por Elias Jabbour*
Reflexões sobre a China, a Economia Política do socialismo e a categoria de Formação Econômico-Social (1)
Na parte 1 destas reflexões objetivarei argumentar acerca da necessidade da pesquisa, para em seguida circular um pouco na idéia de mercado como categoria historicamente concebida e por fim demonstrar as primeiras elucubrações acerca de idéia de “socialismo de mercado” enunciada pelos neoclássicos e Lênin.
Introdução
Partindo das categorias filosóficas de “processo” e “transição” e de categorias historicamente definidas como “mercado”, “lei do valor” e “modo de produção”, o objetivo aqui é demonstrar que o sucesso do modelo mercantil sob orientação socialista na China suscita o necessário resgate que contemple uma nova elaboração do que se convencionou chamar de Economia Política do socialismo. Porém - e à luz da história -, o atual debate que pretendemos abrir deve-se abster da generalização imposta entre as décadas de 1930 e 1990 do século passado, momento aquele em que se impôs de cima para baixo um único modelo de socialismo, o intitulado “modelo soviético”.
Para tanto – além dos clássicos do materialismo histórico – recorremos a autores como o economista polonês Oskar Lange, a quem devemos uma construção teórica e não-religiosa de uma “economia mercantil sob orientação socialista”, porém é na categoria de “Formação Econômico-Social” que tentaremos calcar a cientificidade e a possibilidade de uma elaboração como a que pretendemos. Pois, é na formação econômico-social – e não na realidade geral – que se realiza o concreto, afinal a formação econômico-social é o próprio concreto que deve ser investigado como síntese das múltiplas determinações. E isso se aplica tanto às experiências de revolução e construção socialistas do século passado, quanto as atuais em andamento, notadamente a extraordinária experiência de revolução e edificação socialista na China.
A variável principal na viabilidade econômica
Uma das grandes características do “modelo soviético” de desenvolvimento estava calcada no caráter intensivo de seu sistema produtivo, ou seja, na mobilização de imensos recursos numa escala temporal curta, o que incidia – não em poucos casos – em desperdício de recursos e energia vitais à reprodução do sistema em si.
A título de exemplo fica o fato, segundo se auferiu que enquanto, na década de 1970, um país como a China utilizava uma certa quantidade de energia à obtenção de 1% de crescimento econômico, um país capitalista desenvolvido utilizava uma quantidade até três vezes menor de energia. Evidente que isto deve ser historicizado, afinal seja a China, seja a URSS não contavam com colônias externas e se desenvolveram em meio a cercos tanto econômicos quanto militares. Porém, prejuízos de variada ordem foram sentidos tanto no sistema social e seu desenvolvimento em si, quanto – partindo de uma visão de conjunto – no território como um todo (1).
Partindo do pressuposto de que a determinação econômica baliza todo o desenvolvimento da ordem social, com influências concretas sobre todo o conjunto do sistema e do território e que as primeiras experiências socialistas ocorreram em formações econômico-sociais onde (apesar da transformação no âmbito da superestrutura), a base econômica e a subjetividade como um todo da sociedade não estavam em condições de adaptação a novas relações de produção, o desenvolvimento econômico e as formas de alcançá-lo tornam-se fonte de discussão e expressão tanto de uma acertada decisão (como a atual opção chinesa), quanto de óbices posteriores.
Descendo no nível do concreto, isso trás conseqüência direta sobre a relação entre o socialismo como ideal cientificizado de uma sociedade capaz de superar o capitalismo e sua viabilidade econômica, a viabilidade de sua aplicação. Enfim, da própria necessidade de elaboração de uma Economia Política do socialismo como cristalização de uma experiência concreta e em condições de dar respostas não somente às contradições do capitalismo em si, mas também a uma correlação de forças atual – em todos os campos, principalmente no campo das idéias – onde cabem as mesmas palavras de Lênin acerca da conjuntura pós-Revolução de 1905: “(...) desânimo, desmoralização, cisões, dispersão, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, misticismo como disfarce de um estado de espírito contra-revolucionário.” (2).
Retornando, dada as idiossincrasias históricas das experiências socialistas nos séculos passado e presente e as características das formações sociais dos países que passaram (e passam) por essa experiência, o êxito do modelo chinês e o necessário resgate do debate da retomada da construção da Economia Política do socialismo se devem ao fato de – entre outras coisas - a China responder de forma prática à principal questão levantada nos debates do início do século passado:
É possível, sob o socialismo, um sistema contábil e de preços capaz de servir de guia à alocação eficiente de recursos?
O êxito chinês bem analisado sob suas múltiplas determinações pode servir à contraposição ao senso comum – nascido na década de 1930 e que se exacerbou na década de 1990 acerca da inviabilidade econômica do socialismo.
Superficiais considerações sobre o mercado e a transição
Uma necessária polêmica que deve ser enfrentada é relacionada ao senso comum que relaciona mercado com capitalismo e que, portanto, socialismo e mercado são duas categorias incompatíveis, assim como capitalismo e planejamento econômico ou territorial (3). Isso se aplica também à lei do valor. Enfim, o mercado deve ser visto, de forma pobre, apenas como o local onde se encontra a oferta e a procura, ou analisado como uma categoria historicamente concebida?
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O mercado é uma categoria histórica e como toda categoria histórica - seja o mercado ou a lei do valor - demanda condições objetivas e subjetivas à sua superação (4). A bem da verdade o mercado é síntese da separação, no bojo da economia doméstica, entre a economia de ganho e a troca. Retornando, como síntese da ação espontânea das leis econômicas expressas nas relações homem-natureza e do nível do desenvolvimento das forças produtivas dela derivada, sua superação (no caso em tela, do mercado) não é determinada pela vontade humana. Afinal, a história do homem ou mesmo a história da natureza devem ser observadas como um grande processo permeado por transições dentro de outras transições e assim sucessivamente.
Por outro lado enxergando a história sob o ângulo das categorias filosóficas de processo e transição, vale enfrentar – de forma rápida - uma outra polêmica encerrada na dicotomia: socialismo como superação do capitalismo ou como uma proposta anticapitalista. Ora, como proposta política e bandeira estratégica de luta, o socialismo identifica-se como algo diametralmente oposto ao capitalismo e suas contradições, porém como construção que demanda longos processos históricos e tendo em relevo sua ocorrência não no centro do sistema e sim na periferia onde as forças produtivas sociais não chegaram a determinados patamares e onde a mentalidade da pequena produção é hegemônica, o socialismo é uma etapa que inicialmente busca superar o capitalismo partindo de parâmetros produtivos semelhantes ao capitalismo pois:
1) ainda faz-se necessário a utilização de mecanismos de mercado como a melhor forma criada pelo homem à melhor alocação de recursos;
2) a produção de mercadorias subsiste mediada produtivamente, seja por sua forma em pequena produção mercantil (NEP na URSS), fordista (modelo soviético), seja pela forma mais avançada e próxima do socialismo, o toyotismo;
3) a mais valia continua exercendo seu papel, porém agora não mais sob forma de apropriação privada, mas sim concentrada e voltada às necessidades do plano e da sociedade;
4) O processo de acumulação socialismo não prescinde da etapa financeira (sistema financeiro completo sob o formato de bancos e mercado de capitais), daí para Lênin, “a economia monetária sendo a maior invenção do capitalismo, também deve estar a serviço do socialismo” e
5) Enfim, as diferença entre capitalismo e socialismo restringe-se à nova composição de classes no poder, pela forma de apropriação do excedente econômico, pela propriedade social dos meios de produção nos setores com alto grau de monopólio e a ampla utilização dos mecanismos de planejamento e não pelo processo produtivo em si.
O exposto acima, ao ser analisado de forma minuciosa e à luz das características de dada formação econômico-social serve à abertura de um amplo relevo de atividade científica que tem como núcleo a possibilidade de funcionamento de uma economia centralmente planificada, baseada na propriedade social dos meios de produção onde as relações de troca, distribuição e alocação de recursos tem no mercado o seu norte.
Os neoclássicos e Lênin
Interessante notar que foram os neoclássicos e não os marxistas propriamente ditos os primeiros economistas que demonstraram não somente a possibilidade econômica do socialismo, como o da combinação entre plano, mercado e superestrutura de poder popular. Assim podemos classificar Vilfred Pareto e Enrico Barone como pioneiros da idéia de uma economia mercantil sob orientação socialista.
Ambos partiram do correto princípio que compreende a similaridade de funcionamento econômico do capitalismo e do socialismo. Assim, concluíram que as condições de equilíbrio poderiam ser alcançadas pela utilização de um sistema de equações simultâneas onde os preços delas resultantes poderiam servir de parâmetro à correta e racional alocação de recursos (6).
Já em matéria de prática concreta em “socialismo de mercado”, além do modelo inaugurado em 1978 na China, vale mencionar a Nova Política Econômica (NEP) apresentada por Lênin no final da década de 1910 e aplicada a partir da década de 1920. Apesar da necessidade de se historicizar cada uma das citadas experiências, uma série de convergências podem destacadas, entre elas: 1) superestrutura de poder popular; 2) concentração da propriedade estatal e/ou coletiva restrita aos setores com alto grau de monopólio; 3) estatização do comércio exterior; 4) internalização de tecnologia avançada a partir de concessões a investimentos estrangeiros; 5) permissão à comercialização de excedentes agrícolas, dando margem a: A) uma divisão social do trabalho marcada por relações favoráveis à agricultura em relação à cidade; B) transformação de recursos ociosos na agricultura em poupança inicial à modernização industrial do país (7).
Resumindo, já em Lênin a possibilidade de uma regulação mercantil no âmbito do poder popular e do plano já fora auferida e posta em pratica. Desta forma, nada do que a China aplica em matéria de política econômica e transição a uma organização superior de sociedade é novo. O que muda é a conjuntura e o nível de acirramento da luta-de-classes em âmbito mundial, que por sua vez viabiliza ou não determinadas experiências e ousadias em matéria de pratica política e de programação econômica.
Assim sendo, a correlação de forças da luta-de-classes em âmbito mundial e nacional é determinação (dentre as múltiplas) de primária ordem à elaboração de uma Economia Política do socialismo calcada na categoria de Formação econômico-social, pois tudo está em movimento. Nada é estático nem sólido e o processo - filosoficamente falando - está sob comando da política, que por seu turno tem seu centro imediato na correlação de forças. Exemplo disso é a relação entre correlação de forças e margem de manobra à propriedade privada dos meios de produção durante o processo de implantação socialista.
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Notas:
(1) Se o socialismo foi pioneiro tanto no desenvolvimento e aplicação do planejamento econômico, quanto no planejamento territorial (vide URSS entre as décadas de 1920 e 1950 e a China pós 1978 e sua idéia de concentração no litoral desconcentração de investimentos atual no interior), uma grande área de pesquisas a ser explorada aos geógrafos está em aberto. Tentamos, de forma preliminar ocupar este espaço com a publicação de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” (Anita Garibaldi, 2006. 256 p.) onde constatamos que a maior (planejada há cerca de três décadas) transferência de renda de um ponto para outro do território tem na China atual seu palco.
(2) LÊNIN, V. I.: “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”. Anita Garibaldi, 2004. p. 32. Essas sábias palavras cabem perfeitamente à geografia brasileira de hoje.
(3) Sobre o mercado e a lei do valor, no Suplemento ao Prefácio do Tomo 3 de “O Capital”, F. Engels escreveu: “Mas a troca de mercadorias remonta a uma época pré-histórica que nos reporta, no Egito, apelo menos 3.500, talvez 5.000, na Babilônia, a 4.000 e talvez 6.000 anos antes de nossa era; a lei do valor reinou por conseguinte durante um período de 5.000 a 7.000 anos”.
(4) A principal condição objetiva à superação do mercado é a capacidade de produção magnitude tal que a escassez venha a ser superada, pois o mercado é meio de auferição da escassez. Já como condição subjetiva pode-se citar um poder político comprometido com a abolição da exploração do homem pelo próprio homem e da quebra do poder exercido pelo monopólio/oligopólio de indução de elasticidade na oferta de produtos.
(5) Em diversas ocasiões circunstanciadas em dezenas de artigos escritos entre os de 1918 e 1924, Lênin deixa clara a necessidade do socialismo se apropriar das maiores invenções e técnicas postas em uso pelo capitalismo. Isso deveria de servir de parâmetro a heresias como as reproduzidas pelos laboratórios de Geografia Agrária da USP e UNESP de Presidente Prudente acerca da erupção de uma nova sociedade partindo de formas primitivas de agricultura e calcadas em conceitos sem fundo científico como “agricultura familiar”.
(6) Pareto demonstrou sua hipótese em duas obras: “Socialist System” (1903) e “Manual of Political Economy” (1906). Barone destacou-se pela publicação, em 1908, de “The Ministry of Production in the Collective State”.
(7) A NEP como experiência foi abortada pelo acirramento da luta de classes no âmbito mundial (isolamento comercial da URSS); logo, o “modelo soviético” marcado pela formação de poupança relacionada às safras agrícolas foi a melhor forma de se auferir uma rápida industrialização. Sobre a “espinha dorsal” da NEP ler: LÊNIN, V. I.: “Sobre o imposto em espécie (o significado da nova política e suas condições)”. In, “Obras Escolhidas”. Vol. 3 Alfa Omega. São Paulo. 2004. pp. 492-520.
*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).
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