blog da Revista Espaço Acadêmico
ISSN 1519-6186, mensal, ANO X
por HENRIQUE RATTNER*
FEA/USP
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A auto-imolação de um jovem tunisiano de 26 anos de idade em dezembro de 2010 foi o estopim de uma onda de protestos e revoltas contra as autoridades ditatoriais e opressores no mundo árabe que se estende desde o Atlântico até o Oceano Índico. São 320 milhões de pessoas que vivem no imenso território da África do Norte, de quase 11 milhões de km², divididos em países por fronteiras artificiais impostas pelos ex-colonizadores europeus nas primeiras décadas do século XX, outrora dominados pelos sultões turcos, a partir da distante Istambul. Com o desmoronamento do império otomano na primeira guerra mundial, França e Inglaterra dividiram entre si os espólios, impondo reis fantoches (Iraque, Jordânia) ou ditadores submissos aos interesses das metrópoles. Em todos esses países instalaram-se oligarquias que, ávidas de enriquecer, usurparam os recursos naturais e as rendas provindas do comércio exterior, enquanto mantiveram seus súditos na mais absoluta miséria.
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Com o fim da era de colonização no período pós-segunda guerra mundial, a inexistência de instituições republicanas, a ausência de eleições e de liberdades civis levou a que o poder caísse nas mãos de ditadores militares, desde a Argélia, passando pela Líbia, Egito, Iraque e Síria, ladeados do lado ocidental pelo reino dos Marrocos e no oriente pelos monarcas autocráticos da Arábia Saudita, Kuwait e Emirados.
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A partir da década dos oitenta do século vinte, os países da América Latina e do sudeste asiático derrubaram os regimes ditatoriais e iniciaram um período de democratização de suas instituições, com o estabelecimento do estado de direito, das liberdades civis e da imprensa. A principal conseqüência dessas transformações sociais e políticas foi um processo de crescimento econômico, alimentado por investimentos de capitais internos e estrangeiros, resultando em melhoria significativa das condições de vida, sobretudo da massa de pobres e carentes do mínimo para a sobrevivência. Outro resultado foi um processo intenso de mobilidade social ascensional que levou à incorporação das classes C e D ao mercado de trabalho e de consumo.
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Essas transformações parecem ter passado despercebidas ao largo do mundo árabe, caracterizado por regimes autocráticos, ditatoriais e politicamente retrógrados, embora apoiados por razões econômicas e geopolíticas pelas potências ocidentais. As pressões acumuladas de insatisfação e revolta estouraram e se propagaram por toda a região na virada dos anos 2010/2011.
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O movimento de protestos e de contestação dos regimes iniciou-se na Tunísia, após a morte de um jovem vendedor ambulante que teve sua banca de frutas confiscada, sendo ofendido e espancado pela polícia. Vinte e sete dias após o estouro das manifestações, o ditador Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país para a Arábia Saudita, levando em sua bagagem uma e ½ toneladas de ouro, além de outros valores. As manifestações contra os regimes ditatoriais não pararam nas fronteiras da Tunísia. Ao contrário, violentos protestos irromperam na Argélia e, sobretudo, no Egito, governado com mão de ferro pelo general Hosni Mubarak, há mais de 30 anos e que transformou no epicentro da revolta das massas árabes.
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O Egito é o mais populoso e, relativamente, o mais rico país da região, com quase meio milhão de forças armadas, generosamente supridas com armamentos modernos pelos Estados Unidos. O Egito vive, há mais de trinta nos, sob a lei de emergência que suspende os direitos civis e a liberdade da imprensa. Mas, tal como nos outros países da região, o Egito sofreu profundas transformações sociais que ocorreram nas últimas décadas, sem que a economia acompanhasse as demandas crescentes de uma população jovem, melhor educada e ansiosa de ingressar o mercado de trabalho e de consumo urbano. A expectativa de vida subiu de 51 para 70 anos; a mortalidade infantil caiu de 98 para 38 mortos para cada mil nascimentos e a proporção da população em idade escolar aumentou de 34% para 64%. Apesar de uma alta taxa de analfabetismo total de 40%, entre os jovens na faixa de 15-24 anos ela caiu para 10% entre os homens e 18% entre as mulheres. A população urbana cresceu de 30% para 60% de um total de 320 milhões, com a conseqüente concentração de favelados, mendigos e miseráveis que sobrevivem com menos de um dólar por dia nas grandes cidades ( Cairo tem mais de 14 milhões de habitantes) enquanto as riquezas são concentradas nas mãos de uma elite parasita e corrupta que se apropria das receitas da exploração de gás, petróleo e do turismo. A taxa de desemprego é alta – varia de 10% no Egito a 30% na Líbia e na Mauritânia, aumentando a frustração e revolta dos jovens que observam o fausto e o consumo opulento das elites, expostos pelos meios de comunicação modernos, a TV via Satélites, os celulares, a internet e a onipresente Al Jazeera cujo noticiário está ao alcance das massas. Em vão os governantes árabes tentaram cortar as comunicações e os contatos com a TV e a internet. A revolta alastrou-se, convocando para a praça pública dezenas de milhares, apesar do toque de recolher imposto pelos governantes. Até esta data (3/2/2011), mais de quinhentas pessoas teriam sido mortas e mais de duas mil feridas pela polícia que ainda obedece às ordens do ditador, embora o exército tenha se contido de intervir como força repressora.
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Paradoxalmente, o Egito tem perdido espaço e potencial econômico sob o governo do coronel Nasser e, posteriormente, sob Anwar Sadat, assassinado em 1981 e de Hosni Mubarak. Com poucas indústrias e uma agricultura de subsistência, a economia e o comércio do Egito perderam seu fôlego, apesar da nacionalização do Canal de Suez nos anos de 1950 e a construção pela ex-União Soviética da represa de Assua. Os elementos mais dinâmicos, empresários e profissionais, em sua maioria de origem estrangeira, foram expropriados e expulsos pelo governo sob Nasser, sem que houvesse substituição de empreendedores, comerciantes e profissionais formados pelo sistema educacional egípcio, com o conseqüente empobrecimento das massas.
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Apesar de toda a efervescência e expectativas de uma democratização no maior e mais importante país da região, paira a sombra do regime dos aiatolás no Irã, herdeiro do regime autocrático do Xá Reza Palevi, derrubado em 1979 por um levante popular liderado pelos pregadores islâmicos. A ausência de partidos políticos e de uma sociedade civil organizada, participante efetivo de um processo político democrático, abriu um vácuo de poder preenchido pelas milícias fanáticos que se regem pelas leis da Sharia, totalmente opostas ao estado de direito moderno. Observadores e analistas políticos discutem sobre o provável papel da Irmandade Muçulmana, maior grupo oposicionista que, apesar de proibido e perseguido pelo regime, ganhou 80 assentos no parlamento nas últimas eleições. A percepção e a consciência de que regimes não democráticos constituem uma anomalia no mundo moderno são muito agudas entre os jovens manifestantes, avessos a um regime militar e ditatorial. Apesar das advertências do ministro do Interior que as manifestações de rua não seriam mais toleradas, dezenas de milhares de pessoas desafiaram a ordem de recolher, colocando fogo em veículos e edifícios públicos. As massas parecem simpatizar com os manifestantes que clamam por democracia e saudaram a volta de Mohamed ElBaradei, prêmio Nobel da Paz e cientista respeitado que chefiou a AIEA – Agência Internacional de Energia Atômica, considerado como possível candidato à presidência de um governo de transição.
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A cada dia, aumentam as pressões e manifestações populares o que levou o ditador a prometer pela TV, a sua saída do cargo, exigindo um prazo de seis meses durante o qual seriam convocadas novas eleições. Tanto Mohamed ElBaradei quanto os líderes da Irmandade Muçulmana recusaram e denunciaram o gesto como manobra de protelação. Numa nova manifestação na Praça Tahrir, o centro de Cairo, muitos participantes levantaram seus sapatos sobre suas cabeças, considerado um sinal extremamente ofensivo no mundo árabe. A cada dia que a crise se prolonga, a economia egípcia sofre pesadas perdas. O turismo, principal fonte de renda do país, praticamente parou e os estrangeiros lotam os aeroportos para retornar a seus países. O comércio fechou as portas e os preços de produtos alimentícios sumiram do mercado, provocando alta exagerada dos preços.
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Outro problema que se vislumbra no horizonte com a provável mudança de governo no Egito, é a relação com o Estado de Israel. Durante quase trinta anos, após a assinatura de um tratado de paz com o Egito e a Jordânia, as hostilidades cessaram e voltou à tranqüilidade nas fronteiras, mesmo durante os conflitos armados com o Hezbola e o Hamás. Também, sinal significativo de mudança na política externa, é a mensagem dirigida pela secretária de Estado Hilary Clinton ao ditador, cobrando uma “transição rápida e ordenada” do poder. Isto ocorre poucos dias depois da manifestação do vice-presidente dos EUA, Joe Biden, afirmando que “Mubarak não é um ditador”. Outra manifestação esdrúxula do mundo ocidental veio da França onde a ministra de Relações Exteriores propôs o envio de tropas francesas à Tunísia, para “restabelecer a ordem”!
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Ao mesmo tempo em que crescem as manifestações no Egito, novos focos de protestos surgiram em outras capitais do mundo árabe, com destaque à auto-imolação de duas pessoas em Rabat, capital dos Marrocos. Do outro lado do mundo árabe, ocorreu a dissolução do governo e a destituição do primeiro ministro da Jordânia, pelo rei Abdullah 2º, acompanhada de promessas de reformas e o anúncio de convocação de eleições municipais, “o mais rápido possível” pela Autoridade Palestina, pela primeira vez em cinco anos. A TV Al Jazeera que cobre todos os acontecimentos no mundo árabe, continua a irradiar notícias, apesar da proibição do governo e o confisco dos equipamentos pela polícia.
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Tal como na Tunísia onde o comandante-chefe das forças armadas pronunciou-se a favor do movimento de protestos e de reivindicação por democracia, também no Egito, o exército – passivo diante as demonstrações – terá um papel fundamental na restauração da normalidade, ao garantir o estado de direito, o fim da corrupção e uma melhoria das condições econômicas.
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Há décadas que os países árabes têm sua dignidade ferida por regimes corruptos, autocráticos e opressores. Entretanto, tanto os Estados Unidos quanto os países europeus sustentaram esses regimes, com receio de uma radicalização islâmica. Esta atitude míope parece estar mudando com o pronunciamento de Barak Obama que elogiou a “coragem e a dignidade” do povo tunisiano. Mas, a radicalização dos movimentos exige mais do que declarações retóricas a favor da democracia. A onda de protestos e manifestações que varre o mundo árabe proporciona ao ocidente a oportunidade de mudar sua atitude de hipocrisia de apoiar com bilhões de US dólares e fornecimento de armas sofisticadas aos regimes claramente obsoletos, necessitando urgentemente de reformas profundas. O pendulo da História está em pleno movimento, evidenciando ventos de mudança no mundo árabe, inclusive nas monarquias reacionárias da Arábia Saudita, dos Marrocos, da Jordânia e dos Emirados. Mas, as centenas de mortos e milhares de feridos em choques com as “forças da ordem” nas cidades de vários países pronunciam dias sombrios de incertezas e mais confrontações e violência no mundo árabe.
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* HENRIQUE RATTNER é Professor da FEA (USP), IPT, membro da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças (ABDL) e colunista da Revista Espaço Acadêmico.
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