Revolução + Desenvolvimentismo
Amparado pela argumentação contrária ao mundialismo metodológico, intento nesta parte 5 aplicar a categoria de formação sócio-espacial ao diagnostico do processo tanto da revolução de 1949, quanto das reformas iniciadas em 1978.
Uma Economia Política do socialismo em consonância com nosso tempo e desafios deve obedecer a duas ordens de fenômenos, a saber: uma geral, global e outra específica, mais relacionada com determinado território e/ou região. Em ambos os casos devem ser observados, à construção da teoria, a forma como deverão ser inseridas as categorias filosóficas de transição e processo, a correlação de forças na luta-de-classes em âmbito mundial, a história das transições anteriores ocorridas no mundo e do socialismo no século 20 em particular.
No específico, a principalidade reside na investigação da história de determinada formação sócio-espacial, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção e da relação entre superestrutura e base econômica, de forma que de uma visão de conjunto - sem direitismos, nem esquerdismos, nem tampouco idealizações - um poder político de caráter popular possa dar bom termo à complexa tarefa de transição entre um sistema sócio-político e outro e a gradual transformação das relações sociais herdadas de determinado modo de produção em vias de superação.
Tendo em mente que o processo histórico só é passível de ser analisado no concreto no âmbito da formação sócio-espacial, que seu contrário redundaria na negação da categoria de modo de produção, será que poderemos na esteira desta discussão falar – inclusive – de uma Economia Política da formação sócio-espacial?
Respostas na história
As respostas aos porquês que envolvem o desenvolvimento chinês devem ser, necessariamente, relacionados com: 1) sua Revolução Nacional-Popular de 1949 que criou as condições políticas ao rompimento do círculo de dominação estrangeira, em favor da edificação socialista e da utilização do planejamento econômico e da hegemonia estatal sob os setores estratégicos da economia, anulando assim o aspecto espontâneo inerente à ação das leis econômicas (logo substituindo a anarquia da produção pela tomada do processo consciente de desenvolvimento); 2) por fatores naturais, entre eles a constelação de recursos oferecidos por seu território de cerca de 9.000.000 km2, possibilitando assim a “construção do socialismo em um só país” e 3) por fatores sociais, entre eles a estrutura social estabelecida naquele território durante um processo de sedentarização de tribos nômades sobre imensos vales férteis datada de 5000 anos atrás, criando condições ao surgimento, tanto de uma pequena produção camponesa, quanto do estabelecimento de um império centralizado, servindo de base, desde seus estertores (cerca de 2.500 anos atrás, unificação da nação), a um acelerado e precoce processo de desenvolvimento das forças produtivas, surgimento de instituições estatais, do mercado e comércio interno e externo e milenar utilização de mecanismos de planejamento estatal (1).
Descendo ao específico e buscando nexos genéticos entre a formação social chinesa e seu processo de revolução e reforma, o elemento camponês é de capital importância e inclusive dá cores originais e por isso o que se busca na China desde as lutas revolucionárias lideradas por Mao Tsétung é a viabilização do que se convencionou chamar de “socialismo com características chinesas”, aliás, num a clara alusão à independência do processo revolucionário chinês e expressão de uma subjetividade nacional milenar e sem complexo de inferioridade com relação a nenhum outro povo ou nação. Retornando, do elemento citado, para fins de melhor compreensão do processo de desenvolvimento da civilização e nação chinesas, é importante ressaltar pelo dois aspectos: 1) o aspecto rebelde, contestador e 2) o aspecto empreendedor, típico da subjetividade de regiões do globo onde predominou a pequena produção mercantil (nordeste dos EUA, p ex.).
Desde a formação do Império Chinês até a fundação da República Popular em 1949, o processo de substituição de dinastias é caracterizado pelo erupção de revoltas camponesas. Foi assim em 221 a.C., em 1368, 1644, 1820 e na proclamação da República da China em 1911. A última rebelião camponesa chinesa levou o Partido Comunista da China ao poder em 1949. Ora, isso se explica tanto pela formação de uma subjetividade nacional (confucionismo e taoísmo) para quem “todo poder emana dos céus, porém o mesmo é revogável pelo povo”, quanto pelo próprio modo de produção surgido neste tipo de formação sócio-espacial: o modo de produção asiático. O modo de produção asiático correspondeu ao primeiro grande esforço de planejamento estatal ao intervir – com o apoio de massas camponesas – em imensas obras hidráulicas que permitiram ampliar as áreas agriculturáveis, a partir de áreas propícias (centrais), para áreas menos favorecidas pela natureza (2).
A análise histórica e radical pode nos levar a irresistível constatação que prova que a prática milenar de planejamento territorial – inerente ao modo de produção asiático – pode ser observada ainda hoje na China, tendo em vista o dinamismo do Partido Comunista da China (PCCh) em prover políticas públicas com rápidos impactos sob o território do 3º maior país do mundo com uma população estimada em 1,3 bilhão.
A dinâmica cíclica do modo de produção asiático demonstra que de períodos largos de tempo, as forças produtivas, apoiadas em grandes obras de engenharia, desenvolviam-se rapidamente, contribuindo assim ao crescimento geométrico da população (daí a China ser o país mais populoso do mundo), porém em outras épocas percebia-se a apodrecimento de determinada superestrutura, expressada na cada vez maior corrupção e inépcia estatal em tocar adiante projetos necessários à reprodução econômica e social, daí as revoltas camponesas terem cumprido papel central à formação e desenvolvimento da nação chinesa (3). Essa percepção do histórico papel camponês foi a maior prova de sabedoria e independência política de Mao Tsétung, fundamental pra o sucesso da revolução de 1949.
Formação sócio-espacial das reformas chinesas
Partindo do princípio da não existência de modos de produção “puros”, como explicar, a partir de uma análise histórica e fundamentada na categoria de Formação Sócio-Espacial, o sucesso da “economia socialista de mercado” na China, tendo em conta que a China cresce ininterruptamente há quase 30 anos? Será que se trata apenas de um “modelo exportador” eficiente? Um capitalismo sustentado na superexploração de mão-de-obra abundante como sugere muitos analistas? Ou uma expressão de algo construído historicamente e assentado numa civilização milenar que foi capaz de gestar filosofias com propostas éticas e morais semelhantes às criadas na Grécia antiga e também de uma economia mercantil com mais de três milênios de existência?
Como já sugerido acima, alguns fatores genéticos têm grande poder de explicação acerca do fenômeno. Ao contrário de experiências passadas de “socialismo de mercado” (Hungria, Iugoslávia e Polônia) onde, amiúde a conjuntura política e histórica, tentou-se instituir modelos mercantis em sociedades onde revoluções burguesas foram abortadas e em seguida um processo de refeudalização foi posto em marcha (processo este encerrado com a instalação de democracias populares após a Segunda Guerra Mundial), a China desde seus primórdios civilizacionais, com uma massa camponesa assentada sobre vales férteis rapidamente, dada as boas condições naturais, permitiu a surgimento de uma divisão social do trabalho, ou em outras palavras, do mercado como instituição. Esta tradição comercial pode se fazer sentir tanto na expansão territorial chinesa, quanto nas centenas de expedições feitas pelo mundo por chinesas (diga-se de passagem, os chineses foram os inventores da caravela) entre os séculos 12 e 15.
Tais zonas de pequena produção mercantil (vales do rio Yangtsé e Amarelo), e seu atual desenvolvimento capaz de puxar à frente a locomotiva chinesa (Vale do Yangtse, Xangai e Guangdong) se enquadram perfeitamente na idéia marxiana – já citada – de “via revolucionária” ao capitalismo de transformação em capitalistas não de comerciantes e sim de pequenos produtores (4). Evidente que uma revolução burguesa não ocorreu na China, mas desta constatação, podemos tirar algumas outras conclusões.
De certa forma fica subentendido que Mao Tsétung apoiou-se nos camponeses pobres para levar à cabo a revolução Nacional-Popular que liderou. Agora, fica uma questão grávida de resposta que se relaciona com quais forças sociais pode Deng Xiaoping (5) apoiar-se para levar adiante seu audacioso programa de modernização da China e, partindo deste programa, inclusive poder ter resistido aos ventos contra-revolucionários do final da década de 1980 mantendo a China no mesmo rumo traçado em 1949 e retificado em 1978.
Pequena produção mercantil e socialismo
Ao longo do tempo, das análises e de conversas feitas no Brasil e na China e munidos do referencial teórico e metodológico do materialismo histórico constatamos que a base à um novo processo de acumulação de novo tipo (socialista) (6) iniciada com a política de Reforma e Abertura, está toda uma classe de camponeses médios, com comprovada capacidade de iniciativa empresarial, capacidade esta recriminada desde do período que vai do início da década de 1950 até 1978. A pujança econômica chinesa explica-se muito pela liberação destas energias camponesas esmeradas por séculos de pequena produção mercantil. Não é de se estranhar que mais de 70% dos atuais empresários de nacionalidade chinesa eram camponeses médios em 1978 e que somente na cidade sulista de Shenzen (espelho maior das reformas pós-1978), cerca de 90% dos empresários o eram em 1978 (7).
Em resumo, pode-se auferir, ao caso atual da China é perfeitamente plausível a aplicação da idéia leniniana que relaciona a implantação do socialismo em formações periféricas com a “ressurreição” do espírito empreendedor, a energia e a ousadia empresarial típicas da pequena produção mercantil e que há muito tempo já fora sufocada pelo advento do monopólio (8).
Notas:
(1) Sobre a formação social e cultural do povo chinês e a relação de tal formação com o desenvolvimento do marxismo e do socialismo na região, ler: MAMIGONIAN, A. “As bases naturais e sociais da civilização chinesa”. In, Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.
(2) MAMIGONIAN, A.: “Desenvolvimento Econômico e Questão Ambiental”. In, Cadernos da VII Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Junho de 1997.
(3) O poder camponês pode-se fazer sentir ainda nos dias de hoje, onde pressões desta camada social têm levado o governo chinês e o Partido Comunista dirigente a centrar fogo em projetos que tem por objetivo reduzir as diferenciações sociais e territoriais do país após quase 30 anos de início da política de Reforma e Abertura. Essa pressão camponesa sobre a superestrutura do país é fator a se levar em conta em análises que tentem contemplar as diferenças entre China e URSS: enquanto o camponês russo sempre fora um servo, o camponês chinês sempre foi um agricultor livre.
(4) Sobre esta forma de transição feudalismo-capitalismo ler artigos de Maurice Dobb em resposta a Paul Sweezy In, A transição do feudalismo para o capitalismo. Paz e Terra , 5° Edição, São Paulo, 2004, 247p.
(5) É mister salientar que Deng Xiaoping valeu-se de sua experiência revolucionária (aos 25 anos já era general do Exército Vermelho) e dirigente (desde o início da década de 1950 era membro do Politburo do PCCh) para colocar a China no rumo que está em nossos dias. Como homem que viveu “por dentro” o século XX pode se basear, e muito, nos erros e acertos de processos como o próprio chinês, mas também o soviético.
(6) Dizemos de novo tipo, pois ao contrário do modelo soviético em que a relação entre campo e cidade - à formação de poupança - era marcada pelo desfavorecimento do campo, as reformas de 1978, inspiradas na NEP de Lênin são caracterizadas pela inversão desta prioridade. Esta inversão de prioridade, no caso chinês, deve-se não somente a fatores econômicos, mas principalmente à fatores de ordem políticos, pois os camponeses, desde 1928, é a base social do PCCh.
(7) WENZHEN, Pen: Entrevista concedida a Elias Jabbour. Comissão de Assuntos Econômicos da Assembléia Popular de Shenzen. Shenzen, Guangdong, 15/10/2006.
(8) Lênin expõe esta posição em meio à polêmica que se seguiu à necessidade de utilização de mecanismos de mercado durante o processo de acumulação primitiva socialista na URSS. Sugerimos a leitura de LÊNIN, V. “Como organizar a emulação?”. In, Obras Escolhidas. Vol. 2 Alfa Omega. São Paulo. 2004. pp. 441-447.
*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
.
in VERMELHO - 20 DE FEVEREIRO DE 2008 - 15h56
Sem comentários:
Enviar um comentário