por Elias Jabbour*
Sobre o socialismo
Se da formação sócio-espacial chinesa pode-se extrair elementos que confirmem a necessidade da retomada do debate que envolve a elaboração de uma Economia Política do socialismo, nunca devemos deixar de lado o estágio em que se encontra a transição ao socialismo e ao comunismo em determinada formação sócio-espacial, a chinesa em nosso caso.
Esta é a chave para melhor auferir tanto a historicidade de determinadas categorias (sejam elas historicamente concebidas – mercado e lei do valor, por exemplo -, sejam elas filosóficas transição, processo, por exemplo), quanto da implementação de políticas que estejam em consonância com a base econômica de dada formação.
Por outro lado, vale repetir o já exposto anteriormente, que a transição capitalismo-socialismo em âmbito mundial não deve ser absolutizada, pois o socialismo, diferentemente de outros modos de produção e/ou propostas de sociedade não se baseia na exploração do homem pelo próprio homem, logo a sua cristalização ante o capitalismo poderá ser muito mais lenta e gradual do que imaginamos. Agregamos a isto a seguinte observação de Armen Mamigonian (1996, p. 95-100): ''Assim como a revolução socialista permaneceu isolada na URSS, por décadas, a primeira revolução capitalista ficou isolada na Inglaterra, frente à hostilidade do feudalismo da Europa continental. As relações entre os fenômenos nacionais e mundiais não são tão simples e a transição de um sistema a outro é mais complexa e prolongada do que se imagina.''
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Cotizar os elementos da formação sócio-espacial chinesa com categorias da Economia Política é condição sine qua non à elaboração da citada Economia Política do socialismo. Até aqui tentamos expor algumas abstrações a respeito. Outro passo é caracterizar o socialismo e seu desenvolvimento no âmbito da formação sócio-espacial sugerida para a partir daí termos condições de obter maiores e mais exatas conclusões.
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O socialismo é a fase primária do comunismo e, na concepção dos chineses, a China ainda se encontra na “etapa primária do socialismo” (1). A verdade desta constatação pode ser mais bem auferida se nos apreendermos em Marx, que creditou à transição socialismo-comunismo a tarefa de eliminar as diferenças entre campo e cidade, trabalho manual e intelectual e as inerentes à agricultura e indústria. Os chineses classificam esta constatação de “as três grandes diferenças” (2).
São concretos os fatores que caracterizam a etapa primária do socialismo: 1) formação sócio-espacial onde a maior parte da população está ocupada na agricultura e dependente do trabalho manual; 2) escassez de recursos minerais; 3) ciência e tecnologia atrasadas; 4) grandes disparidades regionais de ordem econômica, social e cultural; 5) grande parte da população vivendo com dificuldades; 6) falta de autonomia tecnológica e de financiamento; e 7) grande distância em relação ao nível de desenvolvimento do centro do sistema (3).
Num país como a China, de dimensões continentais e altamente populoso, cerca de 60% da população vivendo em zonas rurais e onde a própria natureza (montanhas e desertos) é fator de dificuldades, vale questionar: quanto tempo esse processo de transição (socialismo-comunismo) demoraria? Daí ser correta a conclusão chinesa acerca do estágio da transição em que se encontram.
Por outro lado, é evidente que as características apresentadas são expressões do fato de o socialismo ter vencido em formações periféricas. Logo, e naturalmente, as heranças de sistemas anteriores continuam a agir. A conseqüência destas influências é sentida nas superestruturas de países como China, Cuba e Vietnã: são muito sensíveis à fluidez (corrupção, influência de culturas estrangeiras, sobrevivências feudais etc).
Mais especificamente – para o caso da China –, como já exposto, pode se verificar a ação de resquícios do modo de produção asiático. Resquícios positivos (planejamento, administração pública eficiente, capacidade de rápida intervenção sob o território, capacidade de iniciativa comercial dos camponeses etc) e negativos (cultura feudal).
Assim, por mais que a China tenha internalizado os instrumentos (superestrutura de poder popular, socialização dos meios de produção e o planejamento) que viabilizam a anulação da ação do caráter espontâneo da ação das leis econômicas, as leis econômicas intrínsecas a economias planificadas e baseadas na propriedade social ainda não alcançaram um nível de cristalização necessário. A título de exemplo, os sobre-investimentos em determinados ramos industriais na China têm – além do carreirismo de muitos governadores de províncias e/ou regiões autônomas – nas relações (de tipo feudal) entre gerentes de bancos e prefeitos de cidades médias uma das fontes do problema.
Por fim, no âmbito da base econômica ainda é necessária uma combinação dos fatores expostos com a finalidade de se decifrar – minimamente que seja – qual a formatação econômica inerente à uma formação sócio-espacial complexa e única (4) como a chinesa com a fase em que se encontra o seu particular caminho ao socialismo. Para tanto termos em mente as características da chamada etapa primária do socialismo e o fato de o socialismo ser uma grande transição – que envolve outras transições e etapas que podem perdurar até séculos(5) – é primordial à apreensão exata da resposta ao fenômeno.
Prova analítica desta necessária transição foi sublinhada por Marx em sua Crítica ao Programa de Gotha onde argumentou acerca da impossibilidade, após a tomada do poder político pelo proletariado de se suprimir, de forma imediata, todas as diferenças de classe da sociedade. Isso porque, segundo Marx: “uma sociedade comunista que não se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista (...), portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede” (6).
Partindo deste nível de abstração (formação sócio-espacial chinesa, etapa primária do socialismo, impossibilidade de transições imediatas) fica mais claro perceber que na fase em que a China se encontra, o velho e o novo estão na cena e que, assim sendo, uma fase de convivência entre o planejamento, os setores estratégicos da economia e os elementos cruciais do processo de acumulação (sistema financeiro, juros, crédito e câmbio) sob poder do Estado, com outras formas de propriedade (particular, privada, joint-ventures) é amplamente necessária. Necessária para o fortalecimento do Estado socialista e conseqüente sobrevivência num ambiente internacional marcado por uma correlação de forças ainda favorável, em todos os sentidos, ao imperialismo norte-americano. Não somente isso, tal composição de propriedade é condição primordial ao rápido desenvolvimento das forças produtivas, tendo em vista o ainda domínio sobre a subjetividade das amplas massas chinesas da mentalidade típica da pequena produção, afinal a transformação da subjetividade a partir de novas relações sociais é um processo mais largo e demorado do que a vontade humana pode conceber; e as experiências socialistas do século passado – e seus malogros – são prova cabal disso.
De posse destas particularidades fica plausível denominar como uma economia de mercado sob orientação socialista a formatação de uma base econômica em transição como a chinesa. Para termos uma idéia, em Marx, somente na fase superior da sociedade socialista (comunismo) é que se reuniriam condições objetivas à superação do direito burguês e assim passar a regular a distribuição não mais em acordo com o que cada um trabalhou e sim em concordância com as próprias necessidades (7). A razão disso, em Marx, encontra-se na necessidade de se gerar, ainda sob o socialismo, formas que contemplem o rápido desenvolvimento das forças produtivas como forma de se passar de uma situação de escassez para outra marcada pela abundância (8)
Daí a necessidade e a utilidade do mercado – como forma de se regular a escassez e alocar os recursos – e de múltiplas formas de propriedade, nucleada pela propriedade estatal ou coletiva durante a complexa transição de um modo de produção a outro de novo tipo.
De forma generalizada, eis os pilares do que se convencionou chamar de “socialismo de mercado” (9).
Notas:
(1) O economista russo Evgeni Preobrazhenski (1886-1937) foi o primeiro a se referir a uma chamada “etapa primária do socialismo”. Preobrazhenski, que foi um ferrenho opositor da NEP, tornou-se famoso pelas análises da relação entre inflação e industrialização em economias agrárias atrasadas e em estado de isolamento internacional, como a Rússia revolucionária. Sobre suas elaborações sugerimos a leitura de: DAY, R. B.: “Preobrazhenski and the Theory of the Transitional Period”. In, Soviet Studies 8. New York, 1975. e FILZER, D. (org.): “1921-1927: The Crisis of Soviet Industrialization: Selected Essays”. White Plains. Sharpe, London, 1980.
(2) WANCHUN, Pen: The Dialectical Materialism and the Historical Materialism. Foreign Language Press, Pequim, 1985, p. 218.
(3) ZEMIN, Jiang: “Hold High the Great Banner of Deng Xiaoping Theory for an All-Round Advance of the Cause of Building Socialism with Chinese Characteristics into the Twenty-First Century”. Report to the Fifteenth National Congress of Communist Party of China. People’s Publishing House, Pequim, 1992, p. 15.
(4) At last but not least, uma formação sócio-espacial como a chinesa demanda um estudo muito mais objetivo e profundo das complexas estruturas que emergiram e emergem naquela sociedade, de forma que o dogma exportado pelos teóricos da ex-URSS (para quem à equação da complexidade da formação russa apontada por Lênin em 1921 (Sobre o Imposto em Espécie ...) fora superada com o sucesso dos primeiros planos qüinqüenais, logo um dogma da crescente e inexorável homogeneização social e política determinado pela generalização do progresso técnico foi sendo absorvido) não seja repetido numa análise mais fecunda sobre a formação sócio-espacial em tela. Acerca desta generalização na análise soviética ler: FERNANDES, Luís: O Enigma do Socialismo Real – Um balanço crítico das principais teorias marxistas e Ocidentais. Mauad, 2000, 256 p.
(5) Para os chineses, sua etapa primária durará pelo menos o ano de 2050, ano este em que se terá completada sua modernização.
(6) MARX, K. “Crítica ao Programa de Gotha”. In Obras Escolhidas de Marx e Engels . Vol. 1 Alfa Omega. São Paulo. 1977. p. 231.
(7) Idem, p. 237.
(8) Daí a correta afirmação de Deng Xiaoping, repetidas inúmeras vezes nos combates que travou no seio do PCCh de “o socialismo não ser a mesma coisa que pobreza”. Em Deng Xiaoping e sua política modernizadora podemos observar a expressão da transição no seio da superestrutura chinesa de uma subjetividade igualitarista (típica das comunidades agrárias chinesas influenciadas pelo taoísmo e representada na figura de Mao Tsétung) para outra marcada pelo culto à acumulação como parte de um todo que envolve o desenvolvimento integral do socialismo naquela formação sócio-espacial.
(9) Em oportunidade anterior buscamos definir de forma mais detalhada o conceito de socialismo de mercado em: JABBOUR, E. “O que é socialismo de mercado?’ In, JABBOUR, E. China: desenvolvimento e socialismo de mercado. Cadernos Geográficos. Depto. de Geociências do CFH-UFSC. 2006, 86 p.
*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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in Vermelho - 27 DE FEVEREIRO DE 2008 - 19h55
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