na primeira metade do século XX .

(5) Idem ao 23, p. 72.

(6) VIEIRA, Graciana M. E. D. : Formação social brasileira e Geografia: reflexões sobre um debate interrompido. Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 92.

(7) DOBB, M.: A evolução do capitalismo. Zahar. 1976, p. 155-156. Citado por: Graciana M. E. D. : Formação social brasileira e Geografia: reflexões sobre um debate interrompido. Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGEO/UFSC. 1992, p. 92.

(8) Sobre as duas formas de transição, ler: MARX, K. “Considerações históricas sobre o capital comercial”. In, O Capital. Tomo 3, Vol. 6. e LENIN, V. “Prefácio à 2° Edição”. In, El desarrollo del capitalismo em Rusia. Ariel História. Barcelona, 1974.

(9) In, FERNANDES, L. O Enigma do Socialismo Real – Um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais. Mauad, 2000, p. 138.

(10) ENGELS, F.: AntiDüring. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, p. 127.

(11) Elaboração de forte apelo pela aparência de historicidade que dela procede (tal movimento explica o surgimento em determinados períodos de potências econômicas como a Alemanha e o Japão e até o Brasil, pós-1930), por muito tempo, e ainda hoje, tem expressão no Brasil no pensamento cepalino, que a nosso ver perdeu força com o “milagre brasileiro”, momento este em que tais idéias (segundo Furtado, o “Brasil era um país sem futuro”) foram postas em xeque pela própria dinâmica interna do processo de acumulação em nosso país. Dentre nossos economistas, somente Ignácio Rangel, dada sua sólida formação marxista radical e sofisticação rara entre os marxistas brasileiros, demonstrou fôlego no desmonte das premissas do “dependendismo” e sua face estruturalista/cepalina brasileira.

(12) Sobre os termos, as circunstâncias e os desdobramentos, inclusive no que cerne a uma “intimidade” no campo da finança global deste “convite” ler, WALLERSTEIN, I.: “The U. S. and China: Enemies or Allies?”. Fernand Braudel Center. Birghamton University. 01/03/2000. Disponível em: http://archives.econ.utah.edu/archives/pen-1/2000m04.1/msg00073.htm

(13) MEDEIROS, Carlos Aguiar de: Economia e Política do Desenvolvimento Recente na China. Revista de Economia Política. Vol.19, nº 3, julho-setembro/1999, p. 13.

(14) XIAOPING, D. “Restore agricultural prodution”. In, Selected Works of Deng Xiaoping. Foreign Languages Press, Beijing. 1983, vol 1, pp. 335-340.

(15) Devemos buscar a verdade nos fatos: a China com seu crescente poderio financeiro tem posto fora de ordem as barbaridades praticadas pelos instrumentos geridos pelo imperialismo (FMI, Banco Mundial) pós-Bretton Woods. Até onde se sabe e apesar das contradições inerentes ao processo em si da relação entre a China e muitos países africanos, os chineses não colocam em questão a soberania em matéria de política econômica e de manipulação do orçamento interno de nenhum país africano com quem comercializa ou concede empréstimos. Muito menos “perdoou” as dívidas externas dos países mais pobres do mundo em troca de abertura comercial como propusera recentemente Tony Blair.





*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).



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in VERMELHO -
13 DE FEVEREIRO DE 2008 - 18h44

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