• Jorge Messias
O silêncio que cobre
e o outro que descobre
Após o 25 de Novembro de 1975, quando o socialismo balbuciava a custo em português, todas as grandes linhas de força que orientaram a acção dos sucessivos governos (esquerda, centro e direita) visaram instalar na sociedade portuguesa o princípio do trespasse do poder. As principais políticas abriram caminho às privatizações, à recuperação pelos capitais privados das empresas nacionalizadas, às fusões financeiras, à submissão aos interesses estrangeiros, à prática impune da corrupção a todos os níveis e à proliferação das alianças secretas entre os agentes do poder, os especuladores bolsistas e os serviços de informação transnacionais. Os grandes marcos desta caminhada foram, como é sabido, a adesão à CEE, depois à União Europeia, finalmente ao Tratado da Europa. As noções de soberania ou de justiça social foram esmagadas pelos critérios exclusivos da acumulação e do lucro.
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Perante esta sistemática política de traição do significado real dos interesses, das conquistas e dos direitos do nosso povo, os pólos que se esperaria representarem o ressurgimento de uma consciência popular e concorrerem para a sua implantação – a maioria dos partidos políticos, a comunicação social e a Igreja – demitiram-se da sua missão e enfeudaram-se ao poder dominante ou ao obscurantismo. Venderam-se. Colocaram os seus interesses particulares acima dos seus deveres para com o colectivo que diziam representar.
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Se passássemos a pente fino este período recente veríamos facilmente que, no encadeado dos quadros que o compõem, a perspectiva foi sempre a mesma, tal como nas peças de teatro ou nas telenovelas. Há uma dramatização inicial de factos que nem sempre têm a projecção que lhes é dada. Um cenário intermédio de polémica e pseudo-debate. E um fiozinho lógico que ora tapa, ora destapa o mundo real, conforme o que mais convém àquilo que o dramaturgo quer dizer. Neste terceiro acto que agora se representa, o drama inicial transformou-se já numa comédia. Com graves prejuízos para uma informação honesta e para a unidade de luta contra esta situação que prenuncia ou precede a tirania.
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O tablado actual
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Como se sabe, os problemas reais do povo português giram em torno do desemprego ou do emprego fictício, do custo de vida, dos cuidados de saúde, da iliteracia, da impreparação profissional, da injustiça social e das raízes do mundo tenebroso que se tapa ou se destapa quando se fala em pobreza e em riqueza. Mas quando os poderosos falam em «comunicação», imaginam-se num mundo virtual onde podem ditar cinicamente as suas leis. Veja-se só o que se passa em Portugal, nestes primeiros meses de 2008.
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O palco divide o seu espaço por três quadros que, à vista do público, desenvolvem em paralelo as suas ficções. No Espaço A, a história conta a lenda do Tratado Europeu, do Tratado de Lisboa, do Referendo «que não há» e da gloriosa presidência portuguesa da União Europeia. No Espaço B, representam-se as utopias do novo Aeroporto, do TGV, das vergonhas da banca e dos mirabolantes «fundos europeus». Finalmente, no Palco C, o argumento é outro: é o caso dos terroristas do «Eixo do Mal» que querem destruir a Torre Eiffel e são tão ingénuos que põem tudo no ar, em conversa amena, mesmo junto aos ouvidos dos serviços secretos da concorrência.
É o mundo do «faz de conta». Destapa-se para voltar a tapar. O Tratado Europeu e o Tratado de Lisboa são uma e a mesma coisa. O referendo é uma miragem, uma história de embalar composta pelos Sócrates deste mundo. Provavelmente, os mega-negócios do Aeroporto e do TGV nunca terão lugar em Portugal. A crise económica do mundo capitalista é real. Que levaria então a UE a arriscar biliões e biliões de euros num país pequeno onde a economia mal sobrevive? Reduzida às sua verdadeiras dimensões, a presidência europeia de Portugal foi um pró-forma, não aqueceu nem arrefeceu. E que quer mais a Europa de Portugal, um país onde os banqueiros se enredam em grandes negócios como o do BCP e, depois, não sabem como sair da aventura em que se envolveram? Ou onde a Igreja Católica «não lucrativa» envolve os seus bancos no escândalo do BCP (que é um deles) e chama à liça esmagadores grupos financeiros espanhóis (também seus) como o Santander, La Caja, Sabadell, Itaú, Allianz, Crédit, Bilbao-Vizcaya, etc., etc. Não foi só em Portugal que a crise estalou. São as superestruturas do capitalismo mundial que a cada passo confessam os seus receios pela sobrevivência das suas instituições financeiras. E o Vaticano estremece ao pensar que uma nova edição do escândalo ambrosiano pode estar a aproximar-se a passos largos.
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A farsa do capitalismo democrático está a um pequeno passo do desastre. Não há varinha mágica que o possa salvar. Roeu e sugou a carne e o sangue dos explorados. Resta-lhe devorar-se a si próprio. Aparentemente, pouca margem de manobra lhe resta.
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in Avante 2006.02.07
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