ANO III Nº 27 JUNHO 2000 |
Rui Ribeiro da Costa
Apesar dos oradores presentes não terem abordado os proprósitos da acção do Estado português, durante os treze anos que durou a guerra no Ultramar, o I Congresso Internacional Sobre a Guerra Colonial, que se desenrolou em Lisboa no mês de Abril, por aquilo que foi relatado nos orgãos de comunicação social, apresentou algumas intervenções notáveis e provocatórias, sobre as quais deveríamos reflectir.
Uma delas, logo no primeiro dia, foi a do Coronel Matos Gomes, ao sustentar a tese que a guerra colonial foi uma realidade que partiu da fantasia de que tínhamos um Império (DN, de 14/4/2000). Pela primeira vez, uma alta patente das FA portuguesas exprime publicamente a sua discordância em relação às causas que as levaram a pegar em armas no período compreendido entre 1961 e 1974. Algo que vários sectores militares e políticos de países como os EUA, a França ou a própria Rússia, têm feito em relação à guerra da Argélia, do Vietname e do Afeganistão, mas que em Portugal ainda não tinha ocorrido. Mas o maior mérito das afirmações do Coronel Matos Gomes consiste no facto de que ao proferi-las, ele está a apontar o dedo aos verdadeiros responsáveis pelos dramas provocados por uma descolonização, que irónicamente muitos ainda insistem em chamar de exemplar , e em transferi-los, não para os governos pós-25 de Abril, que a levaram a cabo, mas pelo contrário, para o regime político anterior que acreditou na fantasia do Império. Não sendo possível na esfera política negociarem-se fantasias, o que aquele militar está a dizer, é que Portugal ao insistir teimosamente, contra ventos e marés, na unidade do seu território pluricontinental, e não sendo essa unidade mais do que uma ficção política que nada tinha a ver com a realidade, desperdiçou irremediávelmente a oportunidade de gerir o momento em que a descolonização se deveria dar. Portugal perdeu assim o combóio da descolonização, e quando se viu forçado a embarcar nele, pouco ou nada havia já a negociar. Numa altura em que se inauguram monumentos aos combatentes e aos mortos da Guerra Colonial, mas em que se não escuta nenhuma palavra de apreço para com os desertores e refractários dessa mesma guerra, quando eles foram os primeiros a dar conta da ficção em que vivia mergulhada a situação ultramarina, e a rebelarem-se contra ela, é bom ouvir estas coisas da boca dos que a conduziram. Porque esta fantasia não foi só a maior tragédia imposta à juventude portuguesa nos últimos 50 anos. Foi também ela a responsável pela não democratização do regime, pelo atraso económico, pelo adiamento da integração do nosso País no espaço europeu, pelo isolamento internacional...
Uma outra afirmação curiosa produzida no Congresso, foi a do General Garcia Leandro, quando declarou que nenhumas outras FA deram ao poder tanto tempo para resolver a questão colonial. ( DN, mesma data ). Nas entrelinhas, o que eu leio, é que se o poder politico tentou manter viva a ficção do Império, as FA foram, mais do que seria razoável, igualmente responsáveis pelo prolongamento dessa ficção, tendo-lhe inclusivamente alimentado durante treze longos anos a sua agonia, apesar de ser ponto assente que o Governo não estava interessado numa solução negociada, e que uma vitória militar que lhe pusesse termo não era possível no terreno. É certo que a sociedade militar deve obediência ao poder politico, mas também é verdade que esse poder não tinha qualquer legitimidade para impôr tal sacríficio ao povo português, como muito bem sabia a maioria dos oficiais superiores. Por isso, o que o General Garcia Leandro está implicitamente a reconhecer, é que as FA ao acei-tarem sem reservas a manutenção de uma guerra em três frentes durante mais de uma década, foram tão responsáveis como os dirigentes politicos que na época que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, quando começaram a soprar os ideais nacionalistas nas colónias europeias, não souberam criar condições para a evitar.
Curiosamente contudo, esta responsabilidade dos militares, não tem sido posta em evidência por ninguém, apesar deles terem constituído um dos mais sólidos esteios em que assentou o Estado Novo, e de a instituição militar ter nessa altura um peso politico muito superior ao detido nos nossos dias, o que se explica pelo facto de ter sido ela quem desencadeou o 25 de Abril. A gratidão que lhes é devida por tal acto, tem feito esquecer as pessoas que se é verdade que foi o poder militar quem nos devolveu a liberdade, também é verdade que foi ele quem no 28 de Maio nos a tinha sonegado. O 25 de Abril foi assim a reposição do Estado democrático que 48 anos antes as armas nos tinham tirado. Essa gratidão tem igualmente feito esquecer o facto de que o Movimento dos Capitães não foi constituído por razões politicas, mas sim corporativas, já que o que levou os oficiais que a ele aderiram a derrubar a mais velha ditadura da Europa Ocidental, foi a sua oposição ao Decreto-Lei 353/73 que visava facilitar a progressão aos oficiais milicianos ( que eram cada vez mais), privilégio que os aristocráticos militares oriundos da Academia (que eram cada vez menos ) consideravam inaceitável. A guerra colonial foi aliás, para a maioria dos oficiais do quadro permanente que a fizeram, uma fonte incomensurável de comendas, o que talvez explique a razão porque os militares a suportaram durante tanto
tempo, e porque na primeira alocução ao País após a rendição de Marcelo Caetano, Spínola a quem os capitães tinham entregue o poder, reafirmasse o conceito colonial do Estado português, uno e indivisível. O que a concretizar-se representaria a manutenção triunfante da ficção no novo regime implantado pelo MFA.
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