| | Ainda
| Chama-se Murat Karnaz, é turco-alemão, ruivo, de pele clara. E de religião islâmica. Esteve preso durante cinco anos em Guantámano, de onde só foi libertado, ao que parece a pedido pessoal da chanceler Angela Merkel junto de George W.Bush. Entretanto e ao longo daqueles cinco anos Murat Karnaz foi torturado de várias maneiras: espancado abundantemente, objecto de simulações de afogamento, algemado de pés e mãos durante semanas, suspenso pelos pulsos durante cinco dias e cinco noites ao longo dos quais era regularmente espancado (neste caso, um médico verificava de seis em seis horas que ele podia continuar a suportar a tortura, o que inevitavelmente lembra os médicos torcionários e da PIDE), longamente privado da visão mediante a aplicação de um capuz, decerto ainda o mais que não nos foi contado e que nós não podemos imaginar. Com tudo isto, queriam que ele confessasse pertencer à Al Qaeda. Mas essa confissão não podia ele fazê-la porque seria falsa. Os carrascos chegaram mesmo ao ponto de até no momento da libertação já determinada tentarem trocá-la pela assinatura de uma confissão escrita , aproveitando-se da previsível ânsia de liberdade que compreensivelmente dominava o prisioneiro. . Também então Murat Karnaz resistiu, ele que soubera resistir aos cinco anos de martírio apenas ancorado na certeza da sua inocência, no desatino que havia sido a arbitrariedade brutalíssima da sua prisão, talvez na força da sua fé religiosa já que convicções políticas excepcionalmente firmes não parece que as tivesse. Afinal havia sido preso no Afeganistão porque ali se dirigira, parece que como muitos outros, numa espécie de turismo confessional, visando aperfeiçoar-se como crente islâmico, talvez um pouco como muitos cristãos visitam Roma e outros lugares santos do catolicismo para se sentirem reforçados na sua fé. Só que, para desgraça de Murat Karnaz, o 11 de Setembro ocorrera havia pouco, os Estados Unidos haviam declarado guerra ao «terrorismo» e pagavam a tantos dólares por cabeça quem denunciasse suspeitos de pertença à Al Qaeda. Murat foi, pois, denunciado por um qualquer afegão sem escrúpulos resolvido a embolsar uns dólares que lhe fariam jeito, e é improvável que tenha sido o único a ir para Guantámano nessas circunstâncias. Tivesse ele a pele e o cabelo mais escuros, não fosse ele meio alemão, e provavelmente ainda estava sob torturas na famigerada base norte-americana. . Enquanto o horror durar . A história de Murat Karnaz, impressionante mas não surpreendente, souberam-na os telespectadores da SIC-Notícias na passada semana ao assistirem a mais uma emissão do «60 Minutos», o programa de reportagens da CBS obviamente insuspeito de antiamericanismo primário excepto porventura aos olhos do dr.Pacheco Pereira, indefectível advogado do projecto Bush/USA para o mundo. É essa recente emissão que justifica a atenção que esta dupla coluna hoje dispensa à dramática odisseia de Murat. . Poderá porventura objectar-se, porém, perguntando-se se valerá a pena voltar a falar de Guantámano , dos seus torcionários e das suas vítimas, quando o assunto já foi tantas vezes abordado e denunciado, inclusive, nos tempos mais recentes, a propósito da vergonhosa cumplicidade de governos portugueses na prática desses crimes contra a humanidade (ou, na alternativa, do humilhante desprezo norte-americano pela soberania portuguesa e pela dignidade do nosso país). Contudo, acontece que Guantámano, carrascos e prisioneiros, continuam a ser realidade. Que os Estados Unidos, arrogantes e impudicos, persistem no crime que escandaliza o mundo e perturba os seus aliados mais submissos. Não surpreende que seja assim: embora dando sinais de estarem já a resvalarem pela encosta de uma decadência que é diagnosticada por um número crescente de observadores, os Estados Unidos prosseguem uma política de dominação mundial que permanentemente recorre à violência sob diversas formas, desde as guerras em que directamente participa liderando as operações até à prática de golpes de Estado organizados pelos seus serviços secretos em países estrangeiros. Ora, enquanto o horror de Guantámano persistir, parece não só ser justificado como até ser eticamente obrigatório que se fale dele, que não se abrande na denúncia e na indignação. Sendo assim, é claro que andou muito bem o «60 Minutos» ao vir contar-nos o que aconteceu a Murat Karnaz. E, em consequência, que não terá sido mau que aqui tenhamos vindo fazer o registo dessa emissão. . in Avante 2008.04.24 . .
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