| | Um toque de modernidade enganador
| O INE publicou recentemente um estudo, ainda que sintetizado, dos orçamentos familiares baseado numa recolha de dados realizada entre Outubro de 2005 e Outubro de 2006. Com base em tal estudo alguma comunicação social e vários comentadores salientaram «o toque de modernidade» da sociedade portuguesa tendo em conta que a mesma gasta, percentualmente, cada vez menos em produtos alimentares, bebidas não alcoólicas, vestuário e calçado e, cada vez mais em hotéis, restaurantes, cafés, lazer, distracção e cultura. . Em termos genéricos (já lá vamos aos dados relativos aos vários grupos sociais) a conclusão atrás referida «era verdadeira» à data da recolha estatística, embora não se tenha dito que os negócios que mais cresceram, em valores percentuais, na base daquilo que foram as despesas das famílias, foram, por ordem decrescente: o ensino, as comunicações e a saúde, sectores vorazmente apetecidos pela iniciativa privada. . Mas voltemos ao «toque de modernidade» e às despesas familiares mais significativas que, entre 1989/90 e 2005/06, maiores diferenças tiveram, quer no plano das descidas, quer no plano das subidas. Para não carrear muitos dados vejamos, apenas, três casos. . Produtos alimentares e bebidas não alcoólicas . A estatística diz-nos que tais despesas representavam, em 1989/90, cerca de 29,5% do total do orçamento familiar, enquanto que em 2005/06 esse valor não ultrapassou os 15,5%. Donde, diziam certos analistas, a estrutura de despesas dos portugueses está cada vez mais em sintonia com o padrão europeu (a 15). . Será assim? . Não, não é bem assim, porque na Região dos Açores essa percentagem correspondia a 18% e no conjunto do país, nas áreas predominantemente rurais, os encargos com alimentação cifravam-se em 19%, o que comprova que, nas regiões mais pobres, mercê dos baixos salários e das baixas reformas, mesmo com a ajuda da agricultura de subsistência, o esforço com alimentação é maior do que nas regiões predominantemente urbanas. . Mas as grandes diferenças não são bem estas. Elas são mais visíveis nos diferentes estratos sociais. . Com efeito, num agregado familiar constituído por 2 adultos idosos tais despesas correspondem a 20%, valor que sobe aos 24% no conjunto das famílias mais pobres, aquelas que usufruíam de rendimentos inferiores a 433 euros mensais. . Importa sublinhar que o esforço na aquisição de alimentos é tanto maior quanto menor for o rendimento das famílias e tanto menor quanto maior for o rendimento familiar. Por exemplo, no conjunto das famílias com rendimentos anuais superiores a 31 200 euros, a alimentação e bebidas não alcoólicas correspondiam a uma despesa anual de 3813 euros, ou seja, 11% das despesas totais, enquanto nas famílias com rendimentos inferiores a 5200 euros essa despesa cifrava-se, anualmente, em 1176 euros, ou seja, 24% das despesas totais. . Concluindo: – as famílias com os rendimentos mais elevados gastam, em termos absolutos, mais do triplo daquilo que gastam as famílias mais pobres; – as famílias com os rendimentos mais baixos gastam, em termos percentuais, mais do dobro daquilo que gastam as famílias com os rendimentos mais elevados. . Tudo isto, à primeira vista, parece muito confuso. Mas do que se trata não é de uma mera confusão. Do que se trata é de uma enorme contradição, entre os poucos que muito têm e os muitos que nada têm. Contradição que, à luz da nossa matriz ideológica, é explicada pela existência de uma sociedade de classes, com interesses antagónicos. . Entretanto, emanente deste antagonismo assiste-se, hoje, à financeirização das cotações dos produtos alimentares, de que se destacam os preços do arroz, do trigo e do milho que, por sua vez, potenciam o aumento do preço da carne e dos lacticínios, por via do aumento do preço das rações para animais. . Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que os já referidos 24% que as famílias pobres, em Portugal, têm de despender com alimentação tenderá a subir, não só na base do aumento das matérias primas como ainda maximizadas pela corrupção associada ao valor das cotações. Eis, pois, um assunto que está na ordem do dia e para o qual não podemos deixar de estar atentos. . Habitação: despesas com água, electricidade e gás . Estamos perante um encargo familiar que passou dos 12,4% em 1989/90, para os 26,6%, em 2005/06. . Estamos perante um encargo avaliado, em termos médios anuais, em 806 euros em 1989/90 que passou aos 4691 euros em 2005/06. . Estamos perante um crescimento de despesas na ordem dos 482%, repetimos, 482%, enquanto o salário mínimo, nesse período, não subiu mais do que 114%. . Estamos, pois, perante um negócio fabuloso cuja dimensão beneficiou, entre outros: os donos dos terrenos, os donos das empresas de construção, os intermediários e parasitas e os super-parasitas que dão pelo nome de banqueiros. Eis um dos quartetos que mais dinheiro ganhou, que mais descaracterizou a paisagem do país e que mais empobreceu a generalidade da população, sobretudo dos trabalhadores por conta de outrem. . Embora, em termos regionais, os encargos sejam relativamente semelhantes importa, no entanto, destacar o esforço suplementar dos madeirenses, a quem é exigido, no conjunto das despesas totais, uma percentagem de 31% nas despesas só com habitação. É muito! Mas muito mais é aquilo que é exigido aos idosos que, no caso de viverem sozinhos, têm de despender 36% daquilo que são as suas despesas só em habitação, isto num país em que o Artigo 72.º da Constituição garante que «As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação». . Também, aqui, na área da habitação, em termos percentuais, se verifica uma situação similar à verificada na alimentação, ou seja: . – as famílias com os rendimentos mais elevados gastam 24% no conjunto das despesas totais; . – as famílias com os rendimentos médios mensais entre os 433 euros e os 1300 euros «cálculo baseado no rendimento anual a dividir por 12 meses», despendem com a habitação entre 31% e 32%, do total do orçamento familiar. . Saúde . O negócio da saúde pode ser bem avaliado no facto de em 1989/90 cada família gastar, em média, 193 euros por ano, despesa que subiu aos 1066 euros em 2005/06, o que significa que, descontando a inflação, o esforço das famílias nesta área mais que duplicou, razão pela qual os grandes grupos financeiros esfregam as mãos de contentes pela progressiva privatização da saúde, realidade bem visível, salvo para aqueles que não querem ver. Mas se a evolução dos encargos com a saúde passar a ser comparada com o salário mínimo nacional, então podemos dizer que enquanto este último cresceu, no período atrás referido, cerca de 114%, as despesas com a saúde, durante o mesmo período, tiveram um crescimento na ordem dos 452%! . Quanto à desagregação desta despesa pelos vários grupos socais verifica-se que existe, também, um grande paralelismo com a alimentação, ou seja: o esforço exigido é tanto maior quanto menor for o rendimento e tanto menor quanto maior for o rendimento. . Quem tiver dúvidas a este respeito basta consultar os dados do INE quando nos diz que, em termos regionais, e em valores percentuais, o maior esforço verifica-se nas zonas predominantemente rurais, onde o valor dos salários e das pensões são dos mais baixos do país. . Por outro lado, é nos agregados familiares formados por 2 idosos que as despesas são mais elevadas, cerca de 13%. Por outro lado, nas famílias com rendimentos superiores a 31 200 euros anuais, essa percentagem é de 5%. Repetimos, 5%! Mas o escândalo não é apenas este, o de os mais pobres terem de suportar uma despesa de 13%, enquanto as famílias mais desafogadas despenderem apenas 5% O escândalo vai ao ponto de um casal de idosos gastar em média, por mês, 128 euros com a saúde, quando a média do valor das respectivas pensões é aquilo que é: pensões de miséria. . A luta exige salários e pensões mais elevados . Estes três exemplos não estão aqui por acaso. As despesas da alimentação, habitação e saúde representam, nas famílias com menores rendimentos, cerca de 65% do orçamento familiar. . Daqui decorre que tais despesas devem estar na linha da frente da batalha a travar pela dignificação da qualidade de vida da generalidade dos trabalhadores e dos pensionistas e reformados. . Nessa luta, nas pequenas e grandes batalhas do quotidiano, deve estar envolvido o Movimento Sindical Unitário e as organizações dos reformados, sobretudo aquando das actualizações salariais e das pensões. . Neste contexto haverá, seguramente, muitos factores a ter em conta e um deles não deixará de ser o seguinte: exigir que as actualizações não estejam apenas indexadas à taxa média da inflação global. A dimensão dos rendimentos e a natureza das despesas familiares devem estar no centro das reivindicações. O que é que queremos dizer com isto? Queremos, meramente a título de exemplo, dizer o seguinte: . - Desde 1974 até agora o valor do pão subiu 60 vezes, enquanto o salário mínimo subiu 25 vezes. . O aumento atrás referido é uma questão de milésimas para uma família rica. Mas o aumento do pão - e dos produtos que integram a dieta alimentar - para uma família pobre é uma questão crucial. Neste sentido, nos processos reivindicativos devemos ter em conta o aumento de preços, designadamente, nas áreas da alimentação, da habitação e da saúde e exigir, lutando, para que a taxa de inflação média seja majorada em função dos aumentos nas áreas atrás referidas, sob pena de, em nome de uma inflação média, estarem a ser prejudicados os trabalhadores e reformados mais pobres, cujo cabaz de compras é totalmente diferente do cabaz de compras de uma família rica. . É preciso ter presente, e insistir, que as três despesas atrás referidas representam cerca de 65% dos orçamentos familiares dos estratos mais pobres onde se incluem os trabalhadores por conta de outrem e os reformados e pensionistas. . É preciso ter presente que, nos últimos 12 meses, os produtos lácteos subiram 13,5%, o pão 9%, o peixe 5%, a fruta 4,9%... . in Avante 2008.04.24 . .
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