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O estabelecimento e a manutenção da ditadura de Ben Ali na Tunísia teve o apoio dos governos dos Estados Unidos e da França, da Otan, do FMI e da Internacional Socialista, até ser confrontada pelas mobilizações que forçaram a queda do ditador, as quais tiveram papel determinante de setores da classe trabalhadora.
Por Vicenç Navarro, no Informação Alternativa
É uma pena que Pontecorvo, na minha opinião o melhor realizador de cinema que existiu no século 20, não esteja agora entre nós e possa fazer um filme sobre Túnis, o qual poderia intitular-se “A Batalha de Túnis”, que completasse o seu excelente “A Batalha de Argel”. O caso de Túnis é paradigmático do que tem vindo a ocorrer nos países árabes.
Na verdade, lembra-me muito o que se passou no Irã durante o tremendamente repressivo reinado do Xá, estabelecido com o apoio dos governos ocidentais, liderados pelos EUA, a fim de travar as exigências populares lideradas, naquele momento, por movimentos laicos de raízes democráticas e socialistas.
Apresentavam o Xá como o elemento estabilizador (argumento utilizado amplamente para apoiar ditaduras inapresentáveis). No dia de Ano Novo de 1977, o Presidente Carter apresentou o Xá do Irã como o pilar de estabilidade que o Oriente Médio precisava. Dois anos mais tarde, em 16 de janeiro de 1979, o Xá teve que fugir do Irã, nomeando um governo fantoche que durou apenas umas semanas.
Algo semelhante ocorreu em Túnis. O governo do Presidente Ben Ali tinha recebido o apoio de todos os países da Otan e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como o eixo de estabilidade do Norte de África. Dez dias depois de um jovem desempregado de 26 anos se tentar suicidar, como protesto face à crueldade e dureza existente, Ben Ali teve que fugir do país, formando-se um governo fantoche que duraria apenas alguns dias. Milhares e milhares de cidadãos saíram à rua e forçaram a saída da camarilha que rodeava Ben Ali em Túnis.
O que é interessante é observar a mudança fulminante dos governos que o tinham apoiado. Ben Ali teve que mudar o rumo do seu avião durante a sua fuga, já que, quando estava a voar para Paris, o governo de Sarkozy lhe comunicou que não podia aterrar em França, e teve que ir para a Arábia Saudita, o regime ditatorial que foi recolhendo os ditadores mais inapresentáveis de África e da Ásia, tais como Idi Amin do Uganda e Pervez Musharraf do Paquistão.
O Presidente Sarkozy, na verdade, tinha assinalado o governo de Ben Ali como um dos regimes mais avançados do mundo árabe e, nos primeiros dias da rebelião popular, a Ministra de Relações Exteriores francesa, Michele Alliot-Marie, indicou à Assembleia Nacional que a França estava disposta a enviar tropas para ajudar o governo de Ben Ali como parte do convênio de colaboração entre ambos os países. E o Ministro da Cultura do mesmo governo de Sarkozy, Frederic Mitterrand, tinha indicado que definir o regime liderado por Ben Ali como uma ditadura era claramente "um exagero". Semanas mais tarde, o Presidente Sarkozy negava-lhe a permissão de se exilar em França.
Mas três coisas merecem especial menção. Uma foi a mobilização de grandes setores da classe trabalhadora exigindo o despedimento do governo, tendo sido as bases dos sindicatos (infiltrados pelos partidos clandestinos de esquerda) os que se constituíram como centro dos movimentos sociais de rejeição àquela ditadura. Tal como ocorreu na cobertura mediática do Egipto, este elemento de grande importância mal teve visibilidade [1].
A outra observação foi que o partido no qual Ben Ali baseava a sua rede de corrupção (o Partido Democrático Constitucional) era membro da Internacional Socialista (como o era o partido do ditador Mubarak do Egipto), mostrando o grau de confusão e cumplicidade desta Internacional. E o outro fato é que o Diretor Geral do FMI, o “socialista” Dominique Strauss-Kahn, candidato preferido entre os socialistas para competir com Sarkozy nas próximas eleições (mostrando a confusão dos Socialistas franceses) tinha recentemente visitado Ben Ali e louvado as suas políticas de austeridade de despesa pública social, apresentando-o como um exemplo a seguir, declarando-se amigo e conselheiro de Ben Ali.
Por último, como era previsível, o governo estado-unidense era um dos maiores defensores de Ben Ali, devido ao seu apoio incondicional aos EUA na sua política de apoio a Israel. Foram o governo estado-unidense e os seus aliados na Otan aqueles que armaram e apoiaram Ben Ali.
Tal como sublinhou Fulvio Martini, antigo diretor dos serviços secretos militares SISMI, em declarações ao parlamento italiano, "em 1985-1987, a Otan organizou o golpe militar em Túnis que destruiu Burguiba e apresentou Ben Ali como seu substituto". A partir de então, o governo federal dos EUA foi o máximo provedor de armas daquele sistema ditatorial, incluindo US$ 282 milhões em armamento durante a Administração Obama.
Todos estes aliados não podem alegar nenhum tipo de ignorância do carácter repressor daquele regime. A Anistia Internacional tinha vindo a documentar a enorme violação dos direitos humanos naquele país, e o próprio Departamento de Estado, no seu relatório confidencial, publicado no WikiLeaks, explicava com detalhe a corrupção e a repressão daquele regime. A história repete-se.
Uma última observação. Este artigo escrevi-o no mesmo dia em que o Presidente das Cortes Espanholas, o Sr. José Bono (membro destacado do PSOE), visitou a Guiné à frente de uma delegação parlamentar espanhola. Na Guiné existe uma das ditaduras mais brutais que existiram em África, dirigida por um dos ditadores mais sangrentos e repressivos que se conheceram naquele continente. E qual seria a minha enorme surpresa quando o socialista Bono o saudou indicando que "entre a Guiné e Espanha temos mais coisas que nos unem do que aquelas que nos separam".
Imaginam Pablo Iglesias a dizer algo semelhante a Hitler? Tal comportamento ofende não só qualquer socialista, mas qualquer cidadão com sensibilidade democrática. O que José Bono, que não merece representar o povo espanhol, estava a dizer com aquela frase é que os interesses econômicos da Guiné, a sua riqueza petrolífera, era mais importante que a denúncia do comportamento repugnante daquele ditador.
E esta é a razão pela qual os governos europeus (incluídos os seus partidos socialistas governantes) estão a apoiar governos ditatoriais como o de Túnis, perante a rejeição das suas populações.
[1] Ver o meu artigo O que não se sabe sobre o Egito, 17/02/2011.
Fonte: Vicenç Navarro
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Na verdade, lembra-me muito o que se passou no Irã durante o tremendamente repressivo reinado do Xá, estabelecido com o apoio dos governos ocidentais, liderados pelos EUA, a fim de travar as exigências populares lideradas, naquele momento, por movimentos laicos de raízes democráticas e socialistas.
Apresentavam o Xá como o elemento estabilizador (argumento utilizado amplamente para apoiar ditaduras inapresentáveis). No dia de Ano Novo de 1977, o Presidente Carter apresentou o Xá do Irã como o pilar de estabilidade que o Oriente Médio precisava. Dois anos mais tarde, em 16 de janeiro de 1979, o Xá teve que fugir do Irã, nomeando um governo fantoche que durou apenas umas semanas.
Algo semelhante ocorreu em Túnis. O governo do Presidente Ben Ali tinha recebido o apoio de todos os países da Otan e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como o eixo de estabilidade do Norte de África. Dez dias depois de um jovem desempregado de 26 anos se tentar suicidar, como protesto face à crueldade e dureza existente, Ben Ali teve que fugir do país, formando-se um governo fantoche que duraria apenas alguns dias. Milhares e milhares de cidadãos saíram à rua e forçaram a saída da camarilha que rodeava Ben Ali em Túnis.
O que é interessante é observar a mudança fulminante dos governos que o tinham apoiado. Ben Ali teve que mudar o rumo do seu avião durante a sua fuga, já que, quando estava a voar para Paris, o governo de Sarkozy lhe comunicou que não podia aterrar em França, e teve que ir para a Arábia Saudita, o regime ditatorial que foi recolhendo os ditadores mais inapresentáveis de África e da Ásia, tais como Idi Amin do Uganda e Pervez Musharraf do Paquistão.
O Presidente Sarkozy, na verdade, tinha assinalado o governo de Ben Ali como um dos regimes mais avançados do mundo árabe e, nos primeiros dias da rebelião popular, a Ministra de Relações Exteriores francesa, Michele Alliot-Marie, indicou à Assembleia Nacional que a França estava disposta a enviar tropas para ajudar o governo de Ben Ali como parte do convênio de colaboração entre ambos os países. E o Ministro da Cultura do mesmo governo de Sarkozy, Frederic Mitterrand, tinha indicado que definir o regime liderado por Ben Ali como uma ditadura era claramente "um exagero". Semanas mais tarde, o Presidente Sarkozy negava-lhe a permissão de se exilar em França.
Mas três coisas merecem especial menção. Uma foi a mobilização de grandes setores da classe trabalhadora exigindo o despedimento do governo, tendo sido as bases dos sindicatos (infiltrados pelos partidos clandestinos de esquerda) os que se constituíram como centro dos movimentos sociais de rejeição àquela ditadura. Tal como ocorreu na cobertura mediática do Egipto, este elemento de grande importância mal teve visibilidade [1].
A outra observação foi que o partido no qual Ben Ali baseava a sua rede de corrupção (o Partido Democrático Constitucional) era membro da Internacional Socialista (como o era o partido do ditador Mubarak do Egipto), mostrando o grau de confusão e cumplicidade desta Internacional. E o outro fato é que o Diretor Geral do FMI, o “socialista” Dominique Strauss-Kahn, candidato preferido entre os socialistas para competir com Sarkozy nas próximas eleições (mostrando a confusão dos Socialistas franceses) tinha recentemente visitado Ben Ali e louvado as suas políticas de austeridade de despesa pública social, apresentando-o como um exemplo a seguir, declarando-se amigo e conselheiro de Ben Ali.
Por último, como era previsível, o governo estado-unidense era um dos maiores defensores de Ben Ali, devido ao seu apoio incondicional aos EUA na sua política de apoio a Israel. Foram o governo estado-unidense e os seus aliados na Otan aqueles que armaram e apoiaram Ben Ali.
Tal como sublinhou Fulvio Martini, antigo diretor dos serviços secretos militares SISMI, em declarações ao parlamento italiano, "em 1985-1987, a Otan organizou o golpe militar em Túnis que destruiu Burguiba e apresentou Ben Ali como seu substituto". A partir de então, o governo federal dos EUA foi o máximo provedor de armas daquele sistema ditatorial, incluindo US$ 282 milhões em armamento durante a Administração Obama.
Todos estes aliados não podem alegar nenhum tipo de ignorância do carácter repressor daquele regime. A Anistia Internacional tinha vindo a documentar a enorme violação dos direitos humanos naquele país, e o próprio Departamento de Estado, no seu relatório confidencial, publicado no WikiLeaks, explicava com detalhe a corrupção e a repressão daquele regime. A história repete-se.
Uma última observação. Este artigo escrevi-o no mesmo dia em que o Presidente das Cortes Espanholas, o Sr. José Bono (membro destacado do PSOE), visitou a Guiné à frente de uma delegação parlamentar espanhola. Na Guiné existe uma das ditaduras mais brutais que existiram em África, dirigida por um dos ditadores mais sangrentos e repressivos que se conheceram naquele continente. E qual seria a minha enorme surpresa quando o socialista Bono o saudou indicando que "entre a Guiné e Espanha temos mais coisas que nos unem do que aquelas que nos separam".
Imaginam Pablo Iglesias a dizer algo semelhante a Hitler? Tal comportamento ofende não só qualquer socialista, mas qualquer cidadão com sensibilidade democrática. O que José Bono, que não merece representar o povo espanhol, estava a dizer com aquela frase é que os interesses econômicos da Guiné, a sua riqueza petrolífera, era mais importante que a denúncia do comportamento repugnante daquele ditador.
E esta é a razão pela qual os governos europeus (incluídos os seus partidos socialistas governantes) estão a apoiar governos ditatoriais como o de Túnis, perante a rejeição das suas populações.
[1] Ver o meu artigo O que não se sabe sobre o Egito, 17/02/2011.
Fonte: Vicenç Navarro
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